Os Khoury, palestinianos cristãos, investiram tudo para celebrizarem a Taybeh. Garantem a pureza do produto cumprindo uma lei alemã de 1516, e cativam muçulmanos com “um sabor sem álcool”. Porque o negócio prospera, lamentam a perda de contrato com uma vidreira da Marinha Grande. (Ler mais | Read more…)

Nadim Khoury considera a sua cerveja Taybeh um “projecto de coexistência”: vendida com e sem álcool, vai ao encontro de todos: judeus, cristãos e muçulmanos na Palestina e em Israel
© eugeniogrosso.com
Em 1994, Nadim Khoury deixou a América, onde viveu 15 anos, para lançar um projecto inédito em Taybeh, sua terra-natal, na Cisjordânia.
Sem financiamento externo, penhorou bens para comprar máquinas de fabricação ao Canadá, malte à Bélgica, lúpulo à Alemanha e à República Checa, levedura à Grã-Bretanha e garrafas a Portugal.
Hoje, mantém todos os parceiros iniciais, excepto o fornecedor Santos Barosa-Vidros S.A., da Marinha Grande. “A ocupação israelita arruinou esta colaboração”, lamenta o palestiniano co-fundador da única microcervejeira do Médio Oriente.
“Importávamos de Portugal pelo menos dez contentores por ano, cada um com 75 mil garrafas até que, em 2002, a mercadoria ficou retida, “para inspecção”, nas alfândegas de Israel durante 58 dias”, contou-nos Khoury, numa entrevista, por telefone.
“As autoridades argumentaram que a carga não obedecia às regras do International Standard Institute [que certifica a qualidade e segurança dos produtos]. Fiquei atónito, porque nunca tive problemas antes e, sobretudo, porque as garrafas da Santos Barosa estão entre as melhores do mundo.”
“Os custos da retenção dos contentores e a multa que tive de pagar não compensaram o valor das garrafas”, queixou-se Khoury, sem dar números. “Percebi que o objectivo implícito era forçarem-me a negociar com empresas israelitas – o que faço agora mas, garanto, que a qualidade é muito inferior e o preço superior”
“As garrafas Santos Barosa eram de uma grande resistência; nunca se danificavam ou partiam durante o processo de esterilização, enchimento e rotulagem”, salientou.
Khoury revelou ainda que, “há cerca de três meses” [Setembro de 2012], tentou reatar a ligação à Santos Barosa. “Telefonei para o senhor Inácio Lourenço [responsável pelos serviços de exportação], mas ele informou-me que já não fabricam as garrafas que nos vendiam”, lastimou-se.
Contactado um responsável da empresa que, de modo indelicado, recusou adiantar pormenores e ser identificado, condescendeu que eu o citasse apenas no seguinte: “Para nós, era um negócio irrisório, totalmente insignificante – dois contentores por ano, num total de 150 mil garrafas.”
“Negócio é negócio; não vejo que tenha sido uma perda quando falamos de um grupo, como o nosso, que fabrica 1100 milhões de garrafas por ano, num total de 130 milhões de euros”, vincou.
Certo é que a referência às garrafas portuguesas constava de todas as reportagens internacionais ou blogues de viajantes centrados na cerveja de Taybeh, hoje célebre mundialmente, graças a um acordo de franchising com a Alemanha, que a exporta para a Suécia, Bélgica, Holanda, Reino Unido e Japão.

A Taybeh Brewing Company é um negócio de família. Nasceu em 1994, um ano após a assinatura dos Acordos de Oslo Peace quando David (esq.) e o irmão Nadim (à direita) aceitaram o conselho do pai de ambos, Canaan David Khoury (1926-2002; ao centro) para regressarem à aldeia-natal de Taybeh, depois de viverem mais de 20 anos nos EUA
© Taybeh Brewing Company
Esses elogios desapareceram quando, há uma década, a Santos Barosa deixou de exportar para a aldeia 100% cristã, cercada por colonatos judaicos, a 15 quilómetros de Jerusalém.
“A cerveja foi inventada pelos faraós do Egipto e faz parte do Médio Oriente desde há 5000 anos”, sublinha Khoury, notando que, quando quis fundar a Taybeh Brewing Company, com o seu pai, Canaan, e o seu irmão, David, nenhuma empresa em Israel manifestou interesse em se associar a eles.
Agora, com uma produção anual de 6000 hectolitros por ano, 10% dos quais reservados para exportação, o projecto dos Khoury já é mais atraente.
A iniciativa dos Khoury foi posta em marcha um ano depois de Israel e a OLP terem assinado os Acordos de Oslo em que se reconheciam mutuamente.
Nadim, que deixara Taybeh a 2 de Fevereiro de 1979, para estudar nos EUA (tem um mestrado em Administração de Empresas pela Universidade de Boston), voltou à aldeia onde nasceu na companhia de David, que emigrara dois anos antes.
Como todos os palestinianos no estrangeiro, eram obrigados por Israel a regressar esporadicamente a casa para renovarem os documentos de identidade, sob risco de perderem direitos de residência.
Gerentes de uma rede de bares na América (Nadim especializou-se também em técnicas cervejeiras), voltavam sempre com novidades, maravilhando parentes e amigos. “Um dia, o pai disse: “Vamos fazer história!”
E assim aconteceu. “Tínhamos esperança que a paz estava à vista e queríamos contribuir para desenvolver a economia da Palestina”, vangloriou-se Nadim.
“O nosso pai exigiu que pedíssemos autorização prévia a Yasser Arafat. Fomos ter com o presidente [da Autoridade Palestiniana], que era muçulmano mas respeitava os cristãos, que nos disse só isto: ‘Que Deus vos abençoe!’”
“O investimento necessário totalizava 1,2 milhões de dólares, mas não tínhamos essa quantia, e nenhum banco nos concedia empréstimo. Juntámos poupanças e hipotecámos propriedades para concretizar o sonho.”
“A nossa primeira cerveja foi produzida em 1 de Agosto de 1999”, continua Nadim, assumindo-se, com uma gargalhada, “quase tão famoso como Jesus Cristo”, que pernoitou com os discípulos em Taybeh, quando este povoado, hoje com 1400 habitantes, se chamava Efraim, uma das tribos do antigo Reino de Israel.

Todos os Khoury se dedicam ao negócio da família. Na foto Canaam (à esq.), licenciado em Engenharia em Harvard, e Madees, a sua irmã, filhos de Nadim
© Luna Alqamar | vice.com
Embora a cerveja Taybeh tenha, em árabe, o significado de “deliciosa”, reza uma lenda que o seu nome se deve a Saladino, o herói do Islão que, no século XII, derrotou os Cruzados. Ao visitar Efraim, o conquistador muçulmano achou os residentes cristãos tão hospitaleiros que os terá chamado de taybeen (bons e generosos).
“Foi sempre nossa intenção fazer uma cerveja caseira e não industrial”, explica Nadim, realçando que, para uma fermentação pura, não usa aditivos nem pasteuriza os “cincos sabores” que agora comercializa: a branca dourada (que foi a primeira, 5% de álcool); a preta (para celebrar o “o novo milénio da Terra Santa”, e seguindo uma receita dos monges da Idade Média que a bebiam para suportar o jejum); âmbar (clara e escura), light (de baixo teor alcoólico, menos de 4%); e sem álcool – com um rótulo verde.
Vulgarmente designada como “cerveja do Hamas”, foi lançada quando o movimento islamista ganhou as eleições legislativas em 2006. Embora o Hamas governe a Faixa de Gaza após ter derrotado a rival Fatah, a Taybeh não pode entrar naquele território porque Israel não autoriza.
Se o arranque do projecto parecia auspicioso, tudo se tornou mais difícil para os Khoury em 2002, com a segunda Intifada, devido à multiplicidade de atentados suicidas cometidos por bombistas palestinianos. “Israel ergueu mais 650 checkpoints na Cisjordânia, dificultando o livre movimento”, precisou Nadim.

Um trabalhador na fábrica dos Khoury que agora produz vários tipos de cerveja, uma delas halal (sem álcool, permitida pela lei islâmica)
© Gali Tibbon | The Guardian
“O turismo diminuiu drasticamente; a nossa produção desceu, para menos de 10% da capacidade; e fomos obrigados a despedir funcionários (entretanto readmitidos) – somos 20 no total, incluindo os cinco membros da nossa família”, adiantou.
“Se vamos falar dos problemas da ocupação, um artigo não chega, terá de ser um livro”, brinca o mestre-cervejeiro.
“Repare, nós só usamos água pura, mas temos restrições que nos forçam a alterar o horário semanal de produção, ao contrário dos colonos, que a podem desperdiçar.”
“Nas exportações para o estrangeiro, porque a Palestina não tem um porto ou um aeroporto, as nossas cargas ficam retidas durante quase dois meses em Israel.”
“Transportar o produto até Jerusalém, por exemplo, demora em média 15 a 20 minutos mas, para não arriscarmos a que, nos postos militares, nos abram as caixas e barris, para verificarem se têm bombas, porque a cerveja fica intragável quando exposta ao sol, temos de usar caminhos alternativos, o que dura horas infindáveis.”
“Acontece chegarmos aos hotéis que nos fazem encomendas, e são dezenas só em Israel, e já estarem fechados. Tempo perdido.”

Na aldeia de Taybeh, os Khoury já não produzem e exportam apenas cerveja, mas também vinho da marca Nadim, o nome de Nadim, o proprietário e co-fundador
© Abbas Momani | AFP
A situação na Cisjordânia melhorou ligeiramente com o governo do independente Salam Fayyad [antigo primeiro-ministro], admite Nadim, que se entusiasma com outro projecto que patrocina: a venda de azeite biológico. Durante a Intifada [de 2000], devido ao cerco israelita, muitos jovens não conseguiam pagar as propinas.”
Um padre local propôs que as famílias financiassem os estudos vendendo azeite, já que a aldeia é famosa também pelas suas muitas oliveiras. Como a igreja ficou com um grande excedente, os Khoury tomaram a seu cargo a comercialização do Peace Oil.
“Tenho orgulho no que conseguimos”, exulta Nadim. “Não voltaremos a deixar a nossa terra. O maior problema é a ocupação.”
“Exigimos ser tratados como seres humanos. Temos de chegar a uma solução de dois Estados. Israel pode construir quantos colonatos judaicos quiser, mas Taybeh, onde a minha família vive há 600 anos, continuará a ser a Palestina.”
Um sinal de esperança, segundo Nadim, foi a Oktoberfest que, em Outubro de 2012, os Khoury organizaram mais uma vez – o evento repete-se anualmente desde 2005. “Com música do Sri Lanka, rap palestiniano e danças da Baviera, juntámos europeus, japoneses – e até israelitas.”
“Não contabilizei o que vendemos, porque oferecíamos três copos da “melhor cerveja do Médio Oriente” por cada um que era comprado. O nosso lema é Drink Palestinian; Taste the Revolution [“Beba palestiniano; saboreie a revolução”]. Foi uma grande festa!”

A primeira cerveja Taybeh foi produzida em 1999. Os Khoury importavam anualmente de Portugal pelo menos 10 contentores, cada um com 75.000 garrafas, compradas à empresa Santos Barosa
© Gali Tibbon | The Guardian
Este artigo, agora actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 9 de Dezembro de 2012 | This article, now updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on December 9, 2012