Uma visita ao campo onde Hitler praticou a “Solução Final” forçou o académico Mohammed Daoudi a abandonar as suas funções na Universidade de al-Quds, em Jerusalém Leste. Ele não se arrepende. Os seus alunos também não. “Sentimos simpatia pelas vítimas [dos nazis] mas rejeitamos que o Holocausto seja usado para justificar a ocupação israelita.” (Ler mais | Read more…)

Foto de arquivo, sem data, mostra a principal casa dos guardas em Auschwitz II-Birkenau. Os prisioneiros chamavam-lhe “porta da morte”. A linha férrea foi construída em 1944 e esta era a última paragem dos comboios que levavam os judeus para os campos nazis de extermínio
© Reuters | HO-AUSCHWITZ MUSEUM
Em Março deste ano, Mohammed S. Dajani Daoudi partiu com um grupo de 27 estudantes palestinianos para uma visita inédita a Auschwitz.
Queria dar a conhecer o “principal símbolo do Holocausto”: uma rede de campos de concentração e extermínio, controlados pelos nazis na Polónia, onde 1,1 milhões de prisioneiros foram mortos entre 1941 e 1945– 90% dos quais judeus.
Ainda a viagem não tinha começado e já Daoudi era acusado de “traição” nas redes sociais. No regresso a casa, à vaga de insultos juntaram-se também ameaças de morte.
O antigo guerrilheiro da Fatah (principal facção da OLP) que fez dois doutoramentos nos EUA e criou o American Studies Center na Universidade de al-Quds, em Jerusalém Leste, contava com a solidariedade dos colegas docentes e da administração. Em vão.
Em Maio, o professor demitiu-se de todos os cargos (também dirigia a Biblioteca), numa carta enviada à universidade. Esperava que fosse recusada, mas foi aceite. Queixa-se de “falta de liberdade académica”, mas garante, numa entrevista que nos deu, via e-mail, que não se considera derrotado.
Daoudi acredita que a sua filosofia de wasatia (moderação) – nome do movimento da sociedade civil que fundou em 2007 – é o único caminho. Porque, misturando religião e política, é “a alternativa a um Islão extremista e a uma política totalmente secular”.
Houve duas “experiências pessoais” que desviaram Daoudi da luta armada a que aderiu quando a guerra de 1967 o separou da família, um dos veneráveis clãs de Jerusalém, a par dos Nashashib mas rival dos Husseini. Só em 1993, após a assinatura dos Acordos de Oslo, ele foi autorizado pelas autoridades israelitas a deixar Beirute, onde se licenciava.
Nesse ano, contou o professor, como o pai sofria de cancro, ele acompanhou-o diversas vezes ao Hospital Hadassah Ein Karem. “Fiquei surpreendido por ver que os médicos israelitas o tratavam como um paciente e não como árabe ou inimigo”, salientou.
A segunda experiência envolveu a mãe que saiu de casa sem os inaladores para a asma e teve uma crise aguda, num Shabat (sábado judeu), com todos os serviços encerrados. Daoudi e o seu irmão mais novo conduziram até ao Aeroporto de Ben-Gurion.
“Para nossa surpresa, os guardas apressaram-se a ajudar, chamando uma ambulância. Foi tarde de mais”, informou o professor. “A mãe morreu antes de chegar ao hospital. Estas experiências ajudaram-me a ver a face humana do meu inimigo, e converteram-me num activista pela paz, cujo lema é ‘nós e eles’ e não ‘nós ou eles’.”

Foto de arquivo, sem data, mostra a principal entrada do campo de concentração de Auschwitz, na Polónia, libertado por forças russas em Janeiro de 1945, Na placa está a inscrição Arbeit macht frei ( “O trabalho liberta-te”)
© NBC News
A visita a Auschwitz insere-se na filosofia wasatia que Daoudi propaga, e à iniciativa deu o nome de Hearts of Blood – not of Stone (“Corações de sangue – não de pedra”). Daoudi já havia estado no campo onde sobreviveram judeus como Primo Levi (autor de Se isto é um homem). Em Fevereiro de 2011, convidado pela organização Aladdin, em Paris, integrou um grupo de 150 líderes religiosos de todo o mundo.
“A visita abriu os olhos de um palestiniano, árabe e muçulmano, criado numa cultura que nega o Holocausto, considera este a causa da catástrofe nacional de 1948 ou alimenta a teoria de um esforço coordenado entre nazismo e o sionismo para obrigar os judeus a criarem o Estado de Israel na Palestina”, disse Daoudi.
“A bestialidade do que vi obrigou-se a deixar de ser um espectador”, adiantou. Dois meses depois [Abril 2011], eu e Robert Satloff [director executivo do think-tank conservador The Washington Institute for Near East Policy] assinámos um artigo conjunto intitulado Why should the Palestinians know about the Holocaust [Por que devem os Palestinianos aprender o que é o Holocausto”].
Inquirido sobre se a sua ligação aos neocon não teria contribuído para a polémica, Daoudi respondeu: “Quando criei o American Studies Center, em 2002, os críticos viram nisto um operação da CIA com vista a recrutar estudantes para trabalharem na agência.”
“Em 2007, quando fundei a Wasatia, os críticos disseram que eu recebia dinheiros dos EUA para promover um Islão ocidental. Desta vez, uma viagem educacional transformou-se num esquema perverso para lavar o cérebro da juventude palestiniana. Se ligasse aos críticos em breve me tornaria num vegetal.”
A viagem em Março de 2014 não foi organizada nem financiada por organizações judaicas, como alegaram os detractores. Tratou-se de um “projecto conjunto com a universidade alemã de Freidrich Schiller e paga pela German Research Foundation”, garantiu o professor.
“A maioria dos estudantes que participaram na viagem frequentou primeiro um curso de reconciliação no American Studies Center”, explicou Daoudi.
“Recebemos um total de 70 candidaturas mas só seleccionámos 30. Comprámos os bilhetes e pedimos vistos. Duas raparigas desistiram e um simpatizante do [movimento islâmico] Hamas não foi autorizado por Israel a sair do país.”
Nem Daoudi nem os alunos estavam preparados para a acesa controvérsia. “Para nós, era tão só uma visita de estudo, mas alguns acusaram-nos de ‘promover a causa sionista contra os palestinianos. Muitos ignoraram as visitas de estudantes judeus israelitas a campos de refugiados palestinianos.”
“É difícil reconhecer as respectivas narrativas porque estamos ainda numa rota de colisão, cada parte a tentar aniquilar a outra e ser a força dominante. Se cada um respeitar a narrativa do outro sem ter de a adoptar, talvez cheguemos à paz e à coexistência.”
Para Mohammed Daoudi, a “visita de estudo” foi, sem dúvida alguma, “um dos maiores desafios” que enfrentou. “Conhecendo a natureza altamente sensível do Holocausto no que toca à identidade nacional palestiniana, eu sabia que pisava terreno minado e corria muitos riscos.”
Antes de partir, Daoudi foi aconselhado a desistir. Recebeu um e-mail do presidente da Universidade de al-Quds a desencorajá-lo. Para se proteger, o professor pediu aos estudantes que assinassem termos de consentimento e responsabilidade. “Eu sabia que violava códigos da sociedade e que iria quebrar tabus, mas não desrespeitei quaisquer regulamentos académicos”, referiu.
Entre os estudantes que participaram na viagem estava Ohood Murqatem, 28 anos, que se licenciou em Media e TV na Universidade de al-Quds. Esteve presente como “antiga aluna”. Outro membro da comitiva foi Hani Khalil Smirat, 32 anos, que ainda não conclui o curso de Resolução de conflitos. Vivem ambos em Ramallah, na Cisjordânia.
“Não considero que a visita tenha sido o maior desafio pessoal”, frisa Ohood, em declarações por e-mail. “Para mim, foi apenas um projecto 100% educativo que me permitiu aprender muito sobre História e conflito”, acrescentou a coordenadora em Ramallah (Cisjordânia) do maior grupo pró-paz nascido na Internet, YaLa Young Leaders.
“Quando me refiro a conflito, estou a falar do modo como a ocupação israelita trata os palestinianos. Depois de estar em Auschwitz, fiquei a entender melhor este conflito – mas não a justificá-lo.”
“Os sentimentos confundiram-se enquanto lá estive”, observou. “Senti-me muito mal, e a maior parte do tempo não conseguia sequer imaginar o que acontecera na realidade. Não podia admitir que seres humanos cometessem contra outros seres humanos crimes tão incrivelmente horrendos. Foi impressionante porque estávamos a presenciar o que passou e não a ler ou ver documentários sobre o Holocausto.”
“Tivemos de viajar através da Jordânia e o percurso é muito longo”, notou ainda. “O meu estado de saúde é débil e a viagem implicava andarmos frequentemente de autocarro. Ficámos muitas horas de pé. Quando comecei a entender os factos, não conseguia dormir à noite.”
“Não se tratava de pesadelos mas de insónias. Tinha a sensação de que as almas das vítimas pairavam por toda a parte. Senti-me estranha depois de saber que milhões de pessoas tinham sido mortas ali, naquele lugar.”

Prisioneiros à chegada a Auschwitz são divididos por guards nazis em grupos: os que iriam para campos de trabalhos forçados e os que seriam enviados para as câmaras de gás
© Vashem | AP
Ohood não teve medo de partilhar o que viu e ouviu. “Nada tenho a esconder”, frisou. “Outros não pensam deste modo, provavelmente porque ficaram atemorizados com as reacções do movimento palestiniano anti-normalização (o chamado BDS – boicote, desinvestimento e sanções].”
Hani Smirat, por seu turno, não hesita em classificar esta viagem como “o maior dos desafios pessoais – por duas razões”. Primeira: “contrariou os apelos do BDS”; e segunda, porque “ocorreu no momento errado, quando fracassaram as negociações de paz [mediadas por John Kerry, secretário de Estado norte-americano].”
“O conceito de normalização”, explicou Smirat, numa entrevista por Facebook, “não está bem definido e divide a sociedade palestiniana. Embora todos sejam favoráveis a um boicote económico, outros há, como eu, que não vêem necessidade de um boicote académico e/ou político.”
“Não foi nada fácil, para mim, participar nesta viagem académica e de carácter humanitário, mas decidi que precisava de explorar a realidade do Holocausto”, acentuou.
“As vítimas [dos nazis] não têm culpa dos crimes da ocupação israelita. Fui seleccionado porque a minha área de estudo é resolução de conflitos e a minha tese relaciona-se com a opção de um só Estado.” O professor Daoudi é adepto de dois Estados.
“O Holocausto foi um crime imoral que reflecte um plano de opressão e injustiça para acabar com uma raça humana”, disse Smirat. “Na visita, centrámo-nos nas imagens do campo de concentração. Essas imagens não saem da minha cabeça. Como palestiniano a viver sob ocupação e como activista pela paz, foi horrível ver as câmaras de gás onde dezenas de milhares de judeus foram brutalmente mortos.”
“A certa altura, dei por mim a pensar no modo como o Exército israelita lança sobre a Faixa de Gaza granadas de gás proibido internacionalmente, matando dezenas de pessoas, muitas delas crianças.”
“O que vi em Auschwitz magoou-me como se me tivessem apunhalado pelas costas”, referiu Smirat. “Não consigo deixar de estabelecer um paralelo entre o que vi ali e o que vivo diariamente. Hitler matou seis milhões de judeus, o que foi uma tragédia.”
“Entre os palestinianos, também havia 5 milhões de refugiados, 70% dos quais já morreram. Os que sobreviveram não têm esperança de voltar às suas casas, e continuam vulneráveis a injúrias e racismo.
“Os que negam o Holocausto estão cegos – mas também estão cegos os que negam a Nakba [êxodo forçado palestiniano após a criação de Israel em 1948]”, declarou Smirat. “Há mais de 60 anos que vivemos esta dor. Tenho esperança de que os judeus e os judeus israelitas deixem de negar a nossa humanidade.”
Dos estudantes que foram à Polónia nenhum era negacionista do Holocausto, garantiu Smirat. “No entanto, todos lamentamos que Israel use o Holocausto para justificar a ocupação dos territórios palestinianos. Estamos solidários com as vítimas [dos nazis] – o nosso problema é a ocupação.”
Mohammed Daoudi enfatiza que, ao visitar Auschwitz, não esteve a fazer concessões ao inimigo. “Fui lá por mim. Não queria continuar inerte, mesmo que as vítimas do sofrimento pelas quais eu exprimo simpatia sejam o ocupantes que cometem actos violentos. Ódio, racismo e fanatismo propagam um reino de terror, e o medo paralisa as pessoas boas que ficam sem força para protestar contra o Mal, que assim ganha mais poder.
“Fui a Auschwitz para saber o que aconteceu e evitar que se repita”, concluiu. “Creio que é importante quebrar este muro de ignorância e intolerância que nos divide e impede de chegar ao outro lado. Quando um dos meus alunos me perguntou por que devíamos conhecer o Holocausto se os Israel até quer proibir a palavra Nakba, a minha resposta foi simples: ‘Porque estamos a fazer o que é certo.”
Este artigo, com um título diferente, foi publicado originalmente no jornal EXPRESSO, em 5 de Julho de 2014 | This article, under a different headline, was originally published in the Portuguese newspaper EXPRESSO, on July 5 2014