Um dos mais influentes políticos em Bagdad, o vice-presidente sunita foi condenado à morte e refugiou-se na Turquia. Rodeado de numerosos guarda-costas, deu-me uma entrevista e deixou um aviso ao primeiro-ministro xiita: “Se Maliki não cair, o país divide-se.” (Ler mais | Read more…)

Tariq Hashimi fugiu para a Turquia depois de o regime de Nouri al-Maliki o ter condenado a várias penas capitais, sob suspeita de “organizar esquadrões da morte e envolvimento em mais de 150 atentados bombistas, assassínios e outros ataques entre 2005 e 2011″
© Ali al-Saadi | AP
O sol clareia os minaretes em Sultanahmet, centro histórico de Istambul, quando a voz do iraquiano Fahad K. interrompe o recital do muezzin apelando os fiéis à oração.
“Já sei que posso confiar em si, porque vem da parte do nosso amigo no Qatar”, diz-nos o porta-voz e chefe de segurança de Tariq al-Hashimi. “O vice-presidente estará disponível durante a tarde. Já a volto a contactar, com detalhes mais precisos.”
Algumas horas depois, Fahad liga-me para perguntar se a entrevista que pedi pode ser no lobby de um hotel, nas proximidades da radiosa Mesquita Azul. Digo que sim, e ele requer atenção para uma mensagem que irá enviar. É ao anoitecer que recebo um e-mail, indicando que o encontro teria de ser adiado para o dia seguinte.
De manhã, chega uma SMS com a morada aonde me deveria dirigir, nos arredores da antiga Constantinopla. Com instruções em turco e a sensação – real ou imaginária – de que os meus passos estão a ser seguidos, rapidamente aparece um táxi cujo motorista garante que nos leva ao endereço “sem demora”.
Percorrido um longo labirinto de estradas e avenidas, ruas e vielas, cruzamentos e rotundas – mais longe a cidade dos bazares e ferries deslizantes no Bósforo e mais perto os subúrbios de armazéns e autocarros sobrelotados que avariam a meio da viagem –, o taxista vai atribuindo a culpa pelo inesperado atraso ao tráfego intenso.
A certa altura, porém, assume-se “estranhamente perdido”, e vai inquirindo transeuntes sobre o local que antes assegurara conhecer. De repente, estaciona junto de um imóvel, numa área isolada, exclamando: “É aqui!”
Transposto um portal com alarme e vigilante, sou aconselhada a esperar num recanto com poltronas para visitantes, apesar de os recepcionistas dizerem desconhecer quem procuramos.
Vários homens entram e saem, mas nenhum se aproxima de mim. Alguns, faces crispadas e óculos escuros, rodopiam as cabeças em várias direcções, os meneios disfarçados por (supostas) conversas ao telemóvel.

“No dia em que o último soldado americano abandonou o Iraque, a 9 de Setembro de 2012, um painel de nove juízes, sob controlo do governo, deliberou que eu fosse enforcado – a primeira de cinco condenações”, queixa-se Tariq al-Hashimi
Amaldiçoando o condutor do táxi por “vigarice” e prenúncio de fracasso da reportagem, eis que Fahad telefona, perguntando se não o vi chegar, descrevendo como estava vestido.
Informo-o do meu paradeiro, e ele replica que estou “equivocada”. Tenho de seguir até um edifício municipal semelhante, mas noutro local, não longínquo. Um segundo taxista aparece, como premonição e, agora sim, a poucos metros de distância, estou no sítio certo.
O veículo entra num pátio onde se vêem carros com vidros fumados, no interior silhuetas impossíveis de identificar; homens com auriculares e walkie-talkies , em passo acelerado. Serão pedreiros, outros que vislumbro nos telhados em redor ou atiradores disfarçados?
Um novo pórtico de detecção de ameaças dá-me livre-trânsito. Nos sofás do hall de entrada, vários homens olham-me como se me radiografassem.
Um outro, vindo de algures, acompanha-me até ao cimo de umas escadas, onde Fahad aguarda. Peço desculpa pelas peripécias; ele desvaloriza o sucedido e eu, em paranóia, imagino-o cúmplice de um enredo.
Subo por um elevador e chego a um longo corredor, com mais sofás e mais homens, olhos incisivos que controlam o ambiente exterior e parecem examinar o meu interior.
Alguns passos adiante, estou numa sala mais pequena, com outros três homens, sentados a uma mesa. Sou convidada a deixar o casaco num bengaleiro – a pregadeira na gola era pontiaguda.
Fahad, cabelo que parece pintado de negro e dentes de um branco imaculado, abre ainda mais o seu sorriso e a porta de um gabinete amplo.
Os estores das janelas estão fechados, nas paredes não há quadros nem cartazes, na secretária está apenas um telefone e alguns dossiers – sinal de que se trata de uma paragem provisória para visitantes temporários.
De um cadeirão de pele castanha, levanta-se Tariq al-Hashimi, compondo o fato cinzento e o cabelo grisalho, a afabilidade reflectida nos gestos de boas-vindas e num rosto alegre.
Só quando a conversa de quase duas horas terminar e o vice-presidente fugitivo desde Dezembro de 2011 for à casa de banho acompanhado de três guarda-costas, é que entendo como a vida deste homem tem cenas de morte, parecidas com (ou piores do que) um filme de James Bond.

“Nouri al-Maliki é o problema e não a solução! Se ele não se demitir ou for afastado, o Iraque só tem um caminho, que é transformar-se numa federação de sunitas, xiitas e curdos”, diz Hashimi
© AFP | albawaba.com
Nascido em 1942, em Bagdad, Tariq al-Hashimi formou-se na Academia Militar da capital iraquiana, tendo servido na Brigada de Blindados do Exército, como tenente. Aos 33 anos, desertou das fileiras militares e, também, do Partido Baas (que detinha o monopólio do poder), para se juntar à oposição em Londres.
No exílio, com uma licenciatura e mestrado em Economia, fez-se também “um empresário de sucesso”, segundo diz. “Estava no Kuwait, como gestor da United Arab Shipping Company, quando decidi regressar ao meu país, em 2003, após a invasão”, liderada pelos Estados Unidos, para derrubar o ditador Saddam Hussein.
Secretário-geral do Partido islâmico Iraquiano desde 2004 até 2009, Hashimi foi um dos fundadores do maior bloco no Parlamento (eleito em 2010), o Movimento Nacional Iraquiano ou Lista al-Iraqiyya (91 deputados, sunitas e xiitas, com um programa secular).
Em 2006, depois de, no ano anterior, ter ajudado a redigir a Constituição actual, foi escolhido para ser um dos dois vice-presidentes, para assegurar um equilíbrio confessional.
No Iraque pós-Saddam, Hashimi foi viver para a “Zona Verde”, um complexo fortificado que abriga responsáveis políticos, chefias militares e embaixadores estrangeiras. “Eu era vizinho do primeiro-ministro, Nouri al-Maliki”, conta.
“Logo na primeira semana de poder, ele afastou cinco responsáveis do Ministério da Defesa – quatro sunitas e um xiita, nacionalistas e patriotas. É ele quem acumula agora as pastas da Defesa e do Interior. O relacionamento mútuo foi-se deteriorando, à medida que ele perseguia os que o criticavam.”
“Tínhamos uma reunião semanal do Governo, e eu não me calava”, continua Hashimi, os braços e as mãos num movimento constante, ritmando cada palavra que profere. “Maliki passou a considerar-me o seu principal inimigo político. Tudo piorou quando me apercebi da corrupção sem precedentes na história do Iraque.”
“A maioria da população não tem água, luz, educação, médicos e medicamentos, e muito menos segurança. Para restaurar os serviços de electricidade calculou-se que seriam necessários 7000 milhões de dólares, mas foram gastos 23.000 milhões – e só há energia quatro horas por dia. Para onde foi o dinheiro das exportações de petróleo quando os preços chegaram a mais de 100 dólares o barril?”

Quando o “Triângulo Sunita” iniciou uma sublevação contra Maliki, uma das figuras xiitas que reprovaram “a política sectária” de Maliki foi Muqtada al-Sadr, líder da milícia Exército de Mahdi. Chamou-lhe “corrupto” e “tirano”
© New York Post
“Ao contrário de Maliki, que quer um governo teocrático semelhante ao do Irão, país do qual é uma marioneta e que interfere, descaradamente, nos assuntos internos do Iraque, eu defendo um estado de Direito, com respeito pela Justiça e pelos direitos humanos – e isso inclui os direitos das mulheres”, sublinha Hashimi.
“Desde o princípio, que Maliki está interessado em exacerbar as tensões sectárias. Ao contrário dele, eu colaborava com sunitas, xiitas, turcomanos e cristãos. A coexistência faz parte do Iraque, berço da civilização.”
Tariq al-Hashimi está refugiado na Turquia, que prometeu não o extraditar, desde Dezembro de 2011, quando conseguiu fugir de Bagdad pelo Curdistão (Norte) até ao Qatar.
Também esteve na Arábia Saudita, mas é em Istambul que agora tem uma “casa segura”, depois de a Interpol ter emitido, a pedido de Maliki, um mandado de captura (mais concretamente um “alerta vermelho” sem carácter vinculativo) contra o vice-presidente iraquiano.
“No dia em que o último soldado americano abandonou o Iraque, a 9 de Setembro de 2012, um painel de nove juízes, sob controlo do governo, deliberou que eu fosse enforcado – a primeira de cinco condenações. A última foi em Dezembro do mesmo ano”, recorda Hashimi. “Maliki não teria agido desta forma sem a bênção dos EUA.”
Tal como o seu genro, Ahmed Qohtan, o vice-presidente foi acusado de “formar esquadrões da morte responsáveis por 150 ataques terroristas”.
Ele repete que “todos os veredictos são ilegais” e, olhando para Fahad K, o seu chefe de segurança, declara: “Eu tinha um orçamento de um milhão de dólares para gastar em assistência social, e acusam-me de ter pago 500 dólares para matar um polícia de trânsito e uma advogada?”
“Um dos meus guarda-costas confessou que lhe dei ordens para os assassínios e para fazer explodir carros armadilhados. Alguém quer investigar como é que a família desse guarda-costas foi pressionada para ele fazer aquela confissão?”
[Dias depois da entrevista, Fahad envia-me um relatório do International Committee in Search of Justice (ISI), organização não governamental que clama ter “o apoio de mais de 4000 parlamentares em todo o mundo”, o qual cita estatísticas da ONU, para denunciar que as execuções em 2012 foram “o dobro face a 2011 e seis vezes mais do que em 2010”.
Refere também “casos de morte sob tortura e violações, confirmados por grupos independentes de direitos humanos”.
Ainda mais extraordinários são os números apresentados por um adjunto de Maliki, ao admitir que há “cerca de 6500 presos condenados por terrorismo; 6000 estiveram detidos sob a mesma suspeita e 15.800 receberam sentenças por outros crimes.”]

Em 2012, na sequência das “primaveras árabes” na Tunísia e no Egipto, milhares de iraquianos sunitas vieram para as ruas (aqui na cidade de Falluja) protestar contra o “governo sectário”, de maioria xiita, de Nouri al-Maliki
© USA Today
Os sunitas, predominantemente árabes (alguns são curdos, que se identificam mais com esta comunidade, semi-autónoma, no Norte), constituem cerca de 20% da população do Iraque.
Durante o regime de Saddam representavam a elite enquanto os xiitas, a maioria da população, eram os underdog. A situação inverteu-se com a chegada das tropas americanas e com a tomada de posse de Maliki, aliado de Washington – mas não figura consensual entre os xiitas. E Hashimi sabe disso.
Quando o chamado “Triângulo Sunita”, no centro do país, iniciou uma sublevação contra Maliki, duas personalidades de peso entre os xiitas, Muqtada al-Sadr, líder da milícia Exército de Mahdi, e o venerado ayatollah Ali Sistani (crítico do regime em Teerão e que se recusa a receber o primeiro-ministro) reprovaram a “política sectária” que tem sido seguida pelo chefe do Governo.
Sadr, que liderou uma rebelião contra as tropas americanas, é considerado, por Hashimi, “uma alternativa” a Maliki. Ainda recentemente, o chefe rebelde agora convertido em “pragmático” ameaçou o seu rival com uma revolta semelhante à dos sunitas nas áreas xiitas.
E só o fez depois de o xeque Abdul-Malik al-Saadi, líder espiritual sunita, ter apelado aos que participam nas manifestações para não exibirem bandeiras do Baas e fotos de Saddam. O objectivo é “preservar a unidade do país”.
Hashimi é inequívoco: “Maliki é o problema e não a solução! Se ele não se demitir ou for afastado, o Iraque só tem um caminho, que é transformar-se numa federação de sunitas, xiitas e curdos. Serão três regiões com competências próprias, como já se verifica no Norte – cada uma com o seu presidente, parlamento e forças de segurança.”
[Forçado a abandonar a chefia do Governo em 2014, Maliki foi substituído por Haider Jawad Kadhim Al-Abadi, mas uma grande parte do país ficou sob outra ameaça: o Daesh ou ‘estado islâmico‘, que integra alguns responsáveis políticos e antigos comandantes das extintas forças militares de Saddam Hussein e da al-Qaeda.]
Num artigo publicado, em Janeiro, na revista Foreign Affairs, e intitulado Iraqi Sunnistan? Why separatism could rip the country apart – again, os autores, Emma Sky e Harith al-Qarawee, reconhecem que “não é fácil” ser sunita no Iraque actual”.
Lembram que foi em Dezembro de 2012, quando Maliki ordenou a prisão de vários guarda-costas do ministro das Finanças, Rafi al-Issawi, “um dos líderes sunitas mais respeitados”, que “dezenas de milhares” tomaram as ruas de Anbar, Mosul e outras cidades, exigindo “o fim das perseguições” de que se consideram vítimas.
Issawi queixa-se de ser um alvo a abater, à semelhança de Hashimi, “por ordem directa de Maliki”, que os acusa de terrorismo, de modo a consolidar um domínio hegemónico dos xiitas pró-iranianos.
A operação visando Issawi coincidiu com a hospitalização, devido a um acidente cardiovascular, do Presidente Jalal Talabani, um curdo que tem sido muito crítico de Maliki.
Foi Talabani e o presidente do Curdistão, Massoud Barzani (aliado da Turquia), que permitiram a Hashimi fugir do país através do Norte.
Ao observarem as manifestações, já designadas por “primavera sunita”, Emma Sky e Harith al-Qarawee concluem que os adversários de Maliki poderão unir-se contra ele nas eleições de 2014, embora “a viragem sectária” favoreça os sunitas mais radicais que querem fracturar o país.
Em Istambul, no final desta entrevista, depois de elogiar os papéis da Turquia e do Qatar no novo mapa político regional na sequência das “revoluções da ‘primavera ‘arabe’, Tariq al-Hashimi afirma: “Não diria que a era dos xiitas no Iraque esteja a terminar e a dos sunitas a começar, mas algo está, definitivamente, a mudar.”
[Em 2014, o Daesh proclamou um “califado” sunita no Iraque e na Síria, semeando o terror nos territórios sob seu controlo.
Em 2016, Tariq al-Hashimi foi finalmente retirado da “red notice list” da Interpol, de onde o seu nome constava na sequência das múltiplas penas de morte a que tinham sido condenado durante o governo de Maliki. O alerta vermelho dava a todos os 190 Estados membros da Interpol o direito de o prender.]

Tariq Hashimi era um empresário no exílio e regressou a Bagdad, em 2003, após a invasão liderada pelos EUA para derrubar Saddam Hussein
© The New York Times
Este artigo, agora revisto e actualizado, foi originalmente publicado no jornal PÚBLICO, em 18 de Fevereiro de 2013 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on February 18, 2013