12 retratos de um país católico

Um jesuíta, como o Papa Francisco, que encontrou a vocação na universidade e um movimento que defende a ordenação das mulheres. Um sacerdote casado e um homossexual que quer um casamento abençoado. Um missionário que distribui preservativos em África e um franciscano que considera os contraceptivos “homicidas”. Fomos de Lisboa a Leiria, do Porto a Portimão, conhecer novos e velhos católicos. Fizemos 12 retratos, o número de apóstolos que Jesus terá juntado para fundar a sua Igreja – neste caso, a  Apostólica Romana. (Ler mais | Read more…)

© Tony Gentile | Reuters

Hoje é Domingo de Páscoa, e muitos notarão que as igrejas já não se enchem como antigamente. O número de católicos tem vindo a diminuir: entre 1999 e 2011, passou de 86,9% para 79,5%, conclui um inquérito do Centro de Estudos das Religiões da Universidade Católica Portuguesa (CERC), assinado pelo sociólogo Alfredo Teixeira.

Apresentado à Conferência Episcopal Portuguesa, em 2012, o relatório intitulado Identidades Religiosas em Portugal, foi realizado em Novembro do ano anterior. A conclusão é a de que diminuiu a percentagem de católicos e aumentou a de pessoas com uma religião diferente (de 2,7 para 5,7%) e a dos “crentes sem religião” – estes, por convicção pessoal, desacordo com as doutrinas e regras da Igreja de Roma ou opção de se manterem distantes de qualquer fé (de 8,2 para 14,2%).

Ficámos também a conhecer o panorama nacional: os Açores são a região mais compactamente católica (91,9%) e o Algarve menos (59,5%). A região Norte (89,5) e Centro (87,5) estão próximas; o Alentejo está nos 75,9%.

Os testemunhos que se seguem, num total de 12 retratos, mostram que o novo Papa Francisco tem uma missão difícil. Os padres e as freiras escasseiam.

Os leigos são cada vez mais activos – e exigentes. Os escândalos de pedofilia tiveram “um efeito cataclísmico” numa instituição com 2000 anos de história, mas que nem sempre anda a par e passo com as mudanças da História.

Samuel Beirão : A vocação chegou na universidade
© Nelson Garrido

© Nelson Garrido

É véspera de eleição de um novo Papa e no Colégio das Caldinhas, em Santo Tirso, o ambiente já é de celebração, ainda sem ninguém saber que, pela primeira vez, um jesuíta ocupará o trono de Pedro, o apóstolo a quem Cristo ordenou que edificasse a sua Igreja.

Era o início da Semana Inaciana, festa de orações e diversões, que deve o seu nome a Santo Inácio de Loiola, fundador da Companhia de Jesus, em 1540. Usando uma chave para que o elevador suba ao último andar do edifício a que os alunos não têm acesso – e, por isso, perguntam a quem para lá se dirige: “Vais para o Céu?” –, Samuel Beirão encaminha-se para a sala de uma comunidade com oito jesuítas, o mais velho com 91 anos. Aqui explicará por que, sendo filho de pais separados (“uma nova realidade”, segundo o reitor do Seminário do Porto) e após um namoro de cinco anos, descobriu que a sua vocação era ser padre.

O dia é de intensa actividade no complexo, que inclui cinco escolas, contando com o Instituto Nun”Álvares (que funcionou em Campolide, Lisboa, até à expulsão dos jesuítas de 1910 a 1932) e as Termas das Caldas da Saúde. Samuel, os olhos azuis mirando uma paisagem rural, ora atende ora rejeita chamadas incessantes.

Ter telemóvel é privilégio por já estar no Magistério (“estágio numa comunidade e instituição apostólica”). Este tempo segue-se ao Noviciado (“discernimento da vocação e integração na Companhia”) e ao Juniorado (“estudo da Filosofia e Humanidades, e início de actividades pastorais”). A fase subsequente é a da Teologia – no quarto ano de um período de cinco, será ordenado padre.

A etapa final desta longa caminhada, de um total de 10/12 anos, é a “Terceira Provação”, 6-8 meses, que conduzirá aos “Últimos Votos”, incorporação definitiva e solene na Companhia de Jesus e disponibilidade especial ao Papa.

“Estou muito contente”, dirá Samuel, mais tarde, por telefone, quando souber que o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio foi eleito Bispo de Roma, sucedendo a Bento XVI. “É inevitável a alegria pela surpresa completa de ele ser um jesuíta.”

“Mas, também, porque é uma pessoa simples, próxima do povo, que não recorre ao protocolo para fazer o bem e apela a um mundo mais fraterno. É significativo que ele tenha escolhido o nome de Francisco [de Assis], o protector dos pobres.”

A surpresa compreende-se porque os jesuítas, isentos pelo Vaticano de usar hábitos para se mostrarem “como homens honestos no lugar onde vivem”, nunca aspiraram ao pontificado a quem prometem obediência.

A sua missão tem sido a de propagar a fé católica em lugares como a Índia e o Japão, a África e o Canadá. Destacam-se também pelo prestígio no campo da educação e cultura.

Samuel Beirão nasceu em Lisboa há 28 anos, numa família “muito aberta do ponto de vista religioso e com algumas diferenças políticas – de comunistas a liberais, de perseguidos a perseguidores no tempo do Estado Novo” -, o que “nunca afectou os laços” entre eles.

“Para a minha avó materna, que se desfiliou do PCP por este não passar a teoria à prática, a justiça era o valor mais importante”, diz, orgulhoso. “Ela conciliava o lado mais revolucionário e de esquerda com uma fé viva, indo à missa e rezando em comunhão com os outros.”

O pai de Samuel, enfermeiro agnóstico e reformado, “é mais próximo da direita”. A mãe, educadora de infância e voluntária em vários projectos de combate à pobreza, “não se identifica com partidos e sim com causas sociais”.

O casamento durou 25 anos; o divórcio foi assinado há oito. “Eu e o meu irmão [não crente e ambos educados num colégio religioso dominicano] fomos incluídos na decisão que eles tomaram de se separarem e refazerem as suas vidas. Entre todos permanece a harmonia.”

“Deus nunca foi uma questão – eu não acreditava nem deixava de acreditar”, relembra Samuel. “Tive uma namorada durante cinco anos”, desde o liceu até entrar na Faculdade de Direito, em Lisboa, diz. Em Janeiro de 2005, uma amiga convidou-o para um retiro espiritual de três dias.

Aceitou o desafio. “Não sabia o que iria fazer mas, na quinta-feira, à chegada, um padre explicou-me a diferença entre estar calado e em silêncio. Até domingo, desliguei os ruídos interiores. E descobri, pela primeira vez, o que era ser profundamente amado. Senti, então, necessidade de explorar aquele amor, maior do que o amor por uma mulher, pelos pais ou pelos amigos.”

Samuel descreve “a porta para a fé” como “a sensação de ter borboletas na barriga”, sobretudo nos momentos de prece e leitura da Bíblia. “Um dos preconceitos que eu tinha naquele retiro era o de que os padres iriam tentar fazer-me a cabeça; mas não”, assegura.

“No regresso, procurei saber mais sobre a Igreja e descobri um amor que me despia de todas as máscaras. Este amor representava liberdade, porque o amor verdadeiro não aprisiona.”

Já adulto quando se converteu, Samuel acredita numa “renovação qualitativa” das vocações apesar da crise. “Aprendi a levar a fé e a razão a par e passo – não é uma fé mística nem uma razão cartesiana. Às vezes irrito-me com Deus, mas creio que Ele não se escandaliza com o que eu digo. Cheguei a pensar que eu era um erro de casting até concluir que quis ser padre porque “Alguém” estava à minha espera.”

Após o “chamamento”, Samuel escolheu juntar-se ao instituto religioso masculino mais numeroso na Igreja Católica. São 18.516 membros, distribuídos por 127 países dos cinco continentes: 13.112 sacerdotes, 1675 irmãos, 2920 em formação e 809 noviços. A “Província de Portugal” tem um total de 237 jesuítas.

No final das aulas, um remoinho de crianças e jovens (um total de 3200 alunos) circunda o professor da disciplina de Formação Integral, “parte dos cursos profissionais de Nível II e Nível IV, onde se abordam os temas dos valores humanos, sociais, políticos e religiosos”.

Ele acelera o passo por um labirinto de corredores e gabinetes, uma biblioteca e a capela onde se recolhe todas as manhãs depois de acordar, por volta das 6h30. No pátio com jardim, são muitos os que lhe tocam as mãos, no popular gesto high five. Outros dão-lhe palmadas nas costas ou abraçam-no, tratam-no por tu. Carinho, confiança e respeito são recíprocos.

Samuel admite que, muitas vezes, o interrogam por que não escolheu ser casado e se não se sente atraído pelas mulheres à sua volta. “Acho que teria jeito para ser marido e ter filhos, mas não imagino a minha vida sem uma entrega total, sem horários.”

“A castidade não é uma repressão e parece preocupar mais os outros do que a mim próprio. Este voto perpétuo assim como os de pobreza e obediência não são regras que me retiram nada, mas que me potenciam. Quem está de fora não entenderá.”

Perante os escândalos de pedofilia com membros do clero, Samuel Beirão garante que não esconde a verdade aos seus alunos. “Não podemos enganá-los. Reconheço que há coisas muito graves na Igreja, mas lamento que o foco seja apenas no mal e não no bem que fazemos.

Em 2000 anos de história, é natural que esta instituição tenha de reflectir e mudar. Um dos católicos mais geniais foi Martinho Lutero [figura central da Reforma Protestante, no século XVI]. Pena que se tenha posto de fora; porque é de dentro que as coisas mudam, ainda que devagarinho. A Igreja já não é um depósito de ignorantes e incultos – nela cabem todos.”

Manuel Paiva : Padre dispensado e casado
© Nelson Garrido

© Nelson Garrido

A foto de uma jovem loura embeleza a secretária do padre Manuel Alves de Paiva que, ao contrário de Samuel Beirão, não foi ordenado por vocação.

A Igreja acolhe-o depois de o ter dispensado em 1971, permitindo-lhe casar-se com Judite de Pinho Martins de Oliveira, a mulher que o encantou quando tinha 35 anos e ela 16. Hoje, com duas filhas e três netos (um quarto a caminho), ele é uma figura ilustre em Oliveira de Azeméis, onde reside.

Embora casado, o nonagenário Manuel Paiva não é “ex-padre” – a designação é “padre dispensado” -, porque o “exercício ministerial” é considerado “um sacramento para a vida”. Foi sócio fundador da Associação Fraternitas Movimento, que nasceu em 1997 para unir “padres dispensados do ministério, casados [“há 600 a 700″] ou não, e suas esposas ou viúvas”.

Num escritório com fotografias, um crucifixo e um cartão de Dia dos Namorados onde se lê “Amor não é aquilo que queremos sentir, mas sim aquilo que sentimos sem querer”, Manuel Paiva vai lendo a cronologia da vida num papel com as datas mais marcantes.

Começa por falar dos pais, agricultores, que, constatando “falta de jeito para a lavoura”, o matricularam no Colégio Internato dos Carvalhos (Vila Nova de Gaia). Referiu depois o tio, padre, que o inscreveu no Seminário de Vilar (Porto).

“Aceitei porque gostava muito de estudar”, garante. “Nas férias, quando regressava a casa, o povo dizia “ali vai o estudante”. Era o único na freguesia, numa época em que os rapazes chegavam apenas à 3.ª classe da primária e as raparigas não podiam sequer ir à escola. Nem tive tempo para pensar, só me interessava aprender.”

“Estive no Seminário de Vilar até ao antigo 7.º ano do liceu. Segui, por mais cinco anos, para o da Sé do Porto, curso de Psicologia e Teologia, correspondente à universidade. Levantava-me cedo para ir à missa. Depois estudava a sério. Professores e reitores eram extremamente exigentes.”

Uma recordação dessa exigência fixou-a numa parede: um desenho do Menino Jesus, a carvão e giz, feito em 1943, que motivou uma “séria reprimenda do prefeito” que o vigiava, através de uma pequena janela na porta do quarto individual, para atestar a concentração nos livros.

Em 1946, Manuel Paiva terminou o curso. E, a 1 de Janeiro de 1947, aos 24 anos, foi ordenado padre. As primeiras paróquias foram as de Loivos da Ribeira e Frende (Baião).

Em 1957, foi transferido para Milheirós de Poiares (Santa Maria das Leiras) – e foi aqui que conheceu Judite, ela catequista e ele pároco. “O afecto era mútuo, mas não passava dali”, confessa o padre. “Eu ia à casa dela, jogava às cartas com os pais, na presença dos 13 irmãos (também tive 13). Era tudo muito austero.”

Como “o amor era platónico”, ficou em suspenso. Em 1963, Paiva foi transferido, de novo, para a paróquia de Loureiro (Oliveira de Azeméis), onde ficou oito anos. Pediu a dispensa em 1969. O bispo prolongou-lhe a permanência até 1971, por não ter substituto.

O sacerdote garante que não pediu dispensa para se casar, mas porque queria ser professor – o que se materializou após uma licenciatura em Filologia Clássica, na Faculdade de Letras do Porto, em 1973. Reformou-se aos 70 anos.

A dispensa está também relacionada com o “muito que queria fazer” e os obstáculos que enfrentava por parte da PIDE, que suspeitava terem “cariz político” as reuniões que organizava.

“Fui sempre firme, seguindo o conselho do meu bispo, D. António Ferreira Gomes, que o antigo regime condenou a dez anos de exílio. Perante Salazar, ele declarou: “De joelhos diante de Deus, mas de pé diante dos homens!””

Em 1972, Manuel e Judite, enfermeira obstetra de profissão, casaram-se na Igreja da Foz do Douro.

Os pais dela concordaram. A família dele também. Disseram-lhe: “Já devias ter feito isso há mais tempo.” Eram testemunhas do seu esforço. Como o casamento não foi apenas civil (única opção para os padres sem dispensa), Manuel Paiva participa nas actividades da paróquia, designadamente como ministro extraordinário da comunhão (distribui a hóstia mas não a pode consagrar).

“A mensagem do Evangelho radica no amor”, frisa Manuel Paiva. “O padre ama toda a gente, mas às vezes ama uns mais do que os outros – e isso é natural. O celibato é uma lei eclesiástica que há muito devia ter sido abolida. São Pedro e os primeiros apóstolos eram casados.”

Ele, que ainda se lembra da segregação de sexos nas igrejas – “na metade de cima, os homens; na metade baixo, as mulheres” -, defende igualmente que estas sejam sacerdotisas e diaconisas.

“As mulheres presidiam às primeiras comunidades cristãs. Depois, começou a confundir-se sexualidade com sexo. Quando criou o Homem, Deus ofereceu-lhe o desejo, mas os cardeais em Roma têm uma mentalidade muito antiquada, difícil de se abrir às mudanças.”

Augusto, Célia e Gabriel : A paróquia de Amor
© Nelson Garrido

© Nelson Garrido

A chuva e o sol disputam o céu de Amor, quando Augusto Fernandes e Gabriel Gil se cruzam junto ao adro da igreja, na pequena freguesia da Diocese de Leiria-Fátima, cujo nome está associado a um mitológico romance de D. Dinis, em campos floridos de papoilas e malmequeres.

Esta lenda, não é um facto histórico mas é a que mais convence os quase 5000 habitantes, diz que a Rainha Santa Isabel, desconfiada das escapadelas do marido para se encontrar com uma amante, decidiu “reprová-lo sem o melindrar”.

Uma noite, deu ordens que acendessem fogachos pelas veredas que o monarca percorria quando regressava ao palácio, a coberto da escuridão.

Assustado com a “perseguição das chamas”, ele foi ter com a mulher, ajoelhou-se e descreveu-lhe a cavalgada sem freio para fugir dos clarões: “Até aqui cego vim!”

Ela replicou: “Senhor! Decerto seriam luzes para alumiar os vossos olhos que tão ceguinhos andam de amor…” E o povo acredita que Segodim, nos arredores de Monte Real, e Amor devem os seus topónimos a este diálogo imaginário.

Ora, foi também por amor que Augusto Fernandes se mudou para Amor, e aqui vive, desde 1970, com a mulher que o cativou num baile de casamento. Ela era natural desta aldeia, no litoral Centro onde 95% das terras ainda são minifúndios.

Ele nasceu há 66 anos, em Cabanas de Viriato (Norte), onde o pai trabalhava como serrador. “A minha família baptizou os dez filhos”, conta o ex-padeiro e polícia reformado. Eu ia à doutrina [catequese], mas não à missa, todos os domingos.”

Hoje, é ele o sacristão, que, entre outras tarefas, prepara o altar-mor, de talha dourada, na igreja cujo tecto de um azul celestial foi construído para substituir a ermida de S. Paulo (o padroeiro), por volta de 1630. Foi em 1984, já ao serviço da PSP, na Marinha Grande, que Augusto Fernandes foi convidado para um Cursilho de Cristandade.

“A minha vida deu uma reviravolta”, conta, entusiasmado e indiferente ao ruído num café, onde parte da entrevista decorreu, antes das duas missas de sábado. As mesas estavam ocupadas sobretudo por jovens, como o serralheiro João Feliciano, 28 anos, que expõe sem embaraço: “Não ponho os pés na igreja desde os 18.”

Porquê? Ele levanta os olhos, sorve a cerveja, expira o fumo do cigarro e responde: “Não perdi a fé, até fiz o crisma [rito que confirma o baptismo], mas porque não tenho esperança na sociedade.” Não adianta pormenores.

O que é, afinal, um Cursilho de Cristandade, que, “inicialmente, era só para homens, para os atrair para a Igreja, porque as mulheres já lá estavam dentro”, segundo Augusto? Célia Regina Roda, 40 anos, técnica superior de Educação, junta-se à conversa, porque é uma das coordenadoras locais deste movimento que chegou a Portugal em 1960, mas nasceu em Espanha nos anos 1940.

“É a vivência, espiritual e humana, do encontro pessoal com Cristo, consigo próprio e com o mundo”, esclarece a catequista na paróquia de Barreiros, também na freguesia de Amor. “A experiência pode ser vivida por todas as pessoas de qualquer classe social ou cultural, solteiras ou casadas, desde que estejam em comunhão com a Igreja.”

A descrição de Augusto é mais singela: “São três dias de retiro intensivo para Deus entrar em nós sem as buzinadelas do exterior, para reflectirmos sobre os nossos erros e nos redimirmos.”

Célia, que interrompe para avisar que “cada um tem uma experiência única”, fala da sua fé com o mesmo fervor daquele homem que perdeu duas netas, de 7 e 12 anos, num acidente de viação e fez do sofrimento pessoal fonte de inspiração para os idosos que visita.

“Às vezes, na passagem de ano, fazíamos directas e íamos das festas para a missa a 1 de Janeiro”, recorda a líder cursilhista. “Percorríamos uma hora a pé, ou de bicicleta, fizesse frio ou calor, sempre alegres.”

Gabriel Gil, 72 anos de idade e 38 como militar, agora aposentado, também pertence aos Cursilhos de Cristandade e tem a gratidão como virtude: “Andar no mar afastava-me, involuntariamente, da Eucaristia, mas sempre que regressava a casa ia logo falar com Deus, para dizer “obrigado”, por me ter ajudado, por exemplo, a vencer os enjoos quando vagas de 7-9 metros faziam tremer os navios.”

Ao contrário de Célia, que tem uma filha de 20 anos a estudar Enfermagem e se “mantém no caminho da fé”, Gabriel e Augusto admitem que os seus filhos e netos não são presença assídua nas actividades religiosas. Mas não os criticam. “Só exijo que respeitem a dignidade humana e sejam exemplares”, diz o primeiro.

“Fui ensinado que Deus era castigador mas passo a mensagem de um Deus que perdoa”, adianta o segundo. Célia Roda admite que já teve de faltar à missa e que algumas homilias podem desanimar os fiéis. No entanto, para ela, “todos os momentos da Eucaristia são importantes, desde que se vá de coração aberto receber força interior para a vida quotidiana”.

 Jorge Wemans e Mafalda Folque : A liberdade na Capela do Rato
© Nelson Garrido

© Enric Vives-Rubio

Ainda faltam quase 30 minutos para começar a missa dominical das 12h00 e a Capela do Rato já está quase repleta de dezenas de fiéis: crianças, jovens e adultos. A afluência em massa, menos visível noutras igrejas, talvez se explique por este ser um marco histórico e, mais recentemente, pelas homilias inspiradoras de José Tolentino Mendonça.

Naquele domingo, 17 de Março, o Livro do profeta Isaías, a Epístola de S. Paulo aos Filipenses e o Evangelho segundo S. João (sobre o perdão à mulher adúltera) potenciavam o génio oratório do vice-reitor da Universidade Católica.

“São três leituras com uma linha comum”, explicou o padre e poeta, cuja obra mais recente é Nenhum Caminho Será Longo – Para Uma Teologia da Amizade. Ele interpretou-as como um convite a não se “ajustar contas com o passado”, porque “apenas importa o que nos é dado aqui e agora”.

Nesta reflexão, citou outro poeta, o francês Charles Péguy, agnóstico convertido a um catolicismo inconformado com a hierarquia, autor de um monólogo de esperança, O Pórtico do Mistério da Segunda Virtude. “Quando entrarem numa igreja e perceberem que o templo está limpo, não olhem para a lama dos vossos sapatos, mas para a beleza que refulge (…) para não perderem o essencial.”

Numa altura em que padres e cardeais estão sob suspeita de vários escândalos, o celebrante lembrou que “a Igreja foi chamada de Santa Meretriz” e, por isso, “não deve ser um lugar de presunção, mas de humildade e humilhação – para retirar o mal debaixo do tapete”. Por isso, concluiu, “foi bom ter recebido o Papa Francisco na Quaresma, porque a Igreja está “em obras””.

A Capela do Rato já era “famosa” antes de Tolentino Mendonça lhe reforçar a popularidade. Duas semanas antes, marcámos aqui encontro com Jorge Wemans e Mafalda Folque. Ele para refrescar o passado; ela para testemunhar sobre o presente.

Ao olhar para a pintura Pentecostes, de Ilda David, inspirada na “descida do Espírito Santo” relatada no Acto dos Apóstolos, o jornalista que ajudou a fundar o PÚBLICO afirma: “Este é um espaço diferente de Notre Dame [catedral em Paris], porque também convida à interioridade mas de forma diferente: como se Jesus Cristo andasse por aqui, no meio de pessoas que não esqueço.”

Não esquece, em particular, os amigos que, a 30 de Dezembro de 1972, um sábado, incentivados pelo Dia Mundial da Paz [1 de Janeiro], proclamado pelo Papa Paulo VI, convidaram os presentes a ficarem depois da missa das 19h30, para debater a guerra colonial e jejuar pela paz.

“Não fiquei toda a noite”, conta. “Voltei no domingo depois do almoço, e a polícia já estava a tomar posições em volta da Capela, onde entrou ao fim da tarde para nos expulsar.”

“Fomos resistindo”, continua o leigo activo da antiga Acção Católica Portuguesa. “Chegaram mais carrinhas da polícia de choque, e umas 120-150 pessoas foram detidas. Levaram-nos para a esquadra da PSP, onde identificaram todos e conduziram duas dezenas para o Governo Civil. Aqui ficaram até às primeiras horas de 1 de Janeiro de 1973. Eu fui para a prisão de Caxias, onde estive dez dias.”

Jorge Wemans tinha 19 anos e a convicção de que valia a pena correr riscos. “Foi a fé em Jesus Cristo que me despertou para denunciar a injustiça e a opressão.” Ao contrário de alguns que naquela passagem de ano estiveram na Capela do Rato e seguiram outros caminhos, continua a ser católico praticante. Porque a sua consciência social “foi ganha pela fé e nunca a fé foi reduzida à consciência social”.

É uma fidelidade crítica. “Hoje, perante a ganância financeira que se abate sobre nós, a Igreja está longe do que poderia e deveria ser, incapaz de ajudar os portugueses a perceber onde estão”, comenta. “Temos uma Faculdade de Economia na Universidade Católica a ensinar a ideologia neoliberal que desvaloriza os custos do trabalho, aumenta o número dos pobres e excluídos, e é totalmente oposta à doutrina social da Igreja. São sinais contraditórios.”

Mafalda Folque diz que “quase tem pena” de não ter vivido aqueles momentos. Mas acrescenta: “Comparadas as vivências e as memórias, une-as a paixão por Deus, que sempre nos acompanha e religa.” A Capela “seguiu o seu caminho e se o padre Tolentino conseguiu, nos últimos três anos, atrair pessoas de todos os estratos sociais, culturais e políticos, e gente nova, em particular, muito se deve também aos antecessores”.

“Apaixonei-me, definitivamente, por Jesus Cristo na fase adulta, depois de uma fase de rebeldia na adolescência”, exulta Mafalda, que é assídua na Capela do Rato desde os 12 anos, porque os avós viviam perto.

“Tive a sorte de “passar” por quatro padres que fizeram toda a diferença ao longo do meu percurso, aqui na Capela, todos diferentes e todos grandes mestres do desafio que é Jesus Cristo: José Manuel Pereira de Almeida, Peter Stilwell, João Eleutério e, agora, Tolentino Mendonça.”

Licenciada em Relações Internacionais e a trabalhar na Secretaria de Estado da Cultura, mãe de cinco filhos (o mais velho, de 23 anos, afastado da Igreja por dúvidas de fé), Mafalda está envolvida em numerosas actividades, desde grupos de casais e de debate de temas bíblicos até ao voluntariado junto dos sem-abrigo.

Como ministra extraordinária da comunhão, enaltece “algo extraordinário” que, entre outras coisas, Tolentino Mendonça iniciou na Capela: “a comunhão espiritual”. Ele faz um sinal da cruz na palma da mão, às crianças e aos que consideram “não estar preparados para receber o Corpo de Cristo”. Este gesto “mudou a vida de muita gente”.

No final da entrevista, Mafalda acenando a cabeça em sinal de acordo, Jorge Wemans declara: “Jesus Cristo perdeu tudo e não ganhou nada. Não é uma história de sucesso. Foi um Deus que se fez fraco para podermos existir, sermos livres até para o negar e tornarmo-nos fortes pela sua proximidade. E eu acredito que, sendo Jesus um desafio diário à minha vida, me tornei uma pessoa melhor, porque Ele me ajuda na minha imperfeição.”

Marco António e Clementina : Bahá’u’lláh e Cristo
© Nelson Garrido

© Enric Vives-Rubio

Os pais de Marco António Oliveira frequentavam a Capela do Rato, em Lisboa, mas não foi aqui que ele encontrou a paz espiritual que procurava, e sim numa barbearia nos Olivais, onde conheceu a fé Bahá’í.

Clementina Rodrigues é católica e, quando conheceu o futuro marido, “receava que a religião dele estivesse associada ao fanatismo no Médio Oriente”. Aceitaram-se mutuamente e são felizes.

Marco, engenheiro informático, 50 anos, e Clementina, licenciada em Gestão, com 48, conheceram-se numa empresa onde trabalharam juntos, em 1998.

Casaram-se em 2000 e têm dois rapazes que fazem perguntas difíceis: “O que é a alma?” ou “para onde vamos quando morremos?” As respostas são, geralmente, dadas pelo pai, que também frequentou Ciências da Religião, na Universidade Católica.

No apartamento onde o casal habita, nos Olivais, zona onde Marco já tinha vivido dos oito aos 35 anos, não se ostentam símbolos religiosos, embora salte à vista um quadro com uma oração a Bahá”u”lláh, emoldurada no hallde entrada.

Com o significado, em persa, de “A Glória de Deus”, Bahá”u”lláh (que nasceu Husayn-“Ali, em 1817, em Teerão) foi proclamado publicamente “o Mensageiro de Deus para a nossa era”, o mais recente depois de Krishna, Buda, Zoroastro, Moisés, Jesus Cristo e Maomé, “até aparecer um outro ainda mais magnífico”.

Em 1844, fundou a que se tornaria na segunda religião mais disseminada geograficamente, depois do cristianismo. Está presente em todos os cantos do mundo – 200 grupos étnicos, tribais e raciais em 235 países e territórios dependentes.

Em Portugal há 10 mil seguidores (são sete milhões no mundo). São monoteístas, aceitam a Bíblia e o Corão mas têm o seu próprio livro sagrado, o Kitáb-i-Aqdas, onde ensinam que a Terra é um só país e a humanidade os seus cidadãos.

Depois de muito procurar, Marco Oliveira decidiu seguir este profeta, considerado “um herege”, sobretudo na República Islâmica do Irão, onde os bahá”ís são a maior e mais perseguida minoria religiosa.

O facto de Bahá”u”lláh estar sepultado em Israel, onde morreu no exílio, em 1892, durante o reinado dos otomanos na Palestina, faz com que os discípulos estejam sempre sob suspeita de “serem espiões do sionismo”.

Apesar de tudo aconselhar a que se afastasse do perigo, o homem a quem o misticismo fascinava deixou-se contagiar pelo entusiasmo com que o barbeiro dos Olivais, antigo comunista, “levou a militância para a fé”. Em Setembro de 1984, Marco aceitou Bahá”u”lláh e os seus ensinamentos, porque “encaixavam” no que demandava.

“Como engenheiro, não considero a religião irracional, mas suprarracional. Sei que existe Deus, que Deus me transcende, está para lá do que posso entender, mas não está contra o que eu entendo.”

Ao tomarem conhecimento da opção do filho, os pais de Marco “não se escandalizaram, mas também não se sentiram confortáveis”. Ficaram-lhe no ouvido estas palavras: “Prefiro que tenhas espiritualidade a não teres fé alguma.”

Os pais de Clementina aceitaram bem. “Eu diverti-me imenso porque casei duas vezes. Foram duas cerimónias em Torres Vedras; uma na igreja e outra no restaurante.”

A união obrigou a compromissos: seguiriam “os valores comuns da solidariedade e respeito pela família, sem interferências”. Os filhos não foram baptizados, para fazerem a sua própria escolha, em adultos.

Os dotes culinários de Clementina conquistaram Marco (a entrevista foi adoçada por um bolo de mel) mas também a forma carinhosa e sorridente com que enfrentou a adversidade. Até aos 21 anos, ela entregava aos pais todo o dinheiro que ganhava.

Quando começou a poupar para estudar, sentiu “um problema moral”: “Como poderia ajudá-los e valorizar-se profissionalmente?” Cumpriu o sonho, acreditando que tem “uma mão invisível” que não a deixa cair.

Os bahá”is são ardentes defensores da igualdade de género, mas atribuem maior importância às mães e filhas. As primeiras são consideradas vitais na formação dos jovens como “força poderosa para mudar as sociedades”.

Se um casal tiver um rapaz e uma rapariga mas apenas tiver posses para educar um, a prioridade deve ser dada à rapariga, porque “as desigualdades entre homens e mulheres dependem da educação e da oportunidade, não das capacidades”.

Marco nunca tentou converter Clementina, mas acredita que, em Portugal (onde o primeiro conselho foi eleito em 1949), a fé bahá”í, sem clero, “tem potencialidades de vir a ser mais popular do que o budismo, porque oferece soluções para o presente”.

Graça Franco e João Reis : Ser santo no Opus Dei
© Enric Vives-Rubio

© Enric Vives-Rubio

João Reis, 24 anos, é “uma pessoa de sorte”, diz o seu pai, porque em casa “tem a Graça de Deus e Graça Franco”. Mãe e filho estão entre os mais de 90 mil membros do Opus Dei. Fundada em 1928, em Espanha, por São Josemaria Escrivá de Balaguer, esta instituição da Igreja Católica é composta, na sua maioria, por leigos (98%, homens e mulheres) e sacerdotes (2%).

Casada com um agnóstico condescendente em educar os filhos na fé cristã, a jornalista Graça Franco sabe que a Obra de Deus (tradução de Opus Dei) “tem tido muito má imprensa”.

Não se importa. Antes de conhecer a Obra e ver que era essa a sua própria vocação (“já lá vão 35 anos!”) também não tinha simpatia. Nesta entrevista, mãe e filho deixam claro que não vão falar em nome da Prelatura, agora dirigida por D. Javier Echevarría, apenas darão depoimentos pessoais.

Para Graça, foi decisivo o exemplo do pai, que, educado longe da fé, se converteu aos 19 anos. “Hospitalizado, fixou os olhos num crucifixo pregado na parede do quarto e sentiu um forte chamamento”, conta.

“Foi tão forte aquela visão que nunca mais deixou de procurar Cristo e dar o exemplo. Lembro-me de irmos juntos ao cinema e à ópera, mas sobretudo de ir com ele à missa todos os dias, e de rezar com ele o terço, caminhando pela cidade.”

A fé de Graça foi posta à prova na Universidade Católica, em Lisboa, onde o filho é agora doutorando em Ciência Política. Estava no início da licenciatura em Economia e recebeu um telefonema de uma colega a convidá-la para uma actividade e a perguntar-lhe “se conhecia a Obra”.

A sua primeira resposta foi preconceituosa, mas aceitou o desafio. “Na génese do Opus Dei [o termo em latim é neutro mas, em português, assume o género masculino, como oopus 25 da Sinfonia n.º 9 de Beethoven, por exemplo], o fundador enfrentou feroz oposição dentro da Igreja”, explica.

“Temia-se uma dimensão de risco grave, uma heresia; porque dizia que a santidade era para todos. Dentro da Igreja, e no contexto sociopolítico adverso da Guerra Civil Espanhola, era uma causa revolucionária.”

Após a relutância inicial, Graça Franco, 55 anos foi percebendo, ao conhecer a espiritualidade e os escritos do Fundador, que “não há nada de reaccionário no Opus Dei; pelo contrário, antecipou muito do que seria defendido pelo Concílio Vaticano II [1962-1965]: a possibilidade de ser santo sem pertencer a ordens religiosas.”

“No meu período de discernimento, senti que Deus me pedia que lhe desse toda a minha vida, talvez ir para freira – e estava disposta a isso! No Opus Dei, percebi que o caminho era o da santidade profunda, mas laical. Deus pedia-me que santificasse o trabalho todos os dias, casada, com filhos, sem partir para um convento”.

“Os meus pais acharam a minha escolha magnífica; para eles, importante era ter fé”, afirma Graça. Já não esperava a mesma receptividade da parte do militar que, “à primeira vista”, se apaixonou por ela. “Ele notou, evidentemente, o meu catolicismo e não se importou; eu achava que ia ser uma confusão”, ri-se.

“Esperou por mim dois anos, namorámos um e depois casámo-nos. Frisei que tinha, além dele, um maior amor na minha vida, implicando princípios e valores, como o planeamento familiar natural [sem contraceptivos] ou eu dispensar oito dias de férias para retiros espirituais. Ele respondeu. “Vai lá para tua catequese que eu vou para os treinos” [de artes marciais]. Eu insisti: “Assumes as consequências de eu ser do Opus Dei?” Ele não levantou obstáculos.”

Mais: se os cinco filhos frequentaram o Colégio do Planalto (só para rapazes) e Mira Rio (exclusivo para raparigas), foi por iniciativa do marido. Ela preferia as escolas públicas às religiosas. “Tinha medo que eles saíssem de lá ateus, mas hoje sou fã incondicional dos dois colégios. E fiquei muito feliz quando o meu filho mais velho se juntou à Obra.”

João Franco Reis partilha o entusiasmo de Graça pelo Opus Dei, onde é assessor de imprensa. Embora ela seja republicana simpatizante da esquerda; ele monárquico mais ligado à direita. Ela, discípula de John Keynes, céptico em relação ao mercado livre; ele, próximo do ultraliberal Frederich Hayek.

“Nos meus 14 anos e no 9.º ano do liceu, tive dúvidas próprias da adolescência; cheguei a ir à missa só para não entristecer a mãe”, diz João. Nesta fase complicada, aproximou-se de uns rapazes que admirava. “Católicos a sério e coerentes, era isso que eles pediam de mim.”

Quando disse que se queria juntar a um grupo de jovens ligados à Igreja, um deles perguntou: “Para te aproximares das miúdas ou de Deus?” Respondeu-lhe: “Das miúdas.” E o outro replicou: “Se é isso que queres, vai para uma discoteca, escusas de pôr Deus ao barulho.”

O conselho foi seguido e, aos 15 anos, João olhou para Kika, de 14, e pensou: “É ela!” Estão juntos desde então”. Filha única de pais que não são crentes praticantes, Kika concorda quando o noivo afirma que ser católico exige “estar contracorrente” de uma geração obcecada pelo sucesso individual, de ter tudo para si, aqui e já”.

Na campanha contra o aborto, lembra, “ele foi para a faculdade [de Direito, na Clássica] com uma T-shirt onde se lia: “Diz que não”, o que não caía bem com muitos colegas e até com alguns professores, uma vez que o ambiente era bastante hostil”.

João, preocupado com o que Graça classifica como “dimensão quase apocalíptica dos escândalos” que abalam a Igreja Católica, mas ambos “com muita esperança no Papa Francisco”, justifica a sua atitude: “Não podemos esconder a verdade dos abusos. Nisto, como noutras coisas, temos de ter a coragem para dar a cara. Temos de ser coerentes com a nossa fé, ainda que seja motivo de riso ou de gozo pela sociedade. Afinal, nunca ninguém disse que ser testemunha de Cristo era algo fácil.”

Maria João Sande Lemos : Nós Somos Igreja
© Nelson Garrido

© Nelson Garrido

Foi uma rainha que mandou construir a Basílica da Estrela, em Lisboa, um “agradecimento a Deus” por ter dado um herdeiro ao trono. Mas não será tão cedo que uma mulher virá a exercer o ministério sacerdotal nesta igreja, que também serve o convento das freiras Carmelitas Descalças e se situa a poucos metros da casa de Maria João Sande Lemos. Ela confia: “Talvez daqui a 20 anos, no tempo das minhas netas.”

Maria João está entre os leigos que trouxeram para Portugal, em 1997, o movimento católico internacional Nós Somos Igreja, criado dois anos antes na Áustria, e rapidamente ganhou seguidores na Alemanha, Itália, Espanha, Holanda, Bélgica, Reino Unido e Canadá. O primeiro documento, Petição do Povo de Deus, recolheu cerca de dois milhões de assinaturas, que foram entregues na Santa Sé.

Esse texto reclama “uma Igreja fraterna, uma Igreja com uma nova atitude face às mulheres; uma Igreja que valorize a sexualidade, elemento constitutivo do ser humano criado por Deus, uma Igreja empenhada nos direitos humanos, que valorize questões de ordem ética e moral. Bento XVI, o antecessor do novo Papa Francisco, nunca respondeu aos pedidos de uma audiência.

Por isso, quando o cardeal argentino Jorge Mário Bergoglio foi escolhido para ocupar o trono de Pedro, após a renúncia de Bento XVI, Maria João não escondeu o contentamento: “Ter escolhido o nome de Francisco [como o santo de Assis chamado a “reconstruir” a Igreja] parece-me um bom prenúncio”, disse num telefonema, posterior à entrevista.

“Ele ter aparecido à varanda para pedir que rezassem por ele, antes de dar bênção, também foi um gesto de simplicidade e grandeza.”

Num comunicado oficial, o movimento de Maria João, onde se destacam também outras activistas, como Ana Vicente e Leonor Xavier, felicitou o Papa Francisco, mas também recomendou que comece, desde logo, a reformar o Vaticano e a Cúria Romana.

“Precisamos de igualdade de direitos e responsabilidades de homens e mulheres na Igreja, se queremos ter credibilidade para promover os direitos humanos e a justiça no mundo. Precisamos de um novo entendimento do sacerdócio, que inclua a aceitação de padres casados. E precisamos de uma revisão da doutrina moral, especialmente sobre a contracepção e a homossexualidade.”

Mais: “O futuro da Igreja Católica depende da busca da verdade, da justiça e da reconciliação no que respeita aos crimes graves cometidos e escondidos pelo clero católico em todo o mundo. (…) O novo Papa tem de aceitar e seguir os ensinamentos do Concílio Vaticano II (1962-65), que ainda são válidos, mas que não foram postos em prática de forma consistente”, designadamente, “o diálogo com os católicos leais e devotos que procuram reformas e renovação.”

“É claro que não somos bem vistos no Vaticano, lamenta Maria João, sentada junto a uma mesa sobre a qual está uma moldura com a foto de João Paulo II.

A fotografia, na qual Maria João e o marido estão com o Papa que os desiludiu, foi tirada no Vaticano a 2 de Fevereiro de 1983 quando o padre angolano e “grande amigo” Alexandre do Nascimento foi elevado a cardeal. O actual arcebispo-emérito de Luanda tinha sido forçado ao exílio em Lisboa após o início da guerra colonial, em 1961.

“João Paulo II foi inquisitorial para com os teólogos”, critica Maria João. “No seu pontificado, esconderam-se os escândalos da pedofilia e assistiu-se a um declínio da Igreja, que passou a ter um estatuto mundano, constantino e romano. Ele veio cá algumas vezes e atraiu multidões, mas será que foi por isso que nos tornámos mais cristãos?”

A co-fundadora do Núcleo das Mulheres Sociais-Democratas, que era apoiante de Sá Carneiro, trabalhou com Pinto Balsemão e fez parte da Comissão para a Condição Feminina, considera que a revolução de 25 de Abril “abriu as portas para se lutar por causas justas”. E enfatiza: “Sou católica praticante, mas também exigente. Contesto frontalmente o modo como a Igreja nos abandona.”

José Leote : Homossexuais a exigir mudanças
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© Vasco Célio

No dia em que saiu fumo branco da Capela Sistina anunciando que o argentino Jorge Mario Bergoglio seria o sucessor do alemão Josef Ratzinger como chefe da Igreja de Roma, José Leote e a associação que ajudou a fundar, Rumos Novos – Homossexuais Católicos, exprimiram “profundo desalento”.

O desânimo em relação ao Papa Francisco deve-se ao facto de, como “leigo comprometido e homossexual católico”, José Leote não esquecer que, no passado, o bispo resignatário de Buenos Aires descreveu o casamento entre pessoas do mesmo sexo como “um plano de Satanás para enganar os filhos de Deus”.

Estas palavras, sublinhou a Rumos Novos, num comunicado, “causaram mágoa e dor”, suscitando dúvidas quanto à vontade de a Igreja assumir “uma nova postura” que não exclua ninguém.

Em Portimão, onde nasceu, vive e é professor de Português e Francês, José Leote, 50 anos, recebe-nos na casa que partilha com o companheiro, 20 anos mais novo. Vivem juntos há seis e tencionam casar-se.

Adoptar filhos não está, por enquanto, nos planos de ambos. Perguntamos por que, sendo a Igreja tão rígida em termos de moral sexual, ele continua a ir à missa. Responde: “Porque é estando dentro que posso ajudar a mudar alguma coisa.”

“A Igreja convive mal com a sexualidade humana, seja homossexual ou heterossexual”, lamenta José Leote, atribuindo esta dificuldade a Santo Agostinho (354-430), que influenciou muito o pensamento teológico na Idade Média. De mãe cristã e pai pagão, o bispo de Hipona (Itália) defendia, nos seus escritos, “a privação carnal” e considerava que “a castidade e o martírio eram faces da mesma moeda”.

“Os homossexuais são acolhidos com compaixão mas é-lhes exigido que sejam castos, e eu não entendo por que a hierarquia católica me impede de viver em fidelidade monogâmica e estável, sem libertinagem”, critica Leote.

“O Concílio Vaticano II [que introduziu reformas a partir de 1961] instou a Igreja a saber ler os sinais dos tempos, mas a moral sexual permanece imutável, apesar de muitos fiéis já não obedecerem às regras: quantos casais usam [o interdito] contraceptivo? Há um desfasamento entre a prédica e a prática.”

“As tradições são como um espinho cravado na carne que impede a alteração do statu quo; a Igreja sempre mudou com a História, mas nunca andou de braço dado com ela; quando chega a um determinado ponto, o ponto já não está lá”, salienta o fundador da associação, que tem, na sua lista nacional, cerca de 600 membros.

A Rumos Novos nasceu a 1 de Maio de 2008, quando um grupo de seis pessoas se reuniu em Évora. Os encontros, a princípio realizados num hotel em Lisboa, são mensais ou bimensais. O Mosteiro do Lumiar das Monjas Dominicanas foi o primeiro a abrir, literalmente, “o portão”. José Leote diverte-se ao recordar o contacto inicial.

“Em 2009, enviei um email à Irmã Maria Domingos, que tem mais de 80 anos, a explicar quem éramos e se seria possível disponibilizar um espaço. Começaríamos com uma oração e acabaríamos com a celebração da Eucaristia.”

“A resposta demorou. Decidi telefonar e, para grande surpresa minha, ela atendeu e sossegou-me: “Esta é uma casa de Deus para todos os que procuram uma reflexão; não nos interessa saber quem são”.

Na Rumos Novos defendem-se causas como o fim do celibato dos padres e o sacerdócio das mulheres, mas, acima de tudo, o direito de conciliar fé e homossexualidade. “Eu não ando de megafone na mão a proclamar a minha orientação sexual, mas a minha frontalidade já me custou muito, a nível paroquial”, revela José Leote, testemunha de situações em que jovens são forçados a deixar de ser catequistas ou escuteiros, por exemplo, quando revelam que não são heterossexuais.

“Nesta Igreja que, para o bem, o Império Romano transformou numa força poderosa e, para o mal, se tornou num Estado, é como se nos dissessem: “És homossexual? Não podes sê-lo. Se queres ser, não podes vivê-lo”.

Padre Nuno Serras Pereira : O pecado e o pecador

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Nuno Serras Pereira é um padre controverso. Anunciou publicamente que negaria a comunhão a quem usasse contraceptivos, porque “são homicidas”.

Foi condenado a 130 euros de multa, por difamação, após acusar, como serial killer, a Associação de Planeamento Familiar. Considerou que “a homossexualidade é uma doença curável”. Denegriu o aborto como “crime pior do que o da pedofilia”.

Estas tomadas de posição foram reprovadas pelo cardeal-patriarca e pelo Superior Provincial dos Franciscanos, a ordem a que pertence Serras Pereira. A crítica mais veemente foi feita pelo presidente da Conferência Episcopal Portuguesa: “A Igreja não se identifica com a rudeza da sua linguagem, que contraria a última encíclica papal.”

Numa quarta-feira da Quaresma, vamos ao encontro de Serras Pereira no Seminário da Luz, em Lisboa. Esperávamos vê-lo chegar vestido com uma túnica longa, corda e capuz, como os frades franciscanos, mas o padre, de barba e cabelo grisalho, só deixa ver como distintivo religioso o cabeção branco (colarinho).

A conversa desenrola-se, durante quase três horas, numa sala de onde se contempla um jardim esplendoroso, como se fosse uma confissão.

“Tenho 59 anos e comecei por estudar com os jesuítas, no Colégio S. João de Brito, da 1.ª classe até ao antigo 6.º ano”, apresenta-se.

“Era um rebelde, para colegas e professores. Expulsavam-me, por mau comportamento, e eu não obedecia. Quando terminaram as aulas, estive quatro anos afastado da Igreja. Era como se tentasse desprogramar toda a educação recebida, fazendo o contrário do que me haviam ensinado.”

Neste relato, várias vezes interrompido por silêncios, o padre admite: “Nunca tentei o suicídio, mas ele fez parte dos meus planos. A vida não tinha sentido. Chumbei três anos seguidos, porque era um boémio.” Face à nossa perplexidade, ele entrelaça os dedos e cruza as pernas, sinalizando desconforto.

“Eu não era ateu, mas comportava-me como tal. Por exemplo, cheguei a fechar um vizinho no quarto de banho para impedir que ele fosse à missa. Eu era um ditador. Um tirano. Vendi a mota alemã que tinha e gastei todo o dinheiro na compra de livros de alquimia, quiromância, ocultismo, hipnotismo… Contactei o culto do reverendo Moon e outras seitas. Fiz meditação transcendental.”

A transformação chegou em 1973, quando se estreou, em Portugal, o filme Jesus Cristo Superstar. “Em conversas com um amigo, discutindo a existência de Deus, a minha fé veio ao de cima. Combinámos, com outros dois amigos, reunirmo-nos três a quatro vezes por semana, à noite, para ler e reflectir sobre os textos sagrados.”

“Não íamos à missa, mas os Evangelhos começaram a despertar-me a atenção. Voltava para casa com a Bíblia, uma garrafa de brandy (aguardente ou cerveja – andava sempre embriagado) e um ou dois maços de cigarros sem filtro. Por dia, eu bebia 12 a 14 cafés. Cheguei a pesar 56 quilos, o que fazia de mim um esqueleto de 1,82m de altura.”

Importante para “a redenção” foi também Loureiro Sebastião Dias, pároco de S. João de Brito. “Gostei muito do seu entusiasmo e alegria. Passei a ir à missa todos os dias.”

Depois de 4-5 anos sem o “sacramento da reconciliação”, começou a confessar-se todas as semanas, durante 30-40 minutos, depois de participar num Cursilho de Cristandade. Fez um exame de consciência: “Estou corrompido, num esgoto imundo e fedorento, e só Jesus Cristo me vira do avesso.”

Pode esta “via-sacra” pessoal – que depois resultou em frequentes períodos de jejum total de 24-48horas – ter contribuído para as “posições extremistas” que passou a defender após a ordenação como padre, em 1981? Santo Agostinho, e a sua rígida doutrina moral, foram uma grande influência. “O Inferno existe e Deus castiga como um pai que corrige o filho”, realça.

A entrevista termina com o padre a repetir que “é possível curar as tendências homossexuais e recuperar a identidade original, porque ninguém nasce com esta enfermidade espiritual, que é a atracção desordenada por pessoas do mesmo sexo”.

Reafirma que “o aborto e a pedofilia são dois crimes abomináveis, mas o primeiro pior do que o segundo, porque matar um ser humano (mesmo em caso de violação – neste caso, é violência sobre violência) é pior do que o molestar; a morte é irreversível mas o criminoso pode regenerar-se e ser perdoado”.

Manuel Augusto Ferreira : Os missionários de Comboni 
© Enric Vives-Rubio

© Enric Vives-Rubio

Superior-Geral dos Missionários Combonianos do Coração de Jesus, desde 1997 até 2003, Manuel Augusto Ferreira está habituado a que lhe perguntem se a Igreja Católica não contribuiu, com a proibição do preservativo como contraceptivo, para a epidemia de sida em África.

A pergunta justifica-se porque a sua congregação, fundada por S. Daniel Comboni, em 1857, tem uma forte acção naquele continente, onde começou a desenvolver-se ao longo do rio Nilo, do Cairo ao Chade.

Cerca de 22 milhões de pessoas estão infectadas com o VIH na África Subsariana, onde morrem 34 das vítimas de sida em todo o mundo, segundo a ONU. Em Moçambique, onde os Combonianos também estão presentes, há 1,5 milhões de pessoas portadoras do vírus – é o país lusófono com maior prevalência da doença.

De salientar, por outro lado, que, segundo a Organização Mundial de Saúde, “pelo menos 30% das infra-estruturas de saúde em África estão ligadas a instituições religiosas”.

Numa sala repleta de estatuetas esculpidas em madeira e quadros com paisagens africanas, o padre que é também director revista Além-Mar aspira paciência, para repetir o que parece não ter eco: “É verdade que o preservativo pode ajudar a conter a propagação do vírus da sida, mas se não mudarmos mentalidades de nada serve.”

“É preciso uma dupla acção, que é feita pelas nossas missionárias e que consiste na distribuição dos preservativos mas também em sensibilizar a consciência das pessoas. Muitas vezes são as tradições locais que impedem a distribuição dos preservativos. Em determinadas regiões, a vida sexual é iniciada muito cedo, e os homens não gostam de ver colocada em causa a sua virilidade.”

“África é a área geográfica onde a Igreja tem maior vitalidade”, congratula-se Manuel Ferreira, que foi ordenado sacerdote aos 26 anos, em 1976, e tem hoje 63.

Estudou Teologia em Roma, na universidade dos jesuítas. Quando foi convidado a dirigir a Além-Mar, depois do 25 de Abril, “os Missionários Combonianos já se destacavam pela sua grande abertura no campo social e político.

Ele cita D. Manuel Vieira Pinto, que, como Bispo de Nampula (Moçambique), enfrentou o Estado Novo defendendo o direito à autodeterminação das antigas colónias. Nessa altura, dez membros da congregação foram expulsos.

A própria revista Além-Mar foi suspensa durante seis meses, por ordem de Salazar, em 1962, depois de ter noticiado uma visita de Paulo VI à Índia, durante a qual o Papa “demonstrou abertura para com os líderes da guerrilha pela independência de Angola”.

Os Combonianos chegaram a Portugal em 1947. A primeira casa foi construída em Viseu, seguindo-se as de Vila Nova de Famalicão, Maia, Lisboa, Coimbra e Santarém. Portugueses são 93: 70 padres e 23 irmãos.

Um dos projectos mais florescentes lançados em África arrancou no novo Estado do Sudão do Sul, em 2003, o ano em que Comboni foi proclamado santo. Oferecendo equipamento, formação e técnicos voluntários, os missionários criaram uma rede de rádios locais para ajudar as comunidades. “Os programas combinam noticiários com debates e são transmitidos nas línguas das várias tribos”, indica Manuel Ferreira.

“Não é preciso um orçamento muito elevado e o impacto é enorme, porque aqui as pessoas andam sempre com o transístor colado ao ouvido.”

Os Combonianos estão também na Ásia, designadamente nas Filipinas, em Macau e em Taiwan. No Golfo Pérsico, de onde Manuel Ferreira acaba de chegar, os governos “toleram o cristianismo”, na forma de escolas, “frequentadas até por muçulmanos devido à qualidade do ensino”, mas dificultam muito a construção de igrejas.

Segundo o balanço do padre comboniano, os missionários foram bem-sucedidos na América Latina, em parte graças aos movimentos da Teologia da Libertação, durante as ditaduras, “porque deixaram um legado de justiça e paz, com comissões de reconciliação”. Em África, isso ainda não foi possível, porque as sociedades continuam muito fechadas.

Luís e Vitória Simões : Quando Deus leva um filho
© Enric Vives-Rubio

© Enric Vives-Rubio

No dia do funeral de Sara, a filha de dois meses dos engenheiros químicos Luís e Vitória Simões, ambos com 40 anos, familiares e amigos ficaram surpreendidos por nem o pai nem a mãe estarem a chorar.

Pelo contrário, eram eles que confortavam quem não conseguia segurar lágrimas e soluços. Eles têm uma explicação para o modo como aceitaram a perda: a fé.

Residentes em Alhandra, que Soeiro Pereira Gomes escolheu para prestar homenagem aos “homens que nunca foram meninos”, no seu livro Esteiros, Luís e o seu irmão sempre foram à missa, todos os sábados ou domingos.

Vitória e o seu irmão não frequentavam a igreja. Os pais de Luís são católicos devotos; os de Vitória não praticam qualquer religião.

“Eu queria ir à catequese, como os meus colegas da primária”, diz Vitória, que conheceu Luís, quando os dois, de 18 anos, estudavam na universidade em Lisboa, a cerca de 40 quilómetros de distância desta freguesia de Vila Franca de Xira.

Quando o namoro “ficou firme” e os dois decidiram que queriam “constituir família”, concordaram também que, no dia do casamento, ela fizesse a primeira comunhão e o crisma.

“A primeira sensação foi de responsabilidade”, descreve Vitória. “A partir daquele momento, eu seria responsável por tudo o que fizesse, mas sabia que tinha uma ajuda divina. Até então, eu rezava mas a sensação era a de que ninguém me ouvia.”

Luís, que faz parte do Conselho Económico e Social da igreja – encarregue, designadamente, de gerir poupanças e despesas -, garante que nunca escondeu dos amigos a sua devoção. “Pelo contrário, senti sempre muito orgulho, talvez porque pertencia a um grupo de jovens muito sólido.”

O compromisso que marido e mulher assumiram passou também pela educação religiosa dos três filhos, todos rapazes. Mesmo em férias, fazem questão de ir à missa. “Se não vou”, garante Vitória, “sinto um vazio.”

Vasco, o menino mais velho, que tinha dois anos quando Sara morreu, de meningite, às vezes faz perguntas que perturbam. “Por que é que Deus a levou se não fez mal a ninguém?” Outras vezes pede à avó paterna que, “quando for para o Céu, volte para contar o que existe lá”.

Em Alhandra ainda há quem pergunte ao casal Simões por que não chorou no funeral de Sara. Eles contam o que viram e ouviram no dia em que a bebé foi internada no Hospital de D. Estefânia, em Lisboa. “Encontrámos uma senhora que já tinha perdido uma filha, com leucemia, e estava ali a cuidar de outra, afectada pela mesma doença”, diz Vitória.

“A senhora veio ter comigo para garantir que a minha menina estava a ser bem tratada. O caso dela era bem pior, e eu relativizei, de certo modo, a minha dor. Também tento entender a minha própria serenidade, naquela altura, porque não tinha tomado calmantes. Os médicos nunca nos deram esperança. Claro que pensei: porquê nós? Mas achei que a razão haveria de chegar num outro momento.”

Luís também se questionou: “Será que ela morreu porque a nossa vida é boa? Depois, aceitei que Sara terá sempre um lugar no nosso coração. Talvez Deus precisasse dela e, em troca, deu-nos mais dois filhos, o Rodrigo e o Henrique, que agora são o nosso maior tesouro. O que importa é o presente e o futuro – não o passado.”

Irmã Ana Luísa Prego : De casa para o convento
© Nelson Garrido

© Nelson Garrido

Aos 17 anos, em Setúbal, onde nasceu, Ana Luísa Anjos Prego “gostava muito” de um rapaz, que era colega nas explicações de Matemática e com quem se encontrava na missa. Aos 18, quando ambos regressavam a suas casas, de autocarro, ele ganhou coragem e, um dia, pediu-lhe que namorassem.

Ela olhou-o e disse: “Já encontrei o meu amor; vou ser freira.” Apesar de católico praticante, o jovem ficou espantado, mas aceitou a decisão da rapariga que já havia recusado outros pretendentes.

Se, entretanto, não tiver sido enviada para uma missão no estrangeiro (de 1998 a 2003 esteve no Burkina Faso, onde a morte de famintos envergonhava a sua vontade de comer), podem encontrar Ana Luísa, hoje com 43 anos, na Casa de Acolhimento a Jovens de Barcelos das Franciscanas Missionárias de Maria.

Trata-se de um instituto internacional e de direito pontifício, fundado em 1877, na Índia. Tem agora quase 7000 irmãs, em 76 países dos cinco continentes.

Para a entrevista, Ana Luísa deslocou-se de carro ao Porto, onde nos esperava na centenária Capela de Nossa Senhora dos Anjos.

Erigida em 1899, é um tributo à ermida da Porciúncula (Itália), onde S. Francisco restaurou e fundou a Ordem dos Frades Menores. Sem o hábito geralmente associado a freiras e monjas, mas modesta num fato de casaco e saia (comprimento por baixo do joelho), a irmã escolhe um recanto para se sentar.

Não será junto à imagem grande de S. Francisco, com resplendor em prata, esculpida em 1897, mas num de dois confessionários laterais, defronte para uma réplica do crucifixo bizantino de S. Damião, pintado por um artista desconhecido no século XII.

“Foi por intermédio de um crucifixo como este que Jesus ordenou: “Francisco, reconstrói a minha Igreja”, informa a missionária, que, no dia seguinte, exultará com a decisão do novo Papa de dar a si próprio o nome do “homem apostólico” de Assis.

A história de Ana Luísa começa no Alentejo – o Baixo, de onde a mãe é oriunda; e o Alto, de onde provinha o pai. “Não era uma família de crentes, mas tínhamos valores fortes de solidariedade”, assegura.

“Próximos da ideologia comunista, dar salário a quem trabalha, tinham um grande sentido de justiça. Não lhes importava a confissão religiosa de cada um, apenas as pessoas, mas só me baptizaram aos seis anos, e tive de esperar até aos 13 para fazer a primeira comunhão, e até aos 16 para o crisma.”

Quando a filha mais velha comunicou a decisão de ser freira, apenas um mês antes de entrar para o convento, em 1989, o pai ficou “tão zangado” que nem lhe atendia o telefone.

Se falava, inquiria: “Onde está Deus? Como é que Ele te chamou? Por que falou contigo primeiro e não comigo?” Tios e primos disseram-lhe que era “uma ideia maluca” ou que “não ter marido era anormal”. Foram precisos “cerca de quatro anos” para que, finalmente, aceitassem a sua vocação.

Sensibilizada com as imagens de fome na Etiópia que via na televisão, Ana Luísa assegura que sentiu muito cedo “o desejo de ajudar povos em dificuldade”. Concluído o 12.º ano, fez um curso de amas e completou outro, de Enfermagem. Foi por essa altura que sentiu “o chamamento”.

Sob “acompanhamento espiritual” de um padre diocesano, aproximou-se de quatro ou cinco congregações e lia as obras das fundadoras: “Tentava discernir onde Deus me queria.”

E ela crê que foi Deus quem a encaminhou para as Franciscanas Missionárias de Maria.

“Mais liberais, porque abertas a todas as profissões, da cozinheira à artista plástica, a sua missão é universal, levar a Igreja onde está menos presente, dando preferência aos mais pobres, na total disponibilidade para os outros”, explica.

Do tempo de formação inicial até fazer, em 1997, os votos perpétuos (pobreza, obediência e castidade), que são o “compromisso definitivo”, foram oito anos. “Era necessário este longo percurso, para ter a certeza, eu e o Instituto, da veracidade dos sinais da vocação.”

Os dias da irmã Ana Luísa começam por volta das 6h00 da manhã, “com meditação pessoal da Palavra de Deus e ioga”. Vai depois à igreja de S. Mamede de Arcozelo, para participar na missa, seguindo para as actividades que desenvolve desde 2003, relacionadas com “a formação inicial e permanente na vida religiosa, e pastoral juvenil e vocacional”.

Para além da formação cristã, ela ensina, por exemplo, “como se vive a amizade, se gere a fúria ou se lida com o corpo”.

A propósito do corpo, fala de sexualidade, sem pudor mas ruborescendo ainda mais a face, rosada sem maquilhagem: “Pelo voto de castidade estou comprometida a fazer de Deus o grande amor da minha vida. Podia ser feliz casada, mas não tão feliz quanto sou. Gosto de olhar para montras com vestidos de noiva – não poder usá-los não impede que os aprecie.”

Deleitar-se com roupas bonitas e tê-las são coisas diferentes. “Se eu tiver mais do que preciso, há gente que tem menos.”

Nas férias, entre outras coisas que aprecia fazer, vai à praia “para nadar”. Também vai ao cinema, embora o último filme que viu, Amor, de Michael Haneke, a tivesse decepcionado. “Aborda a eutanásia, um caso de desespero, para mim, incompatível com o verdadeiro amor em Deus.”

Na sua “pequena fraternidade”, com 4-5 irmãs, é rotativo o trabalho de fazer as compras e cozinhar, com produtos orgânicos, preferencialmente. “Nunca se deita comida para o lixo; come-se menos. No nosso orçamento há sempre uma parte para os pobres, mas não criamos dependências.”

Ao recordar a passagem por um orfanato no Norte de África, onde “crianças eram abandonadas por mães solteiras que escondiam a gravidez para não serem mortas”, Ana Luísa valoriza o que tem: “A minha vida é simples, mas nunca serei miserável como tantos que tenho encontrado.”

© EPA-EFE

Este artigo, agora actualizado, foi publicado originalmente no  jornal PÚBLICO, em 31 de Março de 2013 | This article, now updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on the March 31, 2013

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