Pela primeira vez, duas obras da literatura persa contemporânea foram editadas em hebraico: Querido Tio Napoleão e O Coronel. A tradutora, Orly Noy, “100% iraniana e 100% israelita”, espera que os leitores “descubram humanidade” na história de amor, farsa e sátira social de Iraj Pezeshkzad e no libelo político de Mahmoud Dowlatabadi. (Ler mais | Read more…)

Orly Noy, israelita-iraniana, traduziu para hebraico as obras-primas de dois gigantes da literatura persa: Querido Tio Napoleão, de Iraj Pezeshkzad, e O Coronel, de Mahmoud Dowlatabadi – “dois livros que se completam”. O primeiro demorou dois anos a traduzir; o segundo seis meses
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Orly Noy tinha 9 anos quando a sua família emigrou do Irão para Israel. Era 16 de Janeiro de 1979, o mesmo dia em que o xá Mohammad Reza Pahlavi partia para o exílio, onde haveria de morrer. Estava “um Inverno rigoroso”, lembra-se, mas as ruas abrasavam de fervor revolucionário.
“Saímos para comprar comida e vimos uma turba de manifestantes incendiar a dependência do Banco Central, em Teerão, onde o meu pai era gestor. A decisão de abandonar o país foi tomada naquele instante, mas a minha mãe ainda teve tempo de colocar, na mala, uma das suas jóias: Dâ’i jân Nâpol’on [“Querido Tio Napoleão”].
Tão preciosa (e venerada) é a obra de Iraj Pezeshkzad que, ao ouvir a filha anunciar que iria traduzir Querido Tio Napoleão para Lashon haKodesh (“A Língua Sagrada” da Bíblia), a mãe de Orly Noy assoprou dúvida e susto: “Tens a certeza que queres fazer isso?” Também Jonathan Nadav, editor da Xargol Books, se mostrou relutante.
Não por duvidar da competência da professora que lhe colocou o manuscrito na secretária, mas por “temer uma má receptividade do público”, num dos picos da retórica de guerra envolvendo Israel e o Irão.
Ele arriscou e, em Agosto de 2012, a primeira edição em hebraico de um livro persa estava à venda – com tanto êxito que, este ano, foi publicada a segunda edição.
Quase em simultâneo mas, desta vez, por iniciativa de outra editora israelita (Am Oved), foi também publicado O Coronel, de Mahmoud Dowlatabadi, aclamado como o patriarca da ficção iraniana.
Diz-me Orly Noy, numa entrevista, por telefone, a partir da Florida (EUA), onde dá aulas de hebraico: “São dois livros que se completam: o primeiro, que demorou dois anos a traduzir, é divertido; o segundo, que completei em seis meses, é o mais triste que li em toda a minha vida – tão triste que tive de fazer várias pausas, para sair da biblioteca, fumar e enxugar as lágrimas.”
Publicado no Irão em 1973, Querido Tio Napoleão deve uma parte significativa da sua popularidade a uma série televisiva que nele se baseou. Foi a memória desta, e não do livro, que ainda desconhecia, que Orly Noy, hoje com 42 anos, transportou na fuga para Jerusalém.
“No meu tempo, não havia um único iraniano que, desde criança, não gostasse da história de Pezeshkzad, porque várias gerações se revêem nela”, salienta a tradutora.

Os livros Querido Tio Napoleão e O Coronel, nas suas edições em hebraico – à venda numa livraria em Telavive. Traduzir a primeira obra, amada pelos iranianos, foi “um divertimento”, mas, no caso da segunda, foi “um peso emocional”, diz Orly Noy
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Que história é esta que, diz Orly Noy, “toca profundamente o carácter colectivo dos iranianos, povo com um passado glorioso mas com dificuldade em assumir responsabilidade e rápido a culpar os outros pelos seus males”?
É uma história de farsa e sátira, mas também de afectos, que um menino de 13 anos (sem nome), temeroso de um tio tirano e enamorado da filha deste, Layli, começa a narrar assim:
Um dia quente de Verão, para ser mais preciso, 13 de Agosto, por volta de um quarto para as três da tarde, eu apaixonei-me. A saudade e a amargura que desde então tomaram conta de mim fizeram-me perguntar, frequentes vezes, se as coisas teriam ocorrido de forma diferente caso tivessem acontecido entre 12 e 14 de Agosto.
O tempo da história é o da II Guerra Mundial, quando Britânicos e Russos invadiram o Irão, com pavor de que as reservas de petróleo caíssem nas mãos da Alemanha de Hitler – mas também porque Londres temia que Moscovo ameaçasse a Índia, e Moscovo receava que Londres dominasse a Ásia.
A ocupação pelas forças aliadas durou até ao fim da guerra e, nesse período, o primeiro Xá (Reza Khan) Pahlavi foi obrigado a abdicar a favor do filho (Mohammed Reza), que seria o último desta brevíssima dinastia.
Uma vez que o primeiro Pahlavi saiu do trono, em 1941, sob pressão de Ingleses (e Americanos) e o último foi reinstalado no trono depois de um golpe da CIA, encorajado por Winston Churchill, que afastou o chefe do governo nacionalista Mohammad Mossadegh, em 1952, os Iranianos desenvolveram uma suspeição de que todos os seus males vinham do exterior.
Dick Davis, o académico inglês que se deixou encantar pelo Irão nos anos 1920 e traduziu para inglês, como My Oncle Napoleon, a obra mais célebre de Iraj Pezeshkzad anota, no prefácio: “A paranóia obsessiva do ‘Querido Tio’ [um cossaco falhado que demoniza os britânicos] é um exagero cómico e extremo de um fenómeno comum na cultura iraniana, a convicção de que os últimos dois séculos de história do país (…) foram engendrados por actores externos”.
Uma convicção na qual se incluem “alegações bizarras como a de que a revolução islâmica foi organizada pelos britânicos ou a de que os EUA provocaram deliberadamente a guerra com o Iraque [1980-1988] para poderem colocar a sua força naval no golfo Pérsico e assim vigiar de perto o Irão.”

Iraj Pezeshkzad, o autor de Querido Tio Napoleão (aqui numa sessão de autógrafos), admite que há muito de autobiográfico nesta livro amado por milhões de iranianos, na pátria e no exílio
© flickr.com
Na introdução à versão inglesa, também Azar Nafisi, a autora de Ler Lolita em Teerão (Ed. Gótica, 2004), observa que nem o actual regime escapou ao “síndroma napoleónico”, já que “uma das anedotas mais populares que circulavam no Irão, após o fim de 2500 anos de monarquia, era a de que quem espreitasse por baixo das barbas do Ayatollah Khomeini encontraria a frase Made in England.”
“Alguns ainda acreditarão como sendo verdade que todo o establishment religioso é uma criação dos britânicos”.
E se alguém argumentasse que o defunto teólogo que, em 1970, inventou o conceito de velayat-e faqhi (governo do jurista) – quebrando a tradição xiita de que todo o poder temporal na ausência do 12º imã é profano – a reacção seria a de um “sorriso indulgente”, indicativo de que também Khomeini “era agente infiltrado dos ingleses para manter o Irão subdesenvolvido”.
O cenário de Querido Tio Napoleão é um vasto jardim com um condomínio de três habitações onde as decisões, incluindo mentiras para preservar a honra, são tomadas em conselhos de família.
O homem que desde a juventude colecionava tudo o que dizia respeito ao corso que foi imperador da França e cujas tropas foram derrotadas – com a ajuda dos ingleses – nas três invasões de Portugal entre 1807 e 1810, inventara para si próprio um papel heróico em várias batalhas que muito se assemelhavam às das guerras napoleónicas.
O “querido tio” usava a sua insignificância para ser relevante, dominando os que o rodeavam. Do fiel servo, Mashe Qassem, que ouvia com admiração as suas fantasias e as validava perante cépticos e trocistas, ao cunhado e pai do narrador, que acusava Napoleão de ter desgraçado a França e, por isso, se tornara persona non grata.
De Asadollah Mirza, funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros para quem “ir a São Francisco” era o inuendo de “fazer sexo”, e da sarcástica Senhora Aziz al-Sataneh, até Lady Maharat Khan, a única personagem britânica, uma loura casada com um brigadeiro sikh Maharat.
Sendo Mashe Qassem um camponês e o “querido tio” autoproclamado aristocrata, Orly Noy admite que “foi difícil estabelecer a diferença de classes na transposição do discurso das personagens”, de persa para hebraico, “por aqui não há dialectos”.
Nunca se atreveria, realçou, a traduzir a poesia de Hafez e Sa’adi, tesouros da literatura iraniana, “porque é complicado o esforço de tentar manter as rimas.”
Também foi preciso incluir nas “inúmeras notas de rodapé” explicações para termos que estranhos não entenderiam. “Eu costumo brincar com os meus amigos, dizendo que a razão por que há tantos exilados iranianos em São Francisco e Los Angeles se deve aos conselhos sexuais de Asadollah”.
Orly Noy também considerava que Asadollah Mirza, funcionário do MNE tal como o autor de Querido Tio Napoleão, “voz racional no meio de lunáticos”, seria a personagem mais próxima de Iraj Pezeshkzad, mas este já havia esclarecido, em entrevista ao site The Iranian, que Mashe Qassem é o seu herói. “Pela sabedoria demonstrada, não pela educação ou conhecimento que lhe faltavam”, explicou.
“Simboliza o homem da rua, aquele que sobrevive graças à generosidade do mestre – é uma instituição em si e de si próprio, uma presença eterna em muitos lares iranianos, muito mais um membro da família do que um criado.”
“É uma versão em tamanho pequeno do ‘querido tio’, e as suas fantasias são um espelho das do seu patrão. O ‘querido tio’ não existiria sem este servo fiel ao seu lado.”
Hoje com 85 anos e saúde débil, Pezeshkzad começou a carreira como tradutor de Voltaire e Molière, para farsi/persa, no início dos anos 1950. Licenciado em Direito em Paris, foi juiz, durante cinco anos e, depois, diplomata na Áustria, na antiga Checoslováquia, na Suíça e na Argélia, antes de regressar ao MNE para chefiar o Departamento de Relações Culturais.
À semelhança de Orly Noy, também ele deixou a pátria, em 1979 para se refugiar em França. Juntou-se a Shapour Bakhtiar (assassinado em 1991, foi último primeiro-ministro do imperador deposto) e ao Movimento de Nacional da Resistência Iraniana.
A pouco-e-pouco, tornou-se mais jornalista do que escritor, mas nunca abandonou a língua persa que o define como iraniano.
Azar Nafisi recomenda que Querido Tio Napoleão seja leitura obrigatória de todos os peritos e analistas do Irão.
Porque permite, “de uma maneira politicamente incorrecta, deliciosa e encantadora, olhares importantes sobre a cultura e as tradições do Irão, os seus conflitos do presente e história passada, assim como as suas relações paradoxais com o Ocidente.”
E adianta: “Querido Tio Napoleão refuta, de muitas formas, as imagens do Irão, sinistras e histéricas, que têm dominado o mundo ocidental desde há quase três décadas”, depois que o Ayatollah Khomeini instaurou uma teocracia.
Para Nafisi, a obra de Iraj Pezeshkzad “representa, a muitos níveis, as vozes confiscadas e emudecidas do Irão, expondo uma cultura cheia de um sentido profundo de humor e ironia, assim como de sensualidade e ternura”.
Da estrutura do texto ela observa um certo erotismo que “contraria qualquer doutrina fundamentalista, seja ela islâmica ou não.”

Mahmoud Dowlatabadi escreveu O Coronel, mas o original persa continua censurado em Teerão. Não admira, ele mostra como a Revolução Islâmica “devorou os seus filhos”
© The New York Times
Basta dizer que o ponto de partida é uma investigação sobre “os sinais e os sintomas do amor”. Os casos que o narrador conhecia desencorajavam-no: “Layli e Majnun [clássico da literatura árabe que o persa Nizami Ganjavi popularizou no século XII], morte e tragédia; Shirin e Farhad [parte do épico Shahnameh/”O Livro dos Reis”, de Ferdowsi, o grande poeta nacional iraniano], morte e tragédia; Romeu e Julieta [de William Shakespeare] morte e tragédia. (…) Que Deus não permita se, na verdade, me apaixonei e também irei morrer.”
Na demanda de respostas para um amor casto, o atormentado sobrinho do “tio Napoleão” vai ouvindo conversas e segredos para impedir que Layli se case com um primo que ele odeia. Mas sente-se perdido.
O simplório Mashe Qassem, que é perito em monólogos e tem explicações para tudo, augura um destino nefasto para quem se apaixonar; o sedutor Asadollah Mirza dá-lhe um conselho, que o repugna, o de dormir com a sua amada.
Para Nafisi, Querido Tio Napoleão é também “politicamente subversivo” e visa determinadas mentalidades e atitudes. “O absurdo que nos pode fazer rir com um personagem ficcional burlesco pode tornar-se fonte de grande sofrimento quando praticado na vida real”, alerta Azar Nafisi.
“Tios napoleonitas podem encontrar-se em qualquer parte do mundo e em todos os estratos das sociedades. No Irão (…), esta atitude não se limita ao cidadão ‘comum’ mas prevalece imenso entre a chamada elite política e intelectual.”
Embora o “tio Napoleão” só se mostre um ditador mesquinho na esfera familiar, “também representa ditadores mais sórdidos e com mais poderes para fazer mal”.

Judeus iranianos nas celebrações do Hanukkah na Sinagoga de Yousefabad, em Teerão (27 de Dezembro de 2011). Esta comunidade não enfrenta, aparentemente, restrições aos seus rituais religiosos, embora as mulheres não estejam isentas de cumprir o código de vestuário islâmico, que obriga ao uso do véu. Os judeus têm também um representante no Parlamento, lugar reservado pela Constituição
© Vahid Salemi | AP | The Atlantic
Na totalitária República Islâmica, Nafisi detecta paralelo com a paranóia palpável na obra de Iraj Pezeshkzad. “Para justificar o seu poder, o regime substituiu a realidade pelas suas mitologias, baseia a sua justiça desatinada numa lógica tio napoelónica, destruindo as vidas de milhões de iranianos através das suas leis, prendendo e torturando e matando todos os inimigos imaginados, acusando-os de serem agentes do Grande Satanás, designadamente a América e aliados.”
“Se o Tio Napoleão achava que o atraso no comboio do sobrinho era um complô britânico, os guardiões da moralidade no Irão vêem o bâton de uma mulher ou a gravata de um homem como acessórios num plano imperialista para destruir o Islão.”
Também Pezeshkzad, no posfácio do livro que Orly traduziu, “com a sua bênção”, revela o quanto o passado permanece presente mais de três décadas após primeira edição: o actual regime iraniano proibiu Querido Tio Napoleão (incluindo a série televisiva) “por considerar que tinha sido encomendado por imperialistas para destruir as raízes da religião.”
O longo braço da censura continua a não chegar, porém, ao mercado negro, onde quem procura o interdito sempre o encontra.
Quem leu a banda desenhada e/ou viu o filme Persépolis, de Marjane Satrapi, lembrar-se-á da cena em que uma fileira de homens, na Avenida Gandhi, abre os sobretudos para a exposição e venda clandestina de cassetes de “Estivie Vonder” ou “Jikael Makson”, mas também verniz de unhas ou jogos de xadrez.
Azar Nafisi, cujas memórias da vivência no Irão, de 1979 a 1997, resultaram no best-seller onde descreve a sua expulsão de uma universidade por se recusar a usar o véu e a formação de um clube de sete raparigas estudantes que se juntavam semanalmente em sua casa para ler Lolita, de Vladimir Nabokov, evoca nomes grandes da literatura persa para engrandecer Querido Tio Napoleão.
Recorda, nomeadamente, Ubayd-i Zakani (1300-1371), escritor da corte dos Timúridas (dinastia turco-mongol de Tamerlão), famoso pelos versos caústicos e obscenos, mas também autores do século XX, como o mestre da prosa Sadegh Hedayat (1910-1951), hoje criticados pelo islamismo político por “articularem os dilemas do Irão moderno”.
O jardim do “querido tio” é, de certo modo, na opinião de Nafisi, “um microcosmo de uma sociedade moderna iraniana (…) a enfrentar uma grave crise de identidade”.
A uma “escala maior”, reflecte também os desafios que o Irão teve de enfrentar na transição dos reis Qajar para os Pahlavi, e destes para os líderes religiosos – todos eles “déspotas, reaccionários e corruptos”.

Livraria em Teerão: a censura ainda determina o que pode e não pode ser vendido
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A graça com que Iraj Pezeshkzad impregnou o seu livro contribuiu, em grande medida, segundo Orly Noy, para o êxito extraordinário da tradução hebraica. “Iranianos e israelitas não são muito diferentes no seu sentido de humor”, justifica. “Basta dizer que uns e outros são dos poucos povos que zombam de si próprios.”
Há também um ponto importante que cativa os Israelitas e que o autor descreveu como sua missão: “Ainda que as lágrimas possam assomar aos olhos dos meus leitores, nunca permitirei que essas lágrimas deslizem pelos rostos; porque será sempre injectada uma dose gargalhada quando menos se espera.”
O sucesso deve-se também ao facto de “a ficção se basear na realidade”: Iraj Pezeshkzad confessou não apenas ter-se inspirado num dos seus tios, “neurótico e exagerado”, que adorava Napoleão e desconfiava dos britânicos, mas também num amor proibido.”
“É ele quem abre a alma, no posfácio: “Quando era um pouco mais velho do que o narrador, eu e uma jovem apaixonámo-nos, mas o nosso amor enfrentava demasiados obstáculos. O pai dela, que era de uma família rica e bem estabelecida, olhava para mim com desprezo, porque eu não passava do filho de um médico.”
“Nessa altura, a tradição social decretava que uma filha tinha de obedecer aos desejos do pai. Apesar disso, eu tinha esperança. Para pedir a sua mão mais rapidamente, abandonei os estudos de Medicina e segui Direito, o que demorava menos tempo para obter o diploma.”
“Ao mesmo tempo, esperando ter fama, comecei a escrever. Julgava que poderíamos ficar juntos mas quando comecei a trabalhar como jovem advogado e já era um autor reconhecido, o meu mundo ruiu subitamente: o pai da minha amada convenceu-a a casar-se com o filho de um mercador rico.”
Inicialmente, Iraj Pezeshkzad tentou contar a história pessoal. Desistiu quando compreendeu que estava a “descarregar fúria e angústia” sobre a mulher que adorava, “inocente e, provavelmente, tão infeliz” quanto ele. Para lhe “fazer justiça”, optou por criar Querido Tio Napoleão.
Quanto a Orly Noy, se “ler, reler e traduzir” as mais de 500 páginas desta obra constituíram “um divertimento”, as cerca de 250 de Kolonel (título em persa) foram “um peso emocional”.

A primeira edição de O Coronel saiu em alemão em 2009, mas a original continua nas mãos dos censores iranianos, que exigem cortes, recusados pelo autor
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Tom Patterdale, o tradutor da versão inglesa, revela que Mahmoud Dowlatabadi, “um colosso da literatura contemporânea iraniana”, demorou 25 anos a escrever The Colonel (O Coronel). Foi mantendo o manuscrito numa gaveta, retirando-o periodicamente para o rever.
Em 2008, concluiu que estava pronto para ser publicado. A primeira edição saiu em alemão em 2009, mas a original continua nas mãos dos censores iranianos, que exigem cortes, recusados pelo autor milhões de iranianos.
Em O Coronel, a história começa numa noite de chuva torrencial, em Rasht, capital da província de Gilan, no Mar Cáspio, onde “o arroz cresce na planície costeira e o chá é cultivado nos sopés das montanhas Alborz”. O protagonista é acordado por dois polícias que o levam para recolher o cadáver da filha mais nova, Parvaneh, para que possa ser sepultada.
O destino trágico de Parvaneh, membro ou simpatizante dos Mujahedin do Povo (uma “esquerda islâmica” que se tornou na principal organização de resistência armada contra os sucessores dos Pahlavi) é comum aos cinco filhos do coronel.
Todos eles representam diferentes facções da Revolução Islâmica: Amir, o mais velho, personifica o partido comunista Tudeh (ficou perturbado mentalmente depois de torturado numa prisão do Xá); Mohammad Taqi, o segundo, é militante dos Fedayin do Povo (morto durante a sublevação, foi primeiro aclamado como “combatente da liberdade” e depois como “dissidente”, quando o grupo se revoltou contra o poder dos homens de túnica e turbante); Masou, o filho mais novo, apoiava Khomeini e morreu como “mártir” na frente de batalha contra o Iraque; Farzaneh, a filha a mais velha, é casada com Qorbani Hajjaj, tipo ganancioso disposto a sacrificar princípios para manter privilégios.

Dick Davis, o académico inglês que se deixou encantar pelo Irão nos anos 1920 e traduziu para inglês, como My Oncle Napoleon, a obra mais célebre de Iraj Pezeshkzad anota, no prefácio: “A paranóia obsessiva do ‘Querido Tio’ [um cossaco falhado que demoniza os britânicos] é um exagero cómico e extremo de um fenómeno comum na cultura iraniana, a convicção de que os últimos dois séculos de história do país (…) foram engendrados por actores externos”.
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O coronel, que não tem nome, era oficial do exército imperial e idolatrava um outro coronel, Mohammad Taqi Khan Pesyan (1892-1921), que mandou prender o primeiro-ministro Ahmad Qavam, acusando-o de estar “ao serviço de interesses estrangeiros”, após a Primeira Guerra Mundial.
Na província de Khorasan, onde Qavan tinha sido governador até ir para a cadeia em Teerão, Pesyan instaurou uma região autónoma.
Figura austera e honesta, ali pôs em ordem as finanças locais e em prática um sistema educativo que integrava as mulheres. Foi traído pelo governo soviético em Moscovo, e recusou amnistia, salvo-conduto e indemnização, oferecidos por Qavam.
Mais tarde, quando Reza Khan (o primeiro Xá Pahlavi) era ministro da guerra, Pesyan (tratado como Kolonel, palavra derivada do francês porque estudou na Europa, e não do persa Sarhang, que define esta patente) foi morto num confronto com soldados que o perseguiam. Ainda hoje, os nacionalistas iranianos o admiram como um “patriota secular”.
O coronel sem nome do livro de Dowlatabadi era um liberal que encorajou os filhos a seguirem, cada um, o seu caminho, mas também um refém de convenções morais. Foi preso, no mesmo cárcere de Amir, por ter assassinado a mulher, suspeita de adultério: ambos foram libertados quando o xá Mohammed Reza partiu e Khomeini chegou, para estilhaçar os seus sonhos.
Dowlatabadi mostra, através do coronel, “como a revolução islâmica devorou os seus filhos”, sublinha Patterdale. O seu livro é como “uma autópsia da identidade nacional iraniana” em que o médico legista “não poupa ninguém”, nem o que é sacrossanto.
Para Orly Noy, o mérito do autor é o de “denunciar os crimes de uma ideologia, evitando uma crítica ocidentalizada – ele não diz ‘que vergonha o que fizemos, devíamos voltar ao tempo do Xá; pelo contrário, acusa os que traíram a paixão e o entusiasmo que se seguiu à queda de um ditador.”
Uma narrativa não linear – “sendo um processo de exame da alma, é preciso ir para a frente e para trás, não é possível interromper e retomar a leitura depois de beber um café”, frisa Orly Noy –, foi depreciada, por alguns, como confusa, embora outros a elogiassem como “romance ao estilo de Dostóievski”.
Para a tradutora da versão hebraica, Dowlatabadi “dá uma grande lição de humanidade e pode ser um alerta, não apenas para os iranianos mas também para os israelitas.”m Teerão,
“Se seguimos uma ideologia, como o Sionismo, e a tratamos como uma causa justa, precisamos de ter coragem de parar e olhar para trás, de modo a que vejamos se o caminho percorrido corresponde ao objectivo inicial”, afirma Orly Noy, que se tem distinguido, em Israel, como activista de esquerda.
“É importante que nos examinemos a nós próprios e possamos reflectir sobre se as nossas acções não prejudicaram ou prejudicam outros. Não é saudável convencermo-nos de que somos os donos da verdade absoluta.”

Azar Nafisi, a autora de Ler Lolita em Teerão, observa que nem o actual regime escapou ao “síndroma napoleónico”, já que “uma das anedotas mais populares que circulavam no Irão, após o fim de 2500 anos de monarquia, era a de que quem espreitasse por baixo das barbas do Ayatollah Khomeini encontraria a frase Made in England
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Em relação a Mahmoud Dowlatabadi, que tem 73 anos e continua a viver em Teerão, Orly Noy define-o como “um homem muito corajoso”.
Filho de camponeses de Dowlatabad (a terra natal dá o apelido a muitos iranianos), no Nordeste, as suas memórias de infância, refere o tradutor Patterdale, são as de “transportar sacos de melões em burros para os vender nos mercados das redondezas.
Aos 13 anos, deixou a sua aldeia e, depois de paragens em Mashhad e Sabzevar, rumou para a capital. Inscreveu-se numa escola e tentava assistir às aulas ao mesmo tempo que exercia tarefas diversas, como cabeleireiro, revisor de bilhetes de cinemas e vendedor de anúncios em jornais.
Foi sem-abrigo, dormindo nas ruas, mas devorava todos os livros a que podia deitar a mão – desde literatura clássica persa a traduções de romancistas e filósofos europeus.”
Deve a educação a si próprio. “Nunca concluiu estudos universitários, mas foi aceite numa academia de teatro onde escreveu o primeiro conto, O Abismo da Noite, que lançou a sua carreira literária”, refere Patterdale.
Embora O Coronel não tenha sido publicado em Farsi, outros livros contribuíram para a sua majestade. A mais importante, finalizada em 1984, tem dez volumes e 3000 páginas.
A história desenrola-se nos anos 1940, em Kelidar (que é também o título desta magnum opus), aldeia habitada por curdos, transferidos no século XVII pelo Xá Abbas I (que conquistou Ormuz aos portugueses em 1622), para guardarem a fronteira contra invasões dos Turcomanos.
Quando terminou Kelidar, o nacionalista Dowlatabadi sentia-se exausto (perdeu o pai enquanto estava numa prisão do Xá), mas os excessos da teocracia levaram-no a escrever O Coronel, “para não enlouquecer”.
Numa altura em que o Irão tenta negociar com a comunidade internacional uma solução para o seu programa nuclear que não o faça perder a face, e em vésperas de eleições presidenciais para substituir o messiânico Mahmoud Ahmadinejad, em Junho próximo, Orly Noy diz partilhar a opinião de Efraim Halevy, antigo chefe da Mossad (espionagem israelita).
Halevy manifestou-se contra uma guerra ao Irão que o impeça de ter uma bomba atómica, porque o regime “pode ser homicida mas não é suicida”.
A tradutora de Querido Tio Napoleão e O Coronel conclui: “Em Teerão, os líderes não governam de forma justa e humana, mas não são irracionais; só lhes interessa a sobrevivência do regime. Por que haveriam de atacar Israel? A ganhar, nada têm.”
“Não são doidos. Não sei o que temo mais: se Israel ter bombas nucleares ou o Irão ter bombas nucleares. Só espero que nenhum deles seja o primeiro a premir o botão.”

Orly Noy é uma activista de esquerda: “É importante que nos examinemos a nós próprios e possamos reflectir sobre se as nossas acções não prejudicaram ou prejudicam outros. Não é saudável convencermo-nos de que somos os donos da verdade absoluta”
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Este artigo foi publicado originalmente na revista LER, edição de Abril de 2013 | This article was originally published in the Portuguese literary magazine LER, April 2013 edition