Em França, um activista totalmente paralisado por uma doença congénita, exige que o Estado reconheça a “prostituição voluntária”. Porque o prazer sexual não pode ser negado a nenhum cidadão. (Ler mais | Read more….)

Marcel Nuss
© Martin Colombet | libe.fr
De Estrasburgo, Marcel Nuss aparece no écrã do computador, via Skype, com um sorriso luminoso. Deficiente profundo devido a uma amiotrofia espinhal, doença congénita e hereditária que o paralisou aos 10 meses, lançou um livro, Je veux faire l’amour (“Quero fazer amor”, Ed. Autrement), exigindo o direito a “assistência sexual”, para si e outros na sua condição. Com isso, lançou um debate em França sobre a legalização da “prostituição voluntária”.
“Vou contar-lhe apenas uma pequena parte da minha vida, porque este ano [seria apenas em 2015] vou publicar a história dos meus 57 anos, uma biografia com o título ainda provisório de A contra-corrente”, diz-nos Nuss, numa conversa que durou duas horas.
Não é fácil falar e fazer-se entender depois de, aos 19 anos, ter sido submetido a uma traqueotomia e ter de respirar por um ventilador.
O diálogo começa assim: “Vê-me no meu escritório, mas não pense que estou confinado a esta cama regulável que apenas me facilita a conversação; aqui, movimento-me numa cadeira de rodas, embora sempre com a ajuda dos meus quatro empregados. Só me deito em casa, para descansar bem, porque trabalho cerca de dez horas por dia.”

Jilly, namorada de Marcel Nuss, é uma figura fundamental na sua vida íntima e profissional. Casaram-se em 14 de Fevereiro (Dia de S. Valentim) em 2015. Ela passou a dirigir a Association pour la promotion de l’accompagnement sexuel (Appas), que ele fundou
© Marcel Nuss
E o que faz ele? “Escrevo num computador, graças a um microfone de reconhecimento vocal; dou palestras, percorro uma média de 25.000 quilómetros por ano por vários países, num carro adaptado e conduzido por com motorista. No próximo ano, estarei em Bolonha, na Itália.”
Quando o som perde qualidade e ele se queixa, uma mão feminina aproxima-se, silenciosamente, para ajustar o auricular. Mais tarde, enquanto ele explica o simbolismo da tatuagem no seu tronco que o lençol não tapa por completo, a mesma mão interrompe-o para lhe dar uma chávena de chá e um comprimido.
“Mandei tatuar um lobo, porque é um animal selvagem e solitário como eu, mas eu sou apenas no interior; por fora sou muito aberto”.
Nascido em Geispolsheim, nos arredores de Estrasburgo, em 1955, o pai carpinteiro e a mãe dona de casa, um irmão e duas irmãs com os quais frequentava a mesma escola, Nuss conta que foi hospitalizado, pela primeira vez, tinha um ano de idade. “Era um lugar sem condições para a minha condição”, critica.
O seu estado de saúde agravou-se aos 14, e os estudos foram interrompidos. “Tinha eu 19 anos, depois de uma paragem respiratória, fiquei oito dias em coma e obrigado a permanecer cinco anos no serviço de reanimação. Foi aqui, em 1978, que conheci Gabi, uma enfermeira com quem me casei”
“Seduzimo-nos mutuamente, e Gab deixou o hospital para se dedicar exclusivamente a mim – sempre sozinha”, reconhece Nuss, cabeça rapada e o rosto com barba emoldurado por uns óculos de massa.
“Juntos, aprendemos formas alternativas de fazer amor. Tivemos dois filhos: um rapaz, Mathieu, e uma rapariga, Elodie. Felizmente, em nenhum deles se manifesta a minha doença, mas são portadores dela. Se um dia quiserem dar-me netos, os seus parceiros terão de fazer testes para garantir que não correm riscos.”
“Em 2002, eu e Gab decidimos divorciar-nos. Ela estava esgotada, e a nossa relação também. Desde então, não mais nos contactámos. Voltei a ter uma companheira durante sete anos e outros romances, sobretudo com escort-girls [acompanhantes] “Não sou como os tetraplégicos.”.
“Posso não mexer nada, mas sinto tudo, incluindo desejo. Comigo, a mulher é a parte a activa fisicamente, e eu sou activo pela palavra. E ela não fica indiferente. Ninguém pode negar a um deficiente o direito a ter prazer sexual. Por isso, ajudei a fundar a Coordination Handicap et Autonomie, em 2002, e o Collectif Handicaps et Sexualités (CHS), em 2007.”

Marcel Nuss num encontro, em 2015, de uma associação francesa que forma aprendizes de acompanhantes sexuais
© Pascal Bastien | libe.fr
Após o divórcio, Nuss recebia um subsídio de 900 euros por mês, que ele gastava em três horas de assistência por dia.
“Um dia fui ao encontro de Ségolène Royal [na altura, ministra delegada para a Família e os Deficientes, no Governo socialista de Lionel Jospin] para que ela visse, com os seus próprios olhos, a situação de dependência total em que me encontrava.”
“Consegui mudar a lei, o que surpreendeu muita gente. Em Abril de 2002, comecei a receber quase 10 mil euros mensais em ajudas do Estado – e é com esse dinheiro e o que cobro nas minhas conferências, aproximadamente 9500 euros brutos por ano, que pago 300 a 400 euros por mês a cada um dos meus empregados, que têm famílias para sustentar.”
A batalha de Marcel Nuss tem deparado com críticas dos que vêem nos seus esforços uma campanha para legalizar a prostituição.
Ele esclarece: “É preciso reconhecer que existe uma prostituição especializada e voluntária – em França, uns 20% de prostitutos, homens e mulheres, são voluntários e merecem ser respeitados. É uma escolha deles e isso não me perturba, porque não os confundo com a prostituição mafiosa, que, essa sim, é um escândalo.”
Como reagem os filhos de Marcel a esta sua militância? “O meu filho, professor de 30 anos, e a minha filha, musicóloga de 28, nunca deixaram de me apoiar”, assegura Nuss.
“Eles entendem que, para mim, a doença não é uma fatalidade. É parte de mim, mas não é toda a minha vida. A minha deficiência tornou-me mais forte. Em geral, a deficiência destrói; a mim, ela construiu-me. Não me impede de viver, de trabalhar, de ser feliz.”
Além da autobiografia, Marcel continua, desde os 20 anos, a escrever poemas, “a maioria eróticos”, revela, citando como fontes de inspiração Arthur Rimbaud, Guillaume Apollinaire, Jacques Prévert e alguma poesia japonesa. “Não sou eu que escrevo, são os poemas que me escrevem. De manhã, por vezes, surgem bruscamente.” E envia, por e-mail, um desses poemas:
Voyage L’amour est un voyage entre les lignes d’un corps qui dessine le décor de désirs incarnés Somptueux envol sur des ailes de chair emportant son sanctuaire vers des nues illuminées Atteindre le firmament au sein de ses étoiles puis atterrir doucement sans atterrir vraiment L’amour est un voyage d’intenses voluptés aéroport de Lille Madame, il faut descendre maintenant.
“Estar preso a um corpo dá-nos um sentido mais apurado da liberdade”, disse à AFP Marcel Nuss, aqui com Jill, no dia do casamento de ambos
© Marcel Nuss
A finalizar a entrevista, Marcel Nuss faz questão de falar de Jilly, a namorada, 27 anos [com que se casaria em 2015]. “Ela é assistente sexual. Eu já era conhecido e ela ficou surpreendida por a contactar. Apaixonámo-nos por Skype. (Risos)”
“Há quem fique chocado com a nossa diferença de idades, mas esse choque só existe por eu ser deficiente, porque, nos meios intelectuais, há muitos homens da minha idade que se envolvem com mulheres mais jovens.”
“Quem nos conhece acha tudo normal. Gostava que a nossa sociedade fosse mais tolerante e não fosse tão intrusiva.”
Jilly, que aparece junto de Nuss nas fotos que ele vai partilhando no Facebook, muitas vezes alertando os amigos virtuais para os artigos do seu blogue, tem planos para se mudar para casa dele.
[Ela apresenta-se agora, oficialmente, como Conseillère en relations affectives et sexuelles at Avenbleu consulting” (conselheira para relações afectivas e sexuais na Avenbleu conuslting].
Irá Jilly abandonar a profissão? “A decisão será dela e eu aceitarei o que ela decidir. Se quiser continuar, não vejo problema. Na nossa cultura o amor é sexo. Para mim, amor não é sexo, mas o sexo faz parte do amor. Ou amamos ou não. Temos de respeitar a liberdade do outro.”
[Marcel Nuss casou-se, entretanto, com Jilly e, em 2015, aos 60 anos, lançou “En dépit du bon sens: Autobiographie d’un têtard à tuba“, (Ed. Eveil Citoyen). Vale a pena ler a entrevista que, a propósito desta nova obra, o casal deu aqui].
Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 10 de Janeiro de 2013 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on January 10, 2013