A revolução de Maria

Ela tinha dez meses quando a enfeitaram de cravos para assinalar, no jornal PÚBLICO, um quarto de século do 25 de Abril. O que se segue são histórias de uma jovem e do pai que a inspirou; de uma imagem e do fotógrafo que a captou. (Ler mais | Read more…)

© Miguel Manso

© Miguel Manso

Terá sido “por volta dos seis anos” que a menina acarinhada como “o bebé do PÚBLICO” viu, pela primeira vez, a sua fotografia na capa do jornal evocativa do 25.º aniversário da Revolução de 25 de Abril. Depois disso, já folheou “algumas vezes” o exemplar que o pai guarda com zelo numa capa de plástico.

Do dia em que a despiram sobre uma espuma floral de cravos vermelhos, um deles na mão direita, Maria Oliveira Sobral Lopes não guarda memórias – tinha dez meses de idade. Mas guarda um conselho: “Não te deixes deslumbrar com elogios, e usa a liberdade para tomar decisões boas, sem magoar os outros.”

“Só na escola primária comecei a perceber o que era a revolução – Salazar, por exemplo, era um utensílio de cozinha que a avó usava para fazer bolos”, conta Maria, agora com 14 anos, longos cabelos castanhos que brilham e esvoaçam, em tarde de sol e vento num jardim de Lisboa.

Mantém o sorriso tímido, os olhos doces e o rosto sereno com que enfrentou a câmara de Miguel Silva.

A edição que teve Maria como capa (título: “A revolução hoje”) foi planeada e realizada, do princípio ao fim, pelos jornalistas, fotógrafos e designers gráficos do jornal nascidos a partir de 1970, com raras excepções ditadas pela actualidade.

A entrada para o Especial, primeira secção de um total de 80 páginas, abria assim: “25 anos depois do 25 de Abril, há novas tensões sociais em crescendo. Que afectam todo o mundo ocidental. A crise do capitalismo global, o declínio do Estado-providência e o desemprego estrutural. E à esquerda não há alternativa ao sistema neoliberal.”

Os textos seguintes, centrados no país, identificavam “as razões para uma nova ruptura”, mostravam “os caminhos que eventuais revolucionários trilhariam para conquistar o poder”; e interrogavam “25 jovens com as mesmas idades dos homens que fizeram a Revolução. (…) Para saber quais são as suas causas”.

Quanto ao resto do mundo, noticiava-se os funerais das vítimas do massacre no liceu de Columbine, nos Estados Unidos, e o Novo Conceito Estratégico da NATO, que permitia agir sem mandato da ONU, numa altura em que alastrava a guerra nos Balcãs. Enviados a Díli davam conta de um êxodo incessante de Timor-Leste antes da independência; um outro, na Albânia, fazia (para a revista desse domingo) o retrato de “um país governado pelas máfias”.

“Só na escola primária comecei a perceber o que era a revolução (na foto) – Salazar, por exemplo, era um utensílio de cozinha que a avó usava para fazer bolos”, conta Maria
© Alfredo Cunha

A escolha de Maria, filha de José Miguel Pessoa de Amorim Sobral Lopes, na altura gráfico no jornal, foi justificada por um colectivo de editorialistas deste modo: “Porque é à geração dela que queremos passar testemunho de uma revolução que, tendo apenas 25 anos, num país com mais de 800, é ainda uma criança, e porque queremos olhar para o futuro sem esquecer o passado.”

Deixaram também esta pergunta: “Será que se limitará a receber o nosso testemunho ou vai querer ser, ela própria, uma revolucionária?”

“Não me vejo como revolucionária, se isso significar ser uma radical”, assegura Maria, sem hesitação. “É bom sentir que sou livre. Não sou daquelas pessoas que estão sempre a queixar-se e a culpar os outros.”

“É certo que há quem tenha poder e não o esteja a exercer bem, mas acredito que encontrar uma solução para os nossos problemas não cabe apenas aos governantes.”

“Não estou a par dos programas dos partidos, mas acho que é preciso coragem para se ser político – um bom político, não aquele que prejudica os mais fracos, sem opções e alternativas.”

“Na aula de Geografia, o professor disse-nos que quando há défice democrático a tendência é para favorecer as classes dirigentes”, prossegue Maria.

“E um amigo meu, que é bastante activista, sugeriu que os políticos fossem voluntários durante um ano – bastava um ano sem receberem salário – para avaliar quem está, realmente, empenhado em mudar a sociedade.”

E Maria continua, voz firme: “Se eu tivesse de qualificar alguém de revolucionário, seria o meu pai. Ele tem imensas ideias boas. Defende, entre outras coisas, que os lares de idosos deveriam estar ao lado de infantários.”

“As pessoas mais velhas têm muita experiência e paciência; em troca disso, as crianças ajudariam a diminuir-lhes a solidão.”

Maria frequentou, até ao 5.º ano de escolaridade, o Colégio Moderno, fundado pelo pai do ex-Presidente da República Mário Soares, em 1935/36, e com alunos ilustres como o irreverente realizador João César Monteiro (que haveria de ser expulso), e professores regentes como o líder comunista Álvaro Cunhal.

“Foi aqui que comecei a ouvir falar da revolução, como um conto de fadas”, relata a jovem, com eloquente ingenuidade. “Salazar era o mau da fita, a liberdade era a princesa e o povo era o príncipe. Só que nem todos ficaram felizes. Tenho amigos com familiares que foram perseguidos depois de cair o antigo regime.”

“O que aconteceu em 1974 foi uma coisa boa”, acredita Maria. “Não vivi antes da revolução, mas imagino que devia ser difícil não poder falar com medo de ser preso. Por outro lado, se calhar, alguns também abusaram da liberdade e, por isso, é que há tanta gente egoísta. É cada um por si.”

“Estou consciente de que sou privilegiada, porque tenho apoio da família e amigos. Não me falta nada. O percurso escolar é bom. De 1 a 5 valores, não tenho menos de 4. Sou tão boa a Português como a Matemática. Mas também sei que já não basta empenhar-me e querer algo.”

“Quando ouço notícias sobre a taxa de desemprego, sempre a subir, reparo que nem tudo depende da minha vontade”, adianta Maria.

“Ainda não decidi, por isso, que curso superior seguir. Sinto-me inclinada para escolher Medicina, mas há hospitais a fechar. Já pensei em Enfermagem, mas depois vi na televisão enfermeiros a emigrar.”

“Quero viver e trabalhar em Portugal, mas as duas coisas parecem incompatíveis. Aspiro a ser independente, não viver em casa da mãe ou do pai, mas o país manda embora as pessoas mais inovadoras e criativas. Sair deixou de ser escolha individual e tornou-se obrigação.”

“Não vivi antes da revolução, mas imagino que devia ser difícil não poder falar com medo de ser preso”, admite Maria. (Na foto, uma escola no Bairro Alto, em Lisboa, antes de 25 de Abril)
© Alfredo Cunha

Relendo excertos da edição de 1999, Maria dá conta de progressos, como um maior acesso das mulheres ao mercado de trabalho, o surgimento de novas tecnologias e o princípio de mais tolerância (embora ainda envergonhada) à diferença, sobretudo no que toca à homossexualidade. O caminho a percorrer é longo, ela reconhece.

“Não se pode entregar às pessoas uma frigideira com azeite sem os ovos para fazerem omeletes. Não gosto do que vejo à minha volta. Vários colegas deixaram de poder ir a visitas de estudo porque os pais deles não têm dinheiro. Há mães que não conseguem alimentar os filhos.”

“Penso às vezes numa entrevista que fiz, para um trabalho da escola, ao meu avô materno”, continua. “Ele formou-se em Direito. No serviço militar obrigatório, dava assistência jurídica em Luanda, Angola, durante a guerra colonial.

“Nesta conversa, lamentou: ‘Perdi três anos da minha vida para nada; só sofremos.’ E nem sequer foi ferido. Eu quero contribuir para a mudança, não desperdiçar oportunidades. O mais importante, para mim é, um dia, poder sentir que mudei a minha vida e a vida de alguém.”

Maria, que leu Alice Vieira e Sophia de Mello Breyner na infância e é “obrigada” a estudar Os Lusíadas, prefere Stephanie Meyer (autora da saga Crepúsculo), Aprilynne Pike (O Beijo dos Elfos e Feitiço), Nicholas Sparks (Diário de Uma Paixão) e J. K. Rowling (Harry Potter), como a maioria dos adolescentes.

“Adoro histórias com vampiros, ficção científica e romances que fazem chorar – sim, sou sentimental. O pai insistiu em que eu pegasse em José Saramago, porque ele adorou A Viagem do Elefante e Ensaio sobre a Cegueira, mas a leitura era complicada.”

Sobre música a garota aprimorada em jeanssweat-shirt deslizando sobre o ombro, blusão e ténis – uma parte desta vaidade sustentada por uma mesada de 20€ – deixa claro: “Não pertenço ao clube de fãs de Justin Bieber. Os meus favoritos são Mumford & Sons, The Script, Maroon 5, Ed Sheeran, entre outros.”

Os veteranos Zeca Afonso ou Sérgio Godinho não fazem parte da sua playlist, tal como os mais jovens cantores e bandas portugueses, que desconhece.

Maria dá conta de progressos desde a Revolução de 25 de Abril (na foto), como um maior acesso das mulheres ao mercado de trabalho, o surgimento de novas tecnologias e o princípio de mais tolerância à diferença, sobretudo no que toca à homossexualidade. O caminho a percorrer é longo, ela reconhece
© Alfredo Cunha

Filha de um casal divorciado, Maria não poupa elogios ao pai. “Ele tem atitudes que às vezes não esperamos, mas são as correctas. Se eu tiver filhos, é assim que gostaria de os educar. Ele diz: “Vai, experimenta, aceita o que és. Abre e ouve o teu coração.”

Sempre foi permissivo, e nunca quebrei a sua confiança. Às vezes, quando eu e o meu irmão éramos miúdos, e o pai estava com amigos, nós podíamos ir explorar o lugar das nossas brincadeiras, mas bastava ele assobiar e nós aparecíamos – esse era o sinal. Ele via-nos e ficava descansado.”

Tenho muito orgulho no trabalho que ele está a desenvolver, em prisões, com pessoas que cometeram crimes graves, mas que estão a cumprir o castigo”, sublinha Maria, aludindo à iniciativa ricoxete.com, que fabrica almofadas com qualidades terapêuticas, a partir de caroços de cereja e de azeitona.

“Estas pessoas ganharam oportunidade de aprender e obter sustento para as suas famílias. O pai ajuda-me a ser responsável. Dou passos pequenos, e peço permissão. Vou a concertos (o último foi ao Rock’in Rio, o ano passado) mas sob vigilância, porque ainda não sou adulta, mas sempre me senti livre.”

Na companhia do filho Manuel, de 11 anos, que foi buscar à porta da escola, para o fim-de-semana que todos passam juntos a cada quinzena, é a vez de Zé Miguel (como ele gosta de ser tratado) contar como foi.

“A ideia que tenho é a de que, no jornal, andavam à procura de uma criança para ser fotografada e alguém veio ter comigo a perguntar se não me importava que fosse a Maria. Eu aceitei.”

“Sobre uma cama de cravos, espetados num rectângulo daquela espuma de cor verde para fixar flores, deitámos uma menina bem-disposta. Correu lindamente, e ela portou-se muito bem.”

“O mais incrível é que, no dia em que a foto da minha filha saiu na capa, na mesma edição, foi publicado [na página 76] um anúncio a participar o funeral da minha avó Maria Elvira.”

O pai de Maria tinha 10 anos no dia da Revolução. “Estava na escola e mandaram-nos para casa, com ordem para não sairmos à rua”, lembra.

“Os meus pais eram neutros, politicamente, mas recebiam visitas, como o historiador Cláudio Torres, que é comunista. Eu, gaiato e curioso, ouvia conversas, com sussurros sobre a PIDE.”

“Quando se deu o 25 de Abril, pensei: “As prisões vão encher-se de pides; agora é a vez de eles serem presos. Mas não foi assim. No dia seguinte, tudo parecia normal. Ninguém matou ninguém.”

“Foi gira, a liberdade, embora com ela chegasse também um inferno”, diz Zé Miguel, que não completou o 10.º ano de escolaridade, embora tenha concluído vários cursos técnicos e profissionais.

“No Liceu D. Pedro V, as drogas duras disseminaram-se a toda a velocidade. Nem os meus pais, nem os professores, nem a sociedade estavam preparados.”

“Hoje, eu pergunto à minha filha se lá na escola dela fumam charros e ela diz que sim. E eu digo-lhe: ‘Se queres fumar, pedes-me um cigarro, não tentes isso às escondidas.’ Quero que os meus filhos sejam coerentes e tenham a mente aberta. Se disserem que não, têm de saber explicar imediatamente a razão.”

“Foram mais de dez anos de calvário – dos 16 aos 28 anos – e a sofrer duplamente, porque ia trabalhar a ressacar”, vai revelando.

“Um dia dei-me um ultimato: ‘Se continuas assim é a tua desgraça, e morres sem ter filhos; tens de dar o salto, é agora ou nunca.’ Peguei num carrito que tinha e segui até Estugarda, para me encontrar com um amigo alemão.”

“Quando se deu o 25 de Abril, pensei: ‘As prisões vão encher-se de pides; agora é a vez de eles serem presos'”, diz José Miguel Amorim, o pai de Maria. “Mas não foi assim”
© Alfredo Cunha

“Foram 48 horas a conduzir sem consumir. Chorei durante metade do percurso. Desintoxicado em 15 dias, graças a saunas e banhos turcos, regressei a Portugal, mas ainda andei oito anos nos Narcóticos Anónimos.”

“Todos os dias, a qualquer hora, em diferentes pólos. Não mais tive recaídas. Não bebia nada que pudesse alterar o meu estado de espírito.”

“Conheci a mulher que seria a mãe dos meus filhos quando ela, estudante universitária, tinha 18 anos, menos dez do que eu. Para ter qualidade de vida, todas as manhãs, às 11h, eu entrava com a Maria na piscina de um ginásio ao pé de casa.”

Quando saiu do jornal, em Lisboa, Zé Miguel abdicou do subsídio de desemprego e formou-se, no Porto, em condução defensiva. Nessa qualidade, vangloria-se de ter ensinado Elizabete Jacinto “a conduzir camiões para o rali Paris-Dakar”. Seguiu-se uma breve carreira de actor no Teatro Trigo Limpo, em Tondela, em digressão por várias povoações, com a peça Num Abril e Fechar de Olhos.

Trabalhou, depois, como empregado de mesa num restaurante e tentou, sem êxito, gerir um bar. “Estava há um ano quase sem fazer nada – pratiquei a arte marcial tai chi e ioga, tive aulas de tango e abordei a técnica da cientologia”, continua o pai de Maria.

“Uma noite, apercebi-me de que os meus dois filhos disputavam um saco que a minha mãe fizera e lhes oferecera. Pensei: “Se estas crianças gostam disto, é porque isto é bom.” As crianças, creio eu, não se enganam.”

“Eu era pequenina”, precisa Maria, “quando a avó Luísa trouxe um saquinho do estrangeiro. Ela tentou fazer um igual, e ia guardando os caroços das cerejas que comíamos.”

“Quando ficou pronto, colocou-o no microondas, seguindo as instruções do que tinha comprado na sua viagem. E percebemos, eu e o meu irmão, que quem dormisse com aquilo ficava mais quentinho. Por isso estávamos sempre a reclamá-lo. Isso chamou a atenção do pai.”

Em 2007, Zé Miguel criou a ricoxete.com (escreve com “x” e não com “ch” porque, explica, “é mais fácil para os estrangeiros pronunciarem”).

O nome do que ele designa por “projecto”, porque “é mais dinâmico do que uma empresa”, tem a ver com o trajecto pessoal: “Se não vou por aqui, vou por ali; ora bato numa parede, ora bato noutra, mas resisto.”

Num folheto que acompanha as almofadas que comercializa, cada uma contendo “1500 caroços de cereja ou seja 350 gramas”, lê-se que “substitui o tradicional saco de água quente, sendo ideal para relaxamento muscular, massagens, alívio de dores, nas costas ou no pescoço, menstruais ou de menopausa, de amamentação ou de osteoporose”.

Outra qualidade é a de “reduzir a factura de consumo de electricidade”, já que “um a três minutos no microondas é suficiente para dormir uma noite inteira sem necessidade de ligar o aquecedor”.

“Foi um ano de planeamento”, especifica Zé Miguel. “Até as medidas das almofadas, 25×14,5cm, foram calculadas de modo a resultarem no chamado “golden number” ou número dourado, simbolizado pela letra grega phi, porque eu queria congregar tudo de positivo no Universo.”

Com o dinheiro resultante da venda da casa onde habitava com a ex-mulher, e evitando requerer financiamento externo, o pai de Maria mudou-se para Caxias.

Registou a patente, comprou tecido de algodão, e encomendou dez toneladas de caroços de cereja à Sérvia, na antiga Jugoslávia. Não havia quantidade suficiente em Portugal. Depois passou a importar de Espanha.

A mão-de-obra necessária para fazer 10 mil almofadas é onerosa cá fora. “Decidi ir bater à porta das prisões, onde as tarefas são pagas tendo como referência o salário mínimo nacional. Fui bem recebido e agora até sou conhecido como “O senhor do caroço” ou “do tremoço””, diverte-se.

Com a ajuda de uma betoneira, “onde apenas se misturam água e brita, sem produtos químicos”, reclusos no Estabelecimento Prisional de Sintra, lavam, tratam e secam os caroços ao sol. As almofadas, “100% naturais, recicláveis, biodegradáveis e hipoalergénicas”, são cosidas por mulheres na cadeia de Tires, em duas máquinas de costura que Zé Miguel comprou e colocou na prisão.

O orçamento inicial foi de cerca de 20.000 euros. Cada almofada custa 22,5€, mas, se for enviada pelo correio, o preço, com portes, ascende a 27,61€.

“O volume de negócios é residual”, reconhece o empresário, mesmo que se tenha internacionalizado. “Vendo para o Brasil, África do Sul, Rússia e outros países, mas ainda não esgotei o primeiro stock. Tenho um armazém cheio de almofadas.”

“Não me preocupa, porque não quero ser muito rico, ter uma casa de luxo ou um carro de milhões. Os meus produtos não são perecíveis. Eu vou vendendo e vou vivendo.”

“Se eu tivesse de qualificar alguém de revolucionário, seria o meu pai (José Miguel Amorim, na foto)”, diz Maria. Ele tem imensas ideias boas”
© Miguel Manso

Às almofadas térmicas, que venceram o 2º Prémio de Design Social num concurso em Tallinn (Estónia), Zé Miguel juntou, em 2010, um novo elemento com as mesmas propriedades: o Oliveira. Trata-se de um boneco feito com caroços de azeitonas, tendo como cliente-alvo as crianças.

Posteriormente, a Fundação Saramago adoptou o Oliveira, depois de ter cativado a atenção de Pilar del Río, a viúva do Nobel da Literatura 1998. Está agora à venda na Casa dos Bicos, em Lisboa, e em Lanzarote, residência-biblioteca nas Ilhas Canárias, onde o escritor viveu 18 anos.

Há duas semanas, o dono da ricoxete.com enviou um boneco ao neto de Manoel de Oliveira, com o pedido explícito de que o faça chegar ao cineasta de 105 anos. O próximo destinatário será o Papa Francisco. “Eu acho que ele vai achar piada”, confia.

Há um país que marcou Zé Miguel e Miguel Silva, o repórter que fotografou Maria: a Dinamarca, onde ambos trabalharam, o segundo para a organização não-governamental Humana-People to People, depois de um curso de instrutor de desenvolvimento e acção humanitária em África. “Há muito frio e pouca luz, mas ali tudo funciona bem”, destaca.

“Na Dinamarca, o poder respeita a sociedade e a sociedade respeita o poder – o que a revolução não conseguiu em Portugal”, aponta o fotógrafo de 42 anos que, ao serviço da ONG, esteve em Moçambique e na Roménia, depois de deixar o jornal.

“Os nórdicos gostam do nosso sol e da nossa comida, mas não querem investir aqui porque há muita burocracia e a justiça é lenta.”

“Naturalmente que valeu a pena o 25 de Abril, porque nos deu a liberdade”, sublinha Miguel Silva, lembrando que “o pai lavou pratos no exílio”, e lastimando que, na Madeira, de onde a sua família é oriunda, “ainda se vive numa ditadura onde as pessoas votam, porque toda a gente tem alguém a trabalhar para o governo de Alberto João Jardim”.

Na Dinamarca, realça, “chegar com dois minutos de atraso é como cometer um crime. Há um grande investimento na educação. As pessoas são realmente dedicadas ao trabalho – não bebem álcool à hora do almoço para não afectar o rendimento – e são muito competentes. Não têm a cultura do deixa-andar nem a da ostentação – esta é como se fosse pecaminosa”.

Aos 18 anos, Zé Miguel foi também até uma localidade nas proximidades de Copenhaga, no âmbito de um intercâmbio de jovens, semelhante ao actual programa Erasmus, através dos Serviços de Emprego Europeus, quando a sua mãe, agora reformada e com 71 anos, era ali funcionária. “Comprei uma viagem de InterRail e precisei de um visto, porque ainda havia fronteiras, e era preciso cambiar moeda”, explica.

“Fui integrado num grupo de várias nacionalidades, para tomar conta de alunos numa escola que ficou aberta porque os pais decidiram, nas férias, restaurar praças e jardins, e precisavam de manter os filhos ocupados, de preferência em contacto com outras culturas.”

“Havia ali uma sala para as crianças aprenderem a disciplina de Gestão Doméstica, que ensinava a cozinhar, a lavar roupa e louça. Extraordinário! Não me espanta que a Dinamarca seja considerada o país onde o grau de felicidade é maior.”

Zé Miguel amargura-se com “a fraca qualidade” dos dirigentes portugueses. “A maioria dos deputados é formada em Direito; talvez porque saem das universidades 4000 advogados por ano. Não faria mais sentido se deputados e ministros tivessem licenciaturas em História ou em Ciência Política?”

“Estes tipos é que pertencem à ‘geração rasca’, para usar a expressão do Vicente [Jorge Silva] usada num editorial, em 1994, motivado por uma imagem em que um rapaz despiu as calças numa manifestação contra as políticas educativas].”

“É bom sentir que sou livre”, diz Maria Lopes. “Não sou daquelas pessoas que estão sempre a queixar-se e a culpar os outros”
© Miguel Manso

Miguel e Zé Miguel, reconhecendo que são hoje “pessoas muito diferentes” graças ao conhecimento de outros povos que o 25 de Abril permitiu, coincidem na descrição de como foi o dia em que Maria se tornou capa do jornal.

“A ideia foi minha”, rejubila o repórter que agora trabalha para o semanário Sol. “Creio que gastei uns dois ou três rolos – ainda não era o tempo do digital. Demorei cerca de meia hora a preparar a menina e uma hora e tal a fotografar.

O pai brincava com a filha e ela nunca fez birras nem chorou. Tinha de ser tudo espontâneo, sem encenação, para ser simbólico e nada ordinário. Demorámos mais tempo porque era necessário preservar a intimidade da bebé, não a deixando demasiado exposta. Na última etapa, não havia cravos suficientes e tivemos de usar Photoshop para os duplicar.”

O fotógrafo não sabe explicar como lhe surgiu a ideia de colocar Maria sobre uma espuma de cravos semelhante às que as floristas usam para garantir a retenção da água e a fixação dos arranjos.

“Terei sido influenciado por uma cena de American Beauty?”, em que pétalas de rosa caem, sedutoramente, sobre a actriz Mena Suvari, cogita Miguel. Isso não era possível porque este filme, de Sam Mendes, teve estreia em 1999… mas em Setembro.

“São coisas que acontecem e não se explicam”, conclui Zé Miguel. “Aos 8 anos a Maria escreveu uma redacção que se chamava O Jardim das Oliveiras. Aproveitei o texto e mudei o título para O Jardim das Cerejeiras, e o texto [num livrinho bilingue, sobre a “marca/conceito, o produto e a Maria”] acompanha agora cada embalagem das almofadas.”

“Quem diria que eu haveria também de fazer bonecos com caroços de azeitonas? Já eu tinha os flyers prontos para a promoção, quando ela, aos 10 anos, me apresenta outra composição, “As cerejas da dona Amilda”, e não resisti a fazer tudo de novo para incluir o que ela escreveu. É tão bonito!”

(…) – Porquê Amilda, porquê cerejas, porque não cravos?

O que a dona Rosa não sabia é que o coração de dona Amilda era como um cravo, um cravo da liberdade, que lhe dava a liberdade de escolher cerejas, talvez para lhe lembrar a infância, quando punha um brinco de cerejas nas orelhas para mordiscar pelo caminho. (…)

O editorial de 25 de Abril de 1999 tem este final: “Os herdeiros de Abril, que muitos acusam de adormecidos, cinzentos, desinteressantes, acomodados, afastados das verdadeiras preocupações dos cidadãos, mostram (…) que talvez tenham guardado o melhor tesouro: a liberdade de escolher o seu caminho sem temer represálias.”

P.S. – No final da reportagem, seguindo o conselho citado no início deste artigo, “Usa a liberdade sem magoar os outros”, Maria pediu para ler o texto antes de ser publicado. Queria ter a certeza de que não magoara ninguém, sobretudo a sua mãe.

Maria Lopes na capa do jornal PÚBLICO evocativa do 25.º aniversário da Revolução de 25 de Abril
© Miguel Silva

Este artigo foi publicado no jornal PÚBLICO em 25 de Abril de 2013 | This article was originally published in the the Portuguese newspaper PÚBLICO, on April 25, 2013

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