No património da humanidade de Tomboctu, Gao e Kidal, o terror calou o canto, a fúria desabou mausoléus e o fogo consumiu manuscritos. Na linha da frente contra a al-Qaeda mobilizaram-se militares, museus e músicos. Como o casal Amadou e Mariam, que veio actuar ao Coliseu de Lisboa. (Ler mais | Read more…)

Não há no mundo um país como o Mali, onde “a música é parte intrínseca do tecido social e da vida política”, diz o britânico Ian Birrell, que co-fundou o Africa Express. Ele não se espantou que “tenham sido os músicos, e não políticos e generais sem escrúpulos, a posicionar-se contra os que queriam demolir séculos de tolerância do sufismo”
© unhcr.org
Au Roi du Café, em Paris, esvazia-se de clientes habituais e turistas ocasionais quando Fatoumata Diawara entra como um majestoso caleidoscópio, porte, pulseiras e piercings de multicores, tranças pintadas de vermelho soltando-se de um turbante florido.
Chega-se aqui, à Rue de la Chapelle, onde se cruzam negritudes, peles africanas e chapéus de judeus ortodoxos, e logo emerge o simbolismo do ponto de encontro.
O restaurant, brasserie e bistrot fica à saída da estação de metro que tem o nome de Marx Dormoy, resistente socialista, preso e assassinado em 1941 por se ter oposto, durante a ocupação nazi de França, a que o marechal Pétain e o governo de Vichy tivessem plenos poderes.
Fatoumata, 30 anos, actriz, dançarina, compositora e intérprete, decidiu resistir aos grupos, como a Al-Qaeda no Magreb Islâmico (Aqmi), que tentam instaurar um califado no Norte do Mali, e formou uma superbanda.
São mas de 40 músicos a cantar: “Será que nos queremos matar uns aos outros? Queremos trair-nos uns aos outros? Vamos permitir que nos dividam? Somos todos do mesmo sangue!”
Um Estado da África Ocidental que, desde a independência em 1960, enfrentou quatro rebeliões no Norte, mergulhou no caos quando o Movimento de Libertação Nacional do Azawad (MNLA, tuaregues independentistas) atacou o exército maliano, a 18 de Janeiro de 2012, aliando-se à Aqmi e aos grupos Mujao e Ansar e-Dine, adeptos de uma “guerra santa”, que se apoderaram de dois terços do território.
Seguiu-se um golpe militar, a 22 de Março, que derrubou o Presidente Amadou Toumani Touré. A 11 de Janeiro deste ano, perante o avanço dos islamistas para Bamako, a capital, a França interveio militarmente.
A retirada dos mais de 3000 soldados mobilizados começou na semana passada, mas uma força de cerca de mil permanecerá na antiga colónia para apoiar uma missão africana sob mandato da ONU.
Enquanto subjugaram três províncias administrativas que a UNESCO classificou como Património Cultural da Humanidade – Tomboctu, Gao e Kidal –, os jihadistas arrasaram mesquitas e mausoléus de santos sufis (místicos do islão), queimaram, roubaram e contrabandearam valiosos manuscritos, chicotearam mulheres que não usassem véu, cortaram membros de presumíveis ladrões e dos que dedilhassem guitarras, apedrejaram suspeitos de adultério, impuseram segregação dos sexos…
“Encontrava-me em Bamako [a capital], quando comecei a ouvir que estavam a ser partidos koras e ngonis, n’jarkas e xalams, baras e balafons, sokus e shekeres, dununs e djembes e outros instrumentos musicais [de cordas e percussão]; mais grave, que impediam as pessoas de cantar”, relembra Fatoumata.
“’O que posso fazer?’, interroguei-me. Temos de nos rebelar em defesa da nossa cultura, das nossas raízes. Não sabia que a França já preparava a sua entrada, mas poucos dias depois de chegarem as tropas, decidi escrever uma canção que fosse um apelo à paz, à unidade e à reconciliação. Assim que a terminei, estive durante três dias ao telefone com artistas que conheço.”
“Foi surpreendente, a reacção positiva de todos. Seguiram-se mais três dias para gravar, para os arranjos e para a edição. Em pouco mais de um mês, estava concluído um vídeo, de sete minutos, Mali-ko (Peace/La Paix) [Paz].”
No esforço de propagar uma voz patriótica una, Fatoumata assegurou a presença de figuras amadas em toda a África Ocidental, designadamente, Khaira Arby, “a deusa de Tomboctu” e a quem os islamistas ameaçaram cortar a língua (ver último vídeo), ou o cantor de reggae Tiken Jah Fakoly, expulso da sua Costa do Marfim e declarado persona non grata no Senegal mas que enche estádios em Bamako.
Garantiu ainda a presença dos Tinariwen, tuaregues que ganharam fama no mítico Festival no Deserto/ Festival Désert (este ano cancelado devido à instabilidade regional), e do casal Amadou e Mariam, que venceu, em Fevereiro, o segundo “Victoire de la Musique”, equivalente francês ao Grammy, com Folila.
Será este álbum, combustão de rock-blues-jazz- soul-pop-funk, no qual participam Santigold (da banda indie TV on the Radio), os rappers Theophilus London e Ebony Bones, o cantor francês Bertrand Cantat e o guitarrista norte-americano Nick Zinner (dos Yeah Yeah Yeahs), que marido e mulher vão oferecer, dia 25 [Abril de 2013] , aos espectadores no Coliseu de Lisboa.
Amadou Bagayoko, que conheceu Mariam Doumbia na orquestra do Instituto para Jovens Cegos em Bamako, em 1979, estava de partida para a terra natal, quando respondei às nossas questões, por telefone.
“Ficámos radiantes com o prémio porque, no contexto actual de guerra, foi também uma vitória para o povo do Mali”, exultou. “Quando se deu o golpe de Estado e começou a ofensiva dos islamistas, um país inteiro ficou em choque.”
“Embora, em Bamako e no Sul, a situação esteja calma, a proibição da música constituiu, para nós, a violação da identidade nacional”, frisou Amadou. “Apoiámos a intervenção francesa, porque ela permite que possamos continuar a lutar pelos valores da democracia e da laicidade.”
“Estamos empenhados em fomentar a compreensão e não o ódio. Podemos aceitar autonomia para os Imazighen [ou “homens livres”, que rejeitam o termo “berberes”] no Norte, mas jamais a independência. O país é indivisível!”
Era 11 de Janeiro quando, por ordem do primeiro-ministro François Hollande, foi lançada a Operação Serval. No dia 16, com infantaria francesa já no terreno, os jihadistas “vingaram-se”, sequestrando centenas de trabalhadores estrangeiros num gasoduto no extremo sudeste da Argélia.
A 19, depois de as tropas do Mali reconquistarem a cidade de Konna, forças especiais argelinas tomaram de assalto a central de gás: foram mortos 38 reféns e 29 raptores. A partir de 21, forças malianas e francesas (a que se juntaram, entretanto, uns 2000 soldados do Chade) recuperaram, sucessivamente, Douentza, Gao, Tomboctu, Kidal e Tessalit.

Fatoumata Diawara diz ter consciência de que a guerra “está longe do fim, embora seja mais fácil ganhá-la do que construir a paz”, num país com abundância de pobreza e escassez de justiça
© Samuel Kirszenbaum | Financial Times
Fatoumata Diawara diz ter consciência de que a guerra “está longe do fim, embora seja mais fácil ganhá-la do que construir a paz”, num país com abundância de pobreza e escassez de justiça. Ela não esconde “o desgosto” com as denúncias de “execuções sumárias”, em particular visando tuaregues, por parte das tropas malianas.
“É preciso compreender que os opressores eram mercenários vindos de fora, não o nosso povo. O disco e o vídeo que gravámos servem também para mostrar a importância de nos mantermos unidos.”
“Fiquei espantada com a receptividade, porque fui advertida por familiares para os riscos políticos, mas a canção passa dezenas de vezes, todos os dias, em várias emissoras de rádio”, salienta a activista dos direitos das mulheres, cujo álbum mais recente, Fatou, inclui um libelo contra a excisão genital feminina.
Na faixa Boloko, ela denuncia “Ils ont coupé la fleur qui faisait de moi une femme” [“Eles cortaram a flor que fazia de mim uma mulher”].
Para a rebelde que aos 18 anos fugiu, até Paris, do destino traçado pela família, “foi uma dádiva divina” a intervenção da França, onde a comunidade de malianos representa uma das maiores diásporas africanas (120.000 pessoas).
Nas casas que habitam, segundo o diário Le Monde, a cada andar, cada quarto, corresponde uma aldeia e/ou tribo no Mali – tal como as associações em que se inscrevem.
“Em espaços que raramente superam os 15 metros quadrados, chegam a viver durante anos pelo menos seis pessoas.” Os mais velhos têm o privilégio de dormir em camas; os recém-chegados encostam o sono a cobertores no chão.
Sem documentos, com vistos turísticos de apenas três meses, muitos ainda “alugam” cartas de residência a familiares com semelhanças fisionómicas. Trabalham, sobretudo, em restaurantes, construção civil, serviço doméstico, empresas de segurança privada e de limpezas.

Amadou, que forma um muito famoso duo de músicos cegos, com a sua mulher, Mariam, diz que apoiou a intervenção francesa no Mali “porque permite continuar a lutar pelos valores da democracia e da laicidade”
© The New York Times
Ian Birrell, que ajudou a fundar o projecto musical Africa Express (no qual Fatoumata, Ahmadou e Mariam e outros griots [“guardiões da memória”] do Mali têm participado, em concertos pelo mundo), não se admira que, “nas áreas libertadas, as pessoas tenham gritado Vive la France e festejado com a bandeira dos antigos colonizadores.”
Durante muito tempo, diz-nos, num telefonema de Londres, o ex-director-adjunto do diário The Independent e antigo autor dos discursos do primeiro-ministro britânico, David Cameron, “após o golpe militar e a ofensiva islamista, poucos no Ocidente, excepto a França, se importaram com a implosão do Mali, uma democracia corrompida.
Especulou-se que a guerra no Sahel era o legado do derrube de Khadafi na Líbia e que começara outro conflito semelhante ao do Iraque ou do Afeganistão. No entanto, o que se trava no Mali é uma guerra cultural, entre os que querem a modernidade e os que procuram impor uma teocracia.”
“Não há no mundo um país como o Mali, onde a música é parte intrínseca do tecido social e da vida política, por isso, não me espantei que tenham sido os músicos, e não políticos e generais sem escrúpulos, a posicionar-se contra os que queriam demolir séculos de tolerância do sufismo”, afirma Birrell.
“Após o fim do colonialismo, os cantores, com uma riquíssima tradição oral, usados para hinos de louvor e como mediadores, constituíram a argamassa que uniu comunidades díspares.”
“A música é uma força poderosa, mas em África é muito mais potente porque serve de protesto e esperança – Fela Kuti combateu uma ditadura militar na Nigéria e Miriam Makeba desafiou o regime de apartheid na África do Sul.”
Em Paris, fomos à sede da UNESCO, na Place de Fontenoy, tentar avaliar a destruição que os islamistas infligiram até serem despejados pelas tropas francesas. “As informações que nos chegam do terreno são assustadoras”, admite Karalyn Monteil, uma das especialistas do Centro do Património Mundial.
“Desde Maio de 2012, sobretudo em Tomboctu e Gao, repetiram-se ataques com danos brutais. Pelo menos 11 dos 16 mausoléus em Tomboctu são ruínas, dois deles na Mesquita de Djinguereber, a maior da cidade, e também o monumento de El Farouk. Em alto risco está também o Túmulo de Askia.”

Biblioteca Mamma Haidara, em Tomboctu, onde uma família do Mali compilou e preservou inúmeros manuscritos. Muitos foram pilhados, queimados ou vendidos pelos extremistas
© Xavier Rossi | inalj.com
Quanto aos manuscritos (cerca de cinco milhões só em Tomboctu), “crê-se que a maioria destes textos, desde tratados académicos a éditos religiosos, estão a salvo, mas mais de 2000 terão sido queimados, pilhados ou vendidos depois de um assalto à Biblioteca do Instituto Islâmico Ahmad Baba”, em Bamako, revela Karalyn Monteil.
“Estes compêndios de saber, de Astronomia ou Medicina, são a prova de que África já tinha uma história escrita antes da Renascença na Europa.”
“É agora maior do que nunca a urgência em obter apoios, de toda a parte e, em particular, dos países vizinhos do Mali, para garantir a preservação do que não foi aniquilado, e impedir a repetição destes crimes, incluindo o tráfico internacional, através de fronteiras porosas, que ascende a cerca de 8000 milhões de dólares por ano”, afirma Karalyn Monteil.
A ministra francesa da Cultura, Aurélie Filippetti que acompanhou o Presidente Hollande ao Mali, tal como a directora-geral da UNESCO, Irina Bokova, garantiu que está já em marcha um plano, com envolvimento da União Europeia, para formar zeladores das jóias em perigo, sobretudo em Tomboctu, a milenária cidade que atraiu ilustres, como D.H. Lawrence e Leão o Africano.
Este lugar, fundado por nómadas Magcharen, por volta de 1100, foi durante dois séculos um centro importante nas rotas de sal e ouro. Quando os europeus aqui chegaram, em 1830, já estava, porém, em declínio.

Dia de mercado junto à Grande Mesquita de Djenne, cidade que a UNESCO classificou como Património da Humanidade e que se tornou num dos alvos dos rebeldes jihadistas. Foi outrora uma das atracções turísticas, no Norte do Mali
© Joe Penney
Se os manuscritos queimados “estão perdidos para sempre”, segundo Samuel Sidibé, o director do Museu Nacional do Mali, os mausoléus “ainda podem ser reconstruídos, porque há documentação sobre a sua estrutura e, sendo muitos deles de terracota, não será difícil reproduzi-los”.
Para já, diz-nos em entrevista, “a prioridade é fazer uma avaliação exaustiva e depois conceber um plano de acção que seja eficaz”. Os cálculos iniciais apontam “para a necessidade de 4 milhões de euros”.
Considerado por Karalyn Monteil, como “exemplar não apenas em África mas em todos os países onde o património está em perigo”, o Museu Nacional do Mali foi criado em 1954, refere Sidibé, mas só a partir dos anos 1980 “beneficiou do financiamento que o tornou num centro de arte, com grande profissionalismo e ambição, visível nas suas colecções e exposições, permanentes e temporárias.”
Sidibé não conhece, pessoalmente, nenhuma família que, para os proteger dos islamistas, tenha “enterrado” manuscritos que há séculos passam de mão, de pais para filhos e netos, e que têm sido “resistentes ao calor e à humidade, graças à qualidade da pele das suas capas, do papel, das cordas com que são cosidos e da tinta usada na caligrafia”.
Sabe, contudo que “muitas fizeram isso mas outras viram-se forçadas a vendê-los, para não morrerem à fome ou não serem mortas.”
“A crise no Mali”, conclui o director do museu em Bamako, “não é apenas cultural, mas a cultura deve ser usada pela comunidade internacional para nos ajudar a fomentar a coesão nacional. Não se pode apregoar a ideia de que este é um conflito intercomunitário. Somos obrigados a viver juntos. O jihadismo não é um problema local, mas uma ameaça global.”
Este artigo foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO, em 19 de Abril de 2013 | This article was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on April 19, 2013