Os palestinianos veneram-no como símbolo nacional. A sua prosa e poesia fazem parte de currículos escolares do Levante ao Magreb. Mais de cinco anos após a morte de Mahmoud Darwish (2008), os mistérios da sua vida são desvendados, num documentário sublime, pela cineasta Ibtisam Mara’ana Menuhim. (Ler mais | Read more…)

Mahmoud Darwish: “Não gosto de ser o representante do povo palestiniano, porque dificilmente me represento a mim próprio”, disse ele à poeta israelita Helit Yeshurun
© Cortesia de Ibitisam Mara’ana Menuhim | Courtesy of Ibtisam Mara’ana Menuhim
Documentário inspirado nos versos do poema Bilhete de Identidade, de Mahmoud Darwish, Write Down, I am an Arab (“Escreva, sou um Árabe”) começa com um diálogo em hebraico.
E assim começa também um retrato até agora desconhecido do poeta da Palestina que perdeu o direito de regressar à sua aldeia de al-Birwa, integrada em Israel, mas não matou a paixão pela judia Tamar Ben Ami.
Escrito, produzido e dirigido por Ibtisam Mara’ana Menuhim, cineasta palestiniana de cidadania israelita, Write Down I am an Arab foi exibido, com enorme aplauso, em dois festivais: no Canadá (HotDocs, de Toronto) e em Israel (DocAviv, onde ganhou o “Prémio da Audiência). Valeria a pena exibi-lo, também, em Portugal, no próximo DocLisboa.
O diálogo com que Ibtisam Mara’ana inicia a história de Darwish, foi gravado em 1996. São fragmentos de uma conversa entre a poeta e crítica literária israelita Helit Yeshurun, quando o “processo de paz” aparentava esperança.
Helit é filha de outro poeta gigante, o judeu Avot Yeshurun, que, contra a vontade dos pais, emigrou da Ucrânia para a Palestina, em 1925. Perderia toda a família no Holocausto, na Polónia, e o “sentimento de culpa” impregna os seus escritos.
Após a criação do Estado de Israel, Avot foi das raras figuras literárias a reconhecer o sofrimento dos palestinianos, considerando que estes e os judeus da Europa “partilhavam uma tragédia comum”. A obra de Avot é preciosa e única por salpicar a língua hebraica com os alfabetos yidish e árabe.
“Penso que todos os poetas sonham ser a voz dos outros”, confidencia Darwish a Helit. “Isso incomoda-o?”, pergunta-lhe ela. “Não gosto de ser o representante do povo palestiniano, porque dificilmente me represento a mim próprio.”
A partir daqui, Ibtisam Mara’ana introduz a mais perfeita versão musical de um poema emblemático de Darwish entoada por Mira Awad (também ela palestiniana de cidadania israelita). E os segredos vão sendo desvelados. “Cada canção de amor que escrevo, dizem que é sobre a pátria. ‘Rita’ é um poema erótico. Escolhi esse nome mas o nome dela não é Rita. É uma mulher judia”, revela o escritor.
Entre Rita e os meus olhos / há uma espingarda/ E quem conhece Rita/ ajoelha-se e reza à divindade / naqueles olhos cor de mel/ E eu beijei Rita/ quando era jovem/ E lembro-me como ela se aproximou / e como o meu braço/ tocou as suas tranças adoráveis/ Ah Rita

Mahmoud Darwish quando namorava com a judia Tamar Ben Ami, a quem escreveu várias cartas de amor, alguns deles vistos pelos palestinianos como uma referência à pátria
© Cortesia de Ibtisam Mara’ana Menuhim | Courtesy of Ibtisam Mara’ana Menuhim
Antes de Rita/Tamar, outra judia marcou o percurso de Darwish: Shoshana Lapidot, professora de hebraico, enviada pelo governador militar para Yasif, a aldeia onde a família do poeta se instalou quando o pai decidiu fugir das tendas de refugiados no Líbano.
Foi Shoshana quem apresentou ao seu aluno “modesto, discreto e bem comportado, de cerca de 15 anos”, o ilustre poeta israelita, Haim Bialik (1873/Rússia – 1934/Áustria), que muito influenciou os seus temas. “Nós temos saudades dos mesmos lugares”, diz Darwish.
“É natural que falemos de Inverno, de uma janela, de pássaros, do cheiro de uma terra distante depois das primeiras chuvas. É como uma língua em que pessoas saudosas se juntam, mesmo que percorram caminhos diferentes.”
Entra, agora, em cena Tamar Ben Ami. Darwish não nos engana quando glorifica a judia de “olhos cor de mel”.
Ela preserva a beleza da adolescência, quando ambos se apaixonaram enquanto militantes do movimento comunista israelo-palestiniano. Ela, sentada numa poltrona, vai mostrando as muitas cartas que o poeta lhe endereçou, algumas enviadas para o número 28 da Rua Palmach (nome do grupo de resistência judaica de onde emergiram as actuais Forças de Defesa de Israel).
Tamari [diminutivo carinhoso], não estou a escrever mas a sussurrar ao teu ouvido/ (…) Estás no meu quarto/ na minha cama/ na minha mala/ no meu livro / na minha caneta/ no meu coração e no meu sangue Teu/ Mahmoud
Ibtisam Mara’ana vai bordando com imagens de arquivo e actuais todas as entrevistas, como a do irmão de Mahmoud que ainda se lembra da fuga coagida e do retorno penoso em 1948.
O amor de Tamari era impossível – e mais ainda se tornou quando ela, dançarina profissional, se juntou a uma banda da Marinha israelita durante a guerra de 1967.
Tamari, sinto-me como se tivesse sido ferido gravemente (…) / Podes não gostar de ler estas palavras duras, cruéis/ porque desgraçam a pureza do amor em que acreditavas /Peço-te que me perdoes/ (…) O meu coração só se abriu durante uns 30 minutos e agora vou fechá-lo /Adeus/ Teu/ Mahmoud
Em 1967, Mahmoud Darwish foi preso, porque as autoridades militares israelitas consideravam os seus poemas subversivos (os censores sauditas, numa recente feira literária em Riad, proibiram-nos como “blasfemos”). Em 1970, ele mudou-se para Moscovo.
Samih al-Qassim, poeta palestiniano-israelita, teve dificuldade em perdoar o amigo por “atraiçoar” estes versos: O meu país não é uma mala/ Eu não sou um viajante. “Ele, afinal, partiu”, lamentou Samir.

A jovem Tamar Ben Ami, quando namorava, secretamente, com Mahmoud Darwish
© Cortesia de Ibtisam Mara’ana Menuhim | Courtesy of Ibtisam Mara’ana Menuhim
Em 1973, alojado numa capital libanesa em guerra civil, Darwish ganhou fama como poeta da Thawra (revolução). Em 1988, escreveu a declaração de independência de um Estado palestiniano. Em 1992, zangou-se com Yasser Arafat, o chefe histórico da OLP, por ter assinado os Acordos de Oslo.
Foi também em 1992 que Darwish entrou na Cisjordânia, pondo fim ao exílio. À chegada, um jornalista perguntou-lhe se ainda se considerava cidadão israelita.
“Eu era. Agora não sei”, disse. “Gostaria de ser?”, insistiu o interlocutor. “É uma questão sensível porque me tornei, oficialmente, um cidadão palestiniano, com um Bilhete de Identidade palestiniano.”
Na diáspora, Darwish conheceu outro amor: Rana Qabbani (ou Kabbani), filha de um embaixador sírio nos EUA e que reside actualmente em Londres.
Ele tinha 34 anos e ela 18. No dia em que foram apresentados, ele pediu-a em casamento. Ela aceitou, e a união consumou-se nessa noite. Viveram juntos seis meses, em Beirute, e separaram-se.
Seis meses depois, voltaram a casar-se, e instalaram-se em Paris. Sem filhos, sob ameaças de morte, concordaram em divorciar-se. O amor perdurou.
No documentário, Rana, que é sobrinha do poeta sírio Nizar Qabbani (1923-1988) e foi casada com o jornalista Patrick Seale (1930-2014), biógrafo do Presidente sírio Hafez al-Assad (1930-2000), emociona-se ao ler uma das cartas de Darwish que incluiu num livro que ela traduziu, para inglês: In Sand and Other Poems:
As tuas palmas das mãos/ A minha voz / O teu amor / A minha espada / Os teus olhos / Dois rios / A tua presença/ Eu moribundo/ A tua ausência / A minha morte
Ibtisam Mara’ana Menuhim assume que quis dar a conhecer Darwish através de dois amores da vida dele. “Cresci numa sociedade árabe chauvinista que discrimina as mulheres, por isso luto pelas minhas identidades feminina e nacional em Israel”, disse-nos, em declarações por e-mail.
“Os protagonistas nos meus filmes reflectem contextos sociais israelitas e palestinianos que são, na maior parte das vezes, ocultados, porque são os mais feios. Eu lido com estes temas porque há uma enorme falta de justiça em relação às mulheres.”

A síria Rana Qabbani casou-se duas vezes com Mahmoud Darwish. A residir actualmente em Londres, define-se como escritora e traduziu alguns versos do poeta palestiniano
© Le Monde Diplomatqiue
Ibtisam Mara’ana nasceu em 1975 em Faradis, aldeia árabe e muçulmana no Norte de Israel. Aos 18 anos, ingressou numa escola de cinema onde iniciou um processo criativo – “sem nunca antes ter visto um filme”, conta. Paradise Lost (“Paraíso Perdido”), a estreia, foi “o primeiro filme realizado da perspectiva das mulheres palestinianas”.
Há cerca de uma década, a cineasta fundou a Ibtisam Films, dando primazia a filmes que “expõem os problemas das mulheres e das minorias em Israel e nos territórios ocupados, abordando temas como género, classe, racismo, identidade identidade e colectiva, a história presente e os sonhos de futuro.”
“Nunca pensei fazer um filme sobre Mahmoud Darwish, como homem e poeta nacional”, confessa nesta entrevista. “Em 2010, fiz um documentário chamado 77 Steps (“77 Passos) – a minha história com um ex-namorado canadiano.”
“Durante dois anos, documentei a minha vida e a dele, as dificuldades que enfrentámos como casal judeu-palestiniano. Lembro-me do medo que senti durante a realização do filme, por ser muito pessoal.”
“Um dos maiores temores era que a sociedade árabe não o acolhesse bem”, precisou. “Memorizei uma ‘resposta segura’ se alguém me atacasse: se Darwish pôde escrever poemas sobre a sua amada judia (Rita and the Rifle), eu podia fazer o mesmo, com o meu namorado judeu. No final da produção, tentei descobrir quem era Rita.”
“A investigação durou meio ano, mas encontrei-a. Tamar Ben Ami vive em Berlim e aceitou revelar a sua história com Mahmoud, 40 anos antes, além de mostrar as cartas que ele lhe enviara. Conclui então que só através daquela história de amor eu poderia contar a história do poeta nacional”, sublinhou Ibtisam Mara’ana.
“Como palestiniana que vive em Israel, nunca me identifiquei com o hino nacional israelita (Hatikva) nem com a bandeira israelita”, adiantou.
“O poema Bilhete de Identidade é, para mim, uma espécie de hino nacional, embora o meu favorito seja Rita and the Rifle, por descrever o conflito palestiniano-judaico, simultaneamente, do ponto de vista nacional e pessoal.”

Ibtisam Mara’ana, palestiniana-israelita escreveu e realizou um documentário sublime
© Cortesia de Ibtisam Mara’ana Menuhim | Courtesy of Ibtisam Mara’ana Menuhim
Bilhete de Identidade
Escreve
sou árabe
o número do meu bilhete de identidade é o
cinquenta mil
tenho oito filhos
e o nono chegará… depois do Verão
Ficarás irritado?
Escreve
sou árabe
trabalho com os meus companheiros de infortúnio
numa pedreira
tenho oito filhos
para eles extraio da rocha
a carcaça do pão
a roupa e os cadernos
E não venho mendigar à tua porta
não me curvo
no átrio da tua casa
Ficarás irritado?
Escreve
sou árabe
Tenho um nome vulgar
sofro num país
que ferve de raiva
As minhas raízes…
fixadas antes do nascimento do tempo
antes da eclosão dos séculos
antes dos ciprestes e das oliveiras
antes da erva
O meu pai…
da família do arado
e não dos senhores de Nujub
O meu avô, um camponês
sem árvore genealógica
Ensinou-me os movimentos do sol
antes da leitura
A minha casa
uma cabana de guarda
feita de canos e ramos
Estás contente com a minha condição?
tenho um nome vulgar
Escreve
sou árabe
cabelos… pretos
olhos… castanhos
sinais particulares
na cabeça um ‘keffyah’ seguro por um cordel
A palma da minha mão, rugosa como a rocha
arranha a mão que aperta
o meu endereço: sou duma aldeia perdida, sem defesa
e todos os seus homens estão no campo e na
pedreira…
Ficarás irritado?
Então
escreve
ao alto da primeira página
Eu não odeio os meus semelhantes
e não ataco ninguém
Mas… se um dia me obrigarem a passar fome
comerei a carne do meu espoliador
Fica atento… fica atento
à minha fome
e à minha cólera
(In: “Pequena antologia da Poesia Palestiniana Contemporânea; Selecção e Tradução de Albano Martins, Pp: 25/26/27)

Mahmoud Darwish, no intervalo de uma leitura de poesia na cidade de Haifa, Norte de Israel, em Julho de 2007. O poeta nacional palestiniano morreria a 9 de Agosto de 2008. O seu estado de saúde agravara-se em consequência de uma cirurgia ao coração, nos Estados Unidos
© Gil Cohen Magen | AP Photo
Este artigo, agora actualizado, foi originalmente publicado no jornal EXPRESSO, em 21 de Junho de 2014| This article, now updated, was originally published in the Portuguese newspaper EXPRESSO, on June 21, 2014