Para Yityish Aynaw, era um “sonho inimaginável” estar com o Presidente dos EUA. Mais do que paz no mundo, ela quer o fim do racismo. “Titi” foi eleita a mulher mais bela do país numa altura em que judias etíopes – como ela – se queixam de ter sido forçadas a usar contraceptivos e imigrantes africanos ilegais são deportados. (Ler mais | Read more…)

Yityish Aynaw: Quando foi eleita, houve quem, no Facebook, a tivesse chamado de toffee queen, em vez de yoffee palavra hebraica para “beleza”. Alguém comentou também: “Que pena, a família não ter assistido ao concurso por não ter televisão”. Ela reagiu: “Digam que sou feia; dói menos”
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A 27 de Fevereiro, quando Yityish Aynaw foi coroada Miss Israel – a primeira mulher negra a vencer um concurso que se realiza, ininterruptamente, há 63 anos num país com 65 –, houve quem, no Facebook, a tivesse chamado de toffee queen, em vez de yoffee, palavra hebraica para “beleza”.
Alguém comentou também: “Que pena, a família não ter assistido ao concurso, por não ter televisão”. Ela reagiu: “Digam que sou feia; dói menos”.
Foi aos 12 anos que a órfã “Titi”, hoje com 21, fez a alyiah (emigração da diáspora judaica), da sua aldeia próximo de Gondar, no Noroeste da Etiópia, para o que lhe diziam ser “a terra do leite, do mel e moedas de ouro”.
Um ano após o seu nascimento, o pai morreu de doença. Uma década depois, devido a morte súbita, ficou sem mãe. Os avós maternos, de que tem “vaga memória”, já viviam em Israel desde 2000 e foram eles que a acolheram juntamente com o seu irmão, em 2003.
O primeiro lar de acolhimento foi Netanya, cidade costeira, a 30 km de Telavive, onde habitam muitos imigrantes da Etiópia e da antiga União Soviética, conta-me Yityish Aynaw, numa entrevista por e-mail.
Como não sabia falar hebraico e, porque todos os recém-chegados têm imediatamente de aprender a língua, ela foi enviada para uma escola religiosa em Haifa, cidade mista de judeus e árabes. É com uma alegoria baptismal que descreve a dificuldade de integração: “Mergulharam-me em águas profundas, mas é assim que melhor se aprende a nadar.”
Como aluna, “Titi” revelou-se excelente, a ponto de ter vencido uma competição nacional de cinema estudantil, com uma curta-metragem sobre uma jovem etíope em Israel que tudo fazia para se “distanciar das suas raízes” – crítica implícita a alguns dos colegas.
“Como imigrante faço tudo para me integrar na sociedade, mas não posso esquecer-me de onde vim”, sublinha. E foi por não querer obliterar o passado que Yityish Aynaw quebrou a tradição de outras que, antes de receberem o ceptro de Miss Israel, já haviam adoptado nomes judaicos.
A primeira, em 1950, Miriam Yaron, de origem alemã, chamava-se Giselle Freilich. A iemenita Ora Gamily, que ganhou em 1952, mudara o apelido para Vered.
“Jamais mudarei o meu nome – nunca!”, frisa Aynaw, que quer dizer “Olhar para o futuro”, em amárico, a língua oficial da Etiópia. “Nasci doente mas a minha mãe acreditava que eu iria sobreviver.”
Foi também por isso que, em 2012, quando terminou o serviço militar obrigatório, “Titi” comprou um bilhete para Adis-Abeba, para visitar e renovar a campa da mãe que estava ao abandono.
“Recusava-me a olhar para as fotografias dela e nunca falava nela, porque tinha decidido esquecer-me de tudo”, explica. “Talvez fosse uma forma de me proteger. Tinha de provar primeiro que poderia ter êxito.”

“Graças à minha vitória, os judeus etíopes estão nas primeiras páginas dos jornais mas como uma história positiva”, congratulou-se a Miss Israel 2013. “Farei tudo para mudar as opiniões das pessoas que apenas estão obcecadas com a cor da pele”
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A tropa foi também um período “complexo, cheio de interesse e desafios”, para Yityish Aynaw. “Estive no Exército como oficial e instrutora de soldados; sinto-me feliz e orgulhosa de ter cumprido a minha missão.” Aos 19 anos, “Titi” foi comandante da polícia militar, responsável pelo treino de 90 recrutas, judeus etíopes.
Ela ensinava a disparar armas, a detectar bombas e a patrulhar checkpoints. “Durante o curso, de três meses, eles nunca me viam sorrir”, orgulha-se. “Mas ensinei-os a serem pessoas melhores; quando, por temerem eventuais atentados suicidas, me perguntavam por que lhe exigia que fossem gentis com uma criança ou uma mulher grávidas palestinianas a atravessar um posto de controlo, eu respondia-lhes: ‘Porque suas famílias as esperam em casa.”
Após a desmobilização militar, “Titi” foi trabalhar como empregada de balcão numa loja de vestuário feminino. “Uma amiga sabia que eu aspirava a ser modelo e convenceu-me a concorrer a Miss Israel, porque é das melhores plataformas para chegarmos à passarela”, confessa. “Vencer [entre 19 candidatas] foi um momento que me encheu de orgulho e entusiasmo.”
A fama foi imediata. O seu rosto apareceu em todas as capas de revistas de moda e entretenimento, a começar pela La’Isha (equivalente israelita à Vogue e patrocinadora da competição) de onde rostos negros estavam ausentes. A nova beauty queen tem já garantido, também, um contrato publicitário com os joalheiros H. Stern.
À pergunta sobre a até que ponto pode, a partir de agora, contribuir para o fim da marginalização da sua comunidade, “Titi” responde diplomaticamente, de acordo com um dos seus projectos vida, que é inscrever-se numa universidade para se licenciar em Relações Internacionais.
“Graças à minha vitória, os judeus etíopes estão nas primeiras páginas dos jornais mas como uma história positiva. Farei tudo para mudar as opiniões das pessoas que apenas estão obcecadas com a cor da pele.”

O que interessa a Yityish Aynaw é “o dia-a-dia em que cada sonho é conquistado”
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Em 18 de Janeiro de 2012, cerca de 5000 judeus etíopes (contas do diário israelita Ha’aretz) manifestaram-se em Jerusalém, em frente ao Parlamento, depois de uma marcha pacífica pelas ruas da cidade, protestando contra o que designaram por “políticas racistas”.
Muitos erguiam cartazes onde se lia, por exemplo, “Pretos e brancos: Somos todos iguais” ou “O nosso sangue só é bom para as guerras.” Uma semana antes, já centenas de outros se haviam mobilizado, em Kiryat Malakhi, para obrigar uma comissão ministerial a recuar na recusa de vender apartamentos a israelitas de origem etíope.
Naquela altura, dois deputados do Knesset apresentaram (em vão) uma proposta de lei para “proibir a discriminação no que diz respeito ao aluguer e venda de casas, com base na nacionalidade, cor da pele, orientação sexual, deficiência ou associação política.”
Em Dezembro do ano passado, dois meses antes de “Titi” ser aclamada Miss Israel, a televisão israelita mostrou imagens recolhidas durante uma investigação de Gal Gabbay, motivada pela estatística de que, na última década, a taxa de natalidade dos israelitas etíopes descera cerca de 20%.
Em “campos de trânsito na Etiópia”, Gabbay recolheu testemunhos de mulheres “obrigadas a tomar contraceptivos” por equipas enviadas pelo Ministério da Saúde de Israel, sob o argumento de que “assim evitavam o sofrimento na hora do parto”.
De início, o Ministério negou as acusações feitas na reportagem de Gabbay, mas recentemente comunicou ter enviado uma carta a todos os ginecologistas sob a sua tutela “para não renovarem a prescrição de Depo-Provera às mulheres de origem etíope se, por qualquer motivo, não forem entendidos os efeitos do tratamento.”
Sem estrogénio e injectável, o Depo-Provera é considerado “o contraceptivo mais eficaz”, não devendo ser receitado a jovens que pretendam engravidar.
Em 1996, os media israelitas já haviam denunciado que a associação de serviços médicos de urgência Magen David Adom (MDA) tinha ordenado a destruição de todo o sangue doado por judeus etíopes, na assunção de que estaria contaminado com HIV, o vírus da sida.

Primeira Miss Israel, em 1950: Miriam Yaron (ao centro, ladeada pelas suas damas de honor). De origem alemã, chamava-se antes Giselle Freilich
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Se os israelitas etíopes se queixam de discriminação, em situação mais dramática estão os imigrantes ilegais provenientes da Eritreia, do Sudão e do (recém-criado) Sudão do Sul.
Nos últimos oito anos, mais de 60 mil destes africanos infiltraram-se em Israel através do deserto do Sinai, no Egipto (onde são, frequentemente, vítimas de abusos por parte de tribos e contrabandistas, depois de uma travessia por outros territórios hostis), fugindo de regimes repressivos nos seus países.
As autoridades israelitas foram compassivas com os primeiros a chegar, mas à medida que os bairros mais degradados se enchiam de imigrantes, e se agravavam os “choques culturais”, aqueles passaram a ser vistos como “ameaça à maioria judaica”.
Foi construída uma vedação na fronteira para travar o influxo do que um ministro do anterior Governo classificou de “cancro da sociedade”. As deportações forçadas afectam sobretudo milhares de sudaneses – os eritreus geralmente condenados a prisão.
Yityish Aynaw não ignora esta realidade, mas tenta relativizar: “O racismo existe por todo o mundo”, diz-nos. “Infelizmente, também em Israel.”
Ela mostra-se mais inclinada a valorizar os bons exemplos como os de Belaynesh Zevadia que, em 2012, foi a primeira judia etíope nomeada embaixadora (em Adis-Abeba) ou o de Pnina Tamano-Shata, que foi eleita, em Janeiro deste ano, a primeira deputada de origem etíope.
Não são estas, porém, os grandes ídolos de “Titi”, mas sim Barack Obama, o reverendo Martin Luther King Jr, activista dos direitos dos negros, e Tyra Banks, que ela gostaria de imitar, tendo também um talk-show que lhe elevasse a celebridade.
O que a deixou em êxtase, igual ou superior à vitória no concurso de Miss, foi o convite do Presidente israelita, Shimon Peres, para estar hoje no banquete de Estado que ele oferece ao homólogo norte-americano. É um sonho inimaginável”, realça.
“É um momento de júbilo que jamais esquecerei. Para mim, o Presidente dos Estados Unidos é uma fonte de inspiração na minha caminhada e na minha vida.”

A coroação de Yityish Aynaw tem simbolismo político. Notou a revista Tablet: em 1952, no auge de tensões entre judeus de origem europeia (askhenazim) e os provenientes do Médio Oriente (mizrahim), foi a iemenita Ora Vered que ficou com a coroa de Miss Israel; em 1993, no pico da imigração de judeus da extinta URSS, a vencedora foi a ucraniana Jana Khodriker, natural de Kiev; e em 1999, quando havia uma maior esperança de paz, a escolhida foi Rana Raslan (na foto), a primeira palestiniana de cidadania israelita
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À pergunta sobre o que recomendaria a Obama para ele resolver o conflito com os palestinianos, já que ela foi comandante militar, “Titi” responde: “Não tenho conselhos para lhe dar em matéria de paz. Tenho a certeza de que ele faz tudo para que o nosso mundo seja melhor.”
Uma coisa é certa, a coroação de Yityish Aynaw tem um enorme simbolismo político que não passou despercebido a analistas regionais.
Notou a revista de assuntos judaicos Tablet : em 1952, no auge de tensões entre judeus de origem europeia (askhenazim) e os provenientes do Médio Oriente (Mizrahim), foi a iemenita Ora Vered que ficou com a coroa de Miss Israel.
Em 1993, no pico da imigração de judeus da extinta URSS, a vencedora foi a ucraniana Jana Khodriker, natural de Kiev.
Em 1999, quando havia uma maior esperança de paz, a escolhida foi Rana Raslan, a primeira palestiniana de cidadania israelita.
Outros analistas destacam também o simbolismo do timing e itinerário de Obama. O primeiro negro a entrar na Casa Branca, em Washington, chega a Jerusalém em vésperas do Nowruz, o Ano Novo Persa (começa dia 21 e ele já fez um discurso aos iranianos).

Yityish Aynaw, 21 anos, com amigos depois de ter sido coroada Miss Israel 2013
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Este equinócio da Primavera coincide com negociações com o Irão sobre o seu programa nuclear. Estar 48 horas em Israel, nesta festividade, pode ser lido como uma maneira de dizer ao primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, que a guerra contra Teerão é a última das “opções sobre a mesa”.
E se não leva no bolso nenhum plano que obrigue Israel e os palestinianos a concluírem um acordo que salve a solução de dois Estados – moribunda devido à expansão dos colonatos nos territórios ocupados na guerra de 1967 -, Barack Obama deixa claro que a relação com “Bibi” está longe da perfeição.
Mesmo que Israel se mantenha o maior beneficiário de ajuda externa dos EUA em tempo de difícil equilíbrio das contas domésticas.
No programa da visita que o jornal The New York Times deu a conhecer, ficou a saber-se que Obama não vai ao Muro Ocidental ou das Lamentações, lugar mais sagrado do Judaísmo, nem à Mesquita de al-Aqsa, venerada pelos muçulmanos.
Mas vai à Igreja da Natividade em Belém, berço do Cristianismo, na cidade da Cisjordânia dividida pelo “muro de separação” que Israel construiu para prevenir atentados mas que gera controvérsia por ter sido erguido em terras confiscadas aos palestinianos, inviabilizando um futuro Estado contíguo.
Obama também não irá discursar no Knesset e sim no Centro Internacional de Convenções, em Jerusalém. E a bateria de mísseis móveis de defesa que vai inspecionar não é a que protege Israel dos “rockets inimigos” situada num monte sobranceiro a Telavive – como “Bibi” pretendia.
Quanto a Miss Israel, o que lhe interessa é “o dia-a-dia em que cada sonho é conquistado”. O próximo desafio será “participar e vencer o concurso Miss Universo” [triunfou a venezuelana Gabriela Isler].
Por email, a sua agente, Bat Cohen, diz-nos que “essa é uma questão que ainda está a ser analisada porque Israel e a Indonésia [onde mais de 87% da população é muçulmana] não tem relações diplomáticas”.

O concurso de Miss Israel realizou o sonho de Yityish Aynaw de ser modelo profissional
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Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO, em 21 de Março de 2013 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on March 21, 2013