A judia que um amigo árabe tornou na “million dollar baby” de Israel

Moncef Bennour prometeu e ofereceu a Adi Rotem o cinto de campeã mundial de Muay Thai. A guerra em Gaza quase separou treinador e atleta, mas a arte marcial Muay Thai – com muitos adeptos em Portugal – fez deles amigos inseparáveis. (Ler mais | Read more…)

Adi Rotem 1

A israelita Adi Rotem ganhou um título mundial de Muay Thai, graças a um tunisino muçulmano que a “protege” e incentiva à luta chamando-lhe “carinhosamente” fucking Jew
© shirany.co.il

À espera de um exercício intenso com Dina Pedro, das raras mulheres treinadoras de Muay Thai (kickboxing tailandês), em Lisboa, André Almeida estica as pernas franzinas e enrola vagarosamente, do polegar ao pulso, as ligaduras que o irão proteger debaixo de luvas volumosas.

Aluno do 9ºo ano da Escola Nuno Álvares Pereira, na Casa Pia, o jovem de 14 anos está ali pelas mesmas razões que levaram Adi Rotem, a trocar, aos 5, as aulas de ballet pelas de judo: “Descarregar a raiva”.

Hoje, a atleta israelita é notícia porque ganhou um título mundial, na categoria de 52 quilos, graças a um árabe e muçulmano, que a “protege” chamando-lhe fucking Jew

Deixamos para o final o atrevido André e adiantemos a história de Adi Rotem, que ela nos conta numa entrevista por Skype, a partir de Telavive, onde vive, abriu um ginásio e se prepara para futuros combates.

“Sempre fui uma menina possante, com temperamento forte”, diz a jovem de tranças louras e corpo tatuado. “Eu adorava subir às árvores, tipo maria-rapaz, mas a minha mãe queria que eu fosse bailarina. Bastaram três meses para a convencer a deixar-me trocar o tutu pelo judoji [uniforme de judoca].”

“Nunca avaliei o meu nível de testosterona, mas deve ser elevado; acho que tenho de mais, para uma rapariga, mas garanto que não sou lésbica”, ironiza Adi. “Em miúda gostava de brincar com a Barbie mas, ao contrário de outras crianças, eu não a penteava; cortava-lhe o cabelo. Também adorava ginástica, basquetebol e jogar futebol. Todos tinham medo de mim.”

As artes marciais também encantaram Adi Rotem, nascida em Herzliya, no Centro de Israel, há 33 anos. Rapidamente conquistou um cinturão negro, tendo sido durante sete anos consecutivos campeã, de peso leve, em judo, jiu-jitsu e karatê.

Dos 18 aos 20 anos, durante o serviço militar obrigatório, foi instrutora de Krav Mag, curso que inclui boxe, Muay Thai, jiu-jitsu, pugilismo e luta corpo a corpo. A combinação destas técnicas foi desenvolvida em meados dos anos 1930, antes de emigrar para Israel, por um judeu húngaro, Imi Lichtenfeld, para defender o seu bairro judaico contra grupos fascistas.

Com “demasiada energia para estar num só lugar”, Adi saltitou de escola em escola, incapaz de se adaptar. Finalizado o equivalente ao 12º ano, não se inscreveu na universidade e, após a tropa, mudou-se para a Tailândia, onde o Muay Thai é desporto-rei.

“Foi em Banguecoque [a capital] que me deixei arrebatar e alimentei o sonho de ser campeã mundial. Neste desporto usamos tudo, dos punhos aos pés, dos cotovelos às canelas, e vale tudo menos tocar nos órgãos genitais dos adversários. É um contacto total, que exige uma grande concentração e disciplina – é perfeito para mim!”

Conhecida como “a arte das oito armas”, o Muay Thai começou por ser usado como defesa pessoal há cerca de 2000 anos. Ganhou popularidade no Extremo Oriente no século XVI e fama internacional a partir do século XX. Graças a esta projecção, um outro país – a Holanda – tem vindo a sobressair e foi para aqui que Adi seguiu, no Verão de 2006, ingressando no Vos Gym, em Amesterdão.

“Vivi um período complicado”, confessa. “Sem apoios oficiais ou patrocínios, gastei as minhas poupanças. Dormi em hotéis reles, partilhando quartos com mais de cinco pessoas, que passavam as noites drogados, enquanto eu não podia fumar nem beber, e tinha de acordar de madrugada, para treino duros, e de seguir uma dieta alimentar saudável e rigorosa.”

Adi and the coach (left side)

Adi Rotem celebra a vitória com a sua equipa – o treinador Moncef Benour está à sua esquerda: ele prometeu-lhe a vitória quando ela chegou a um ginásio em Amesterdão – e cumpriu
© royzweers.nl

No Vos Gym, Adi encontrou Moncef Bennour, mais conhecido por “Ben”, um imigrante árabe muçulmano, de 37 anos, nascido na Tunísia. Nos primeiros meses, o relacionamento entre atleta e treinador foi tenso.

“Ele via-me como representante da ocupação israelita e muitas vezes chamava-me fucking Jew. Mas não era racista, talvez fosse a sua maneira de me incentivar a ser mais aguerrida. Ele é negro e também usa a expressão fucking nigger. Sempre me respeitou, porque via a minha dedicação; nunca faltei a um treino.”

Em 2008-2009, Adi regressou a Israel quando decorria a Operação Chumbo Endurecido contra o Hamas. “Ben” telefonava-lhe quase todas as noites. “Tinha uma maneira especial de querer saber se eu estava bem”, diverte-se Adi.

“Perguntava-me: ‘Andas a matar crianças na Faixa de Gaza?’ e quando regressei a Amsterdão ele tinha o ginásio decorado com os rostos de miúdos palestinianos mortos pelo Exército israelita.”

“Evitava falar comigo, até que um dia, chamei-o e disse-lhe: ‘Tens de compreender as circunstâncias em que vivemos. Tu segues o islão e não devias beber álcool, mas consomes; eu sou judia e devia comer kosher mas não o faço. Somo o que somos. A partir, daí, ele é como o meu protector; somos bons amigos.”

Apesar das provocações de “Ben”, Adi não esquece e está grata por ele ter concretizado o seu sonho. Memorizou as datas: “A 18 de Setembro de 2012, depois do Rosh Hashanah [Ano Novo judaico], ele foi buscar-me ao aeroporto de Amsterdão e disse: ‘Não sairás daqui sem o cinto [de campeã]. Durante três semanas, treinámos dia e noite. A 6 de Outubro, foi o combate. Eu venci e, a 7 de Outubro, ‘Ben’ levou-me ao aeroporto, com o título que me prometera.”

Num artigo para a revista do Ha’aretz, a que deu o título de Million shekel baby, numa alusão à moeda nacional israelita e ao filme de Clint Eastwood com Hillary Swank, o jornalista Avshalom Halutz observou como Adi “ficou de pé, incapaz de parar de chorar; as lágrimas diluídas no suor e sangue que escorriam pela sua face, e no champanhe que os admiradores aspergiam em todas as direcções”. Ali estava uma campeã mas, ao contrário do que acontece noutros desportos, não havia nenhum ministro de Israel para a saudar.

Adi Rotem 1-a)

Adi Rotem quer “continuar os combates, pelo menos, até aos 35 anos”, idade em que teme ficar “física e emocionalmente menos forte”. Quer ter uma família (já tem um filho), mas admite que as relações afectivas são muito instáveis no mundo do Muay Thai
© Ilya Melnikov | Ha’aretz

Adi não nos especificou o valor do prémio. Referiu apenas que tem vindo a gastá-lo a pagar a renda do seu apartamento em Telavive, na comida e na preparação física. O seu plano de futuro é continuar os combates, “pelo menos até aos 35 anos”, idade em que receia ficar “física e emocionalmente menos forte”.

Quer ter uma família, mas admite que as relações afectivas são muitos instáveis no mundo do Muay Thay. [Em 2016, com 23 semanas de gravidez, continuou a praticar, revelando boa forma em vídeos que foi partilhando no YouTube e na sua página de Facebook.]

“Este é um ambiente ainda muito machista, mas eu não preciso de rapazes para me ajudarem. Sou capaz de fazer tudo. Como treinadora no meu ginásio, há tipos que desistem quando percebem que será uma mulher a ensiná-los.”

Dina Pedro, que conheceu Adi Rotem na Sérvia, em 2007, quando esta iniciava a sua carreira profissional, concorda que o Muay Thai continua “muito masculino”, ainda que nos seus 19 anos como atleta e dez como treinadora (de uma equipa mista), tenha vindo a dissipar preconceitos. Também ela se queixa da falta de apoios, apesar do seu reconhecimento fora do país.

A tetracampeã mundial que lidera a equipa “Dinamite” acaba de ser nomeada a primeira e única portuguesa membro do World Women WAKO Committe. WAKO é a sigla de World Association of Kickboxing Organisations, com sede na Itália.

Sobre a israelita, Dina elogia-lhe o “carácter de alguém que persegue e consegue o que quer”. Leonor Agostinho, que Adi derrotou em 2008 num campeonato da Europa em Guimarães (onde a israelita ganhou a medalha de prata), descreve-a como “uma guerreira”. Tatiana Correia, que conheceu Adi na Tailândia em 2009, venera-a como “uma verdadeira máquina física”.

Dina Pedro, que conheceu Adi Rotem na Sérvia, em 2007, quando esta iniciava a sua carreira profissional, concorda que o Muay Thai continua “muito masculino”, ainda que nos seus 19 anos como atleta e dez como treinadora (de uma equipa mista), tenha vindo a dissipar preconceitos. Também ela se queixa da falta de apoios, apesar do seu reconhecimento fora do país. A tetracampeã mundial que lidera a equipa “Dinamite” acaba de ser nomeada a primeira e única portuguesa membro do World Women WAKO Committe. WAKO é a sigla de World Association of Kickboxing Organisations, com sede na Itália. © NOVAGENTE.pt

Dina Pedro, que conheceu Adi Rotem na Sérvia, em 2007, quando esta iniciava a sua carreira profissional, concorda que o Muay Thai continua “muito masculino”, ainda que nos seus 19 anos como atleta e dez como treinadora (de uma equipa mista), tenha vindo a dissipar preconceitos. A  tetracampeã mundial e líder da equipa “Dinamite” é a primeira e única portuguesa membro do World Women WAKO Committe. WAKO é a sigla de World Association of Kickboxing Organisations, com sede na Itália
© NOVAGENTE.pt

Numa segunda-feira à noite, em duas sessões de treinos, Dina “Mite” Pedro vai marcando o ritmo com simpatia e disciplina. Numa plataforma de tapetes de borracha vermelhos, os cantos repletos de mochilas com o material necessário – luvas, caneleiras, calções, ligaduras, protector de dentes e de tórax (este para as mulheres), caneleiras, coquilhas (para eles e elas) – os atletas vão alternando de “estação” a cada ordem.

Uns exercitam, simultaneamente, o khow (joelhada), o sook (cotovelada) o teep (pontapé frontal), o mat hook (cruzado), o join (golpe em salto) ou o kaak (defesa com a canela), entre outras tácticas. Há quem se isole no dtoi lom (boxe sombra) e os que rodopiam entrelaçados num clinch (prendem o adversário em torno do pescoço ou do corpo, tentando arremessa-lo ao chão).

Finalizados os exercícios para os combates – os profissionais duram cinco rounds (os amadores, quatro) de três minutos com dois de intervalo para recuperar forças – , todos se despedem com beijos, apertos de mão ou abraços.

É a demonstração do “espírito de companheirismo” que Dina fomenta, e que levou Dan Balsemão, mais conhecido por “Pantera”, campeão da Europa em 2012, na categoria de 69,80 Kg, a deixar o ajam (mestre) que o orientou durante sete anos.

“O Muay Thai faz de nós pessoas menos violentas, mais confiantes e controladas”, frisa Balsemão, ruivo de olhos azuis e 28 anos, vigilante de uma empresa de segurança.

Um “maior autocontrolo” foi igualmente o que Maria Lobo, designer freelance de 25 anos, campeã de mundo em 57/60Kg, também em 2012, realçou como uma das qualidades do que considera a sua “maior paixão”, apesar de “ter os joelhos gastos, rasgado o nervo ciático, esmagado o disco da coluna e um pulso aberto”.

A dor física é, para Maria, menos importante do que a lição de vida que Dina ensina aos atletas: “É muito fácil ser campeão e não perder; difícil é perder e cair, mas levantarmo-nos e continuar”. Foi por causa de um crescendo de violência exterior, na escola, que os pais de Maria a inscreveram no Muay Thai.

História diferente é a de André Almeida, que praticou karatê mas não era suficiente para reprimir, também na escola, a sua violência interior.

“Desde que vim para o kickboxing nunca mais fui suspenso, por mau comportamento ou más notas”, orgulha-se, o rosto matreiro fitando o primo Miguel, 17 anos, a timidez contrastando com as cores garridas dos calções de poliéster, com brilhantes e franjas. “Antes, quando alguém me irritava eu passava-me; agora resolvo na boa todos os problemas”, diz André.

Adi Rotem
© wikimedia.org

Este artigo, agora actualizado, foi originalmente publicado no jornal PÚBLICO, em 21 de Janeiro de 2013 | This article, now updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on January 21, 2013

Leave a Reply

Fill in your details below or click an icon to log in:

WordPress.com Logo

You are commenting using your WordPress.com account. Log Out /  Change )

Facebook photo

You are commenting using your Facebook account. Log Out /  Change )

Connecting to %s

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.