Esquizofrenia: “Haverá várias curas – não uma cura”

A norte-americana Cyndi Shannon Weickert sonhava ser chef de cozinha. Mudou de rumo perante a doença que destruiu a vida do irmão gémeo. Como neurobiologista, lidera um dos maiores projectos de investigação, na Austrália. Este é o seu testemunho, pessoal e profissional. (Ler mais | Read more…)

Louis Wain was an English artist known for drawing cats, going crazy, and then drawing more cats. Later in his life he developed schizophrenia and psychologists believe that his descent into madness can be clearly seen in his cat drawings. © endofthegame.net

Louis Wain era um artista inglês, conhecido por desenhar gatos. Foi-lhe diagnosticado esquizofrenia, e psicólogos acreditam que a deterioração do seu estado mental pode ser observada no modo como evoluíram esses desenhos.” Esta é uma sequência antes e depois da doença
© endofthegame.net

Ao longo de três meses, Cyndi Shannon Weickert ditou as respostas às minhas questões (enviadas por e-mail) para um gravador, de onde a sua assistente, Inara Bebris, preparou um texto de 10 páginas.

Doutorada em Ciência Biomédica na Mount Sinai School of Medicine, dirigiu uma unidade de Neurobiologia no National Institute of Mental Health, ambos em Nova Iorque, até se mudar, em 2006, para Sydney (Austrália).

Aqui, detém o título de Macquarie Group Foundation Chair of Schizophrenia Research, joint venture da Neuroscience Research Australia, University of South Wales, do Schizophrenia Research Institute e do banco Macquarie Group.

A ambiciosa investigação que lidera tem ainda o apoio do governo estadual de Nova Sul de Gales (não do Governo federal australiano). Galardoada com vários prémios no campo da investigação no país que a contratou, divide o seu tempo entre o laboratório e conferências pelo mundo.

É autora de mais de 100 ensaios científicos, e há mais de duas décadas que anda “à procura de uma cura” para a esquizofrenia – a doença que contribuiu para a morte do seu irmão gémeo, Scott Shannon.

Comecemos com o seu sonho de ser “chef de cozinha famosa”…

Ser chef era uma das minhas opções. Queria fazer algo de criativo, mas poderia ter sido também, arte ou design. Sempre gostei muito de cozinhar, com a minha avó quando era miúda. Adoro fazer frango à moda de Kiev recheado de manteiga com ervas aromáticas e molho de queijo.

Gosto de pratos italianos, sobretudo lasanha e rigatoni no forno. Também aprendi a fazer gnocchi e outras coisas parecidas. Agora não tenho tempo para investir em receitas elaboradas; é mais pratos simples, que se aquecem rapidamente no forno.

Dedicar-se à neurobiologia foi uma decisão directamente relacionada com a doença do seu irmão?

Quaisquer decisões de vida, como a escolha de uma carreira, são complexas. Decidi ser médica porque o meu irmão sofria de esquizofrenia – foi essa a principal razão. Também queria estudar biologia porque me apaixonei por esta disciplina da faculdade. Achei muito interessante, quando o professor explicou como é que a diabetes se desenvolve.

Pensei que esta base biológica e molecular para entender uma doença como a diabetes poderia ser aplicada à esquizofrenia. Tinha igualmente aptidão para o pensamento analítico, e gostava de matemática. Seria natural eu gravitar à volta das Ciências. Tinha ainda paixão em aplicar tudo isso a uma doença que necessitava de respostas melhores do que as disponíveis quando o meu irmão foi diagnosticado.

Um desenho de Louis Wain, antes da esquizofrenia. © endofthegame.net

Desenho de Louis Wain, antes da esquizofrenia
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Fale-nos de Scott e da sua relação com ele.

Quando éramos crianças, a minha mãe lembra-se de nos passear num carrinho com dois lugares – uma tarefa difícil por ser uma mulher pequenina. Ela diz que muitos transeuntes nos saudavam com um “hi”, porque desde os anos 1960 que não nasciam gémeos por ali [em Shortsville].

A minha primeira palavra foi “hi”; a do meu irmão, que começou a falar logo a seguir, foi “mommy” [mãezinha]. Enquanto bebés, eu e Scott éramos muito desordeiros. Há fotografias nossas a retirarmos todos os tachos e panelas de um armário de cozinha e a tocar neles como se fossem baterias.

A minha mãe reteve na memória, por exemplo, que se Scott estivesse a beber um copo de sumo, perguntava “onde está o da Cyndi?”, o que mostra que fomos sempre muito amigos. Queríamos ter a certeza de que gostávamos e partilhávamos as mesmas coisas.

Havia sempre equilíbrio e igualdade. Nos dias de chuva, adorávamos ficar sentados em casa a fazer jogos de tabuleiro, como monopólio, porque tínhamos a mesma idade, os mesmos interesses, ambos éramos inteligentes e analíticos. Ele era mesmo muito bom a matemática, por isso, quanto mais complexo fosse o jogo, melhor.

Quando as coisas começaram a descarrilar, de certa maneira, foi quando outros rapazes se começaram a interessar por mim, e Scott era um bocadinho protector. Para dizer a verdade, não gostava que ele fosse assim; preferia que me deixasse sair com os meus namorados e fazer o que me apetecesse.

Mas ele preocupava-se que não me tratassem bem e, às vezes, envolvia-se em lutas. A adolescência foi um período tumultuoso. Separámo-nos um pouco.

Também éramos muito competitivos na escola. Embora gostássemos de brincar juntos, quando se tratava do desempenho académico cada um procurava ultrapassar o outro.

Em álgebra, fazíamos furiosamente os nossos trabalhos de casa de modo a sermos os primeiros a entregá-los na manhã seguinte, tentando responder a todas as questões.

No final de um exame anual, eu tive 100%, ou seja, todas as respostas certas, e ele ficou devastado por ter tido 98%. Em geometria, ficou transtornado por ter tido 98% e eu 96%. Ultrapassou-me, mas ficou desapontado por não ter conseguido os 100%. Ele queria ser o “craque”. Era o tipo mais inteligente da turma.

Sim, havia entre nós uma grande competitividade, mas também um enorme respeito mútuo. Achámos sempre que cuidaríamos um do outro. Não aceitávamos que outros nos pudessem magoar.

Wain was always fascinated by cats, but when his wife was diagnosed with cancer, he started drawing them in silly situations to amuse her. His drawings grew in popularity and were featured on greeting cards and in magazines and newspapers. Life was good, that is until his wife died of said cancer and he started to lose control of his mind. ©http://endofthegame.net

Louis Wain sentiu-se sempre fascinado por gatos. Quando a sua mulher sofreu um cancro, ele começou a desenhá-los de uma forma divertida para a animar. Os desenhos tornaram-se tão famosos que foram reproduzidos em jornais, revistas e postais. Quando a mulher morreu e devido à sua própria doença, Wain começou a perder o controlo da mente”
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Quando é que começou a notar que Scott agia de forma diferente?

Ele dizia coisas do tipo, “Ouvi um disco dos Beatles de trás para a frente e eles dizem-me que hoje não devo ir à escola.” Recebia mensagens particulares mas não me recordo do conteúdo exacto. Um dia, estávamos a jantar, virou-se para mim e disse que eu era “a filha do diabo”. E estava absolutamente convencido disso.

Outra vez, chegou a ameaçar a minha mãe, empurrando-a contra a parede. Foi nessa altura que chamámos a polícia. Ao chegarmos à esquadra, Scott disse: “A minha mãe é a Yoko Ono” Uma amiga dele também me contou que um dia estavam na beber cerveja e Scott exclamou: “Ele está aqui”. E ela perguntou: “Ele quem?” A resposta foi: “Jim Morrison”.

O vocalista dos The Doors era uma espécie de ídolo para o meu irmão, mas claro que essas estrelas do rock & roll não estavam na sala.

No seu quarto, o que Scott fazia era construir pirâmides com papéis coloridos, dando três dimensões, cores e sombras diferentes às faces das pirâmides, do género negro, azul e vermelho (as cores eram, geralmente, brilhantes). Colocava-as depois em lugares estratégicos, usando fios onde pendurava e interligava essas pirâmides.

Também colava coisas às paredes, e fazia desenhos geométricos no sítio onde o nosso gato comia. Para que o gato recebesse as mensagens, suponho eu, ou para proteger o gato. Não tenho a certeza do que pretendia. Nunca tentou suicidar-se. Só foi violento no episódio com a minha mãe.

O diagnóstico de esquizofrenia foi bem aceite?

A princípio, não. Acho que Scott ficou em estado de choque. Não entendia o que estava a acontecer-lhe. Nem ele, nem ninguém, viu sinais do início da doença. Foi internado numa instituição onde o injectaram com o que sentia ser um veneno.

Disse que preferia morrer a voltar para um hospital psiquiátrico e tomar antipsicóticos, os primeiros a serem receitados.

Creio que terá sido um derivado de Thorazine ou algo mais forte, porque foi horrível, para ele. Penso que começou a tomar consciência [da doença] ao iniciar a medicação.

Culpo-me por uma das suas recaídas porque, quando o vi a sentir-se tão bem, perguntei-lhe se ele precisava mesmo de continuar a tomar aqueles remédios. Ele desistiu e regrediu. Foi terrível ver regressar todos os sintomas, e vê-lo a lutar de novo.

Ainda me entristece, ter feito aquela sugestão. Fui muito ingénua em relação ao modo como a doença era tratada de uma perspectiva clínica, pois uma das piores coisas que se pode fazer é interromper a medicação. Hoje, recomendo a todos os pacientes em tratamento que não desistam de tomar os antipsicóticos.

Wain began using more vibrant colours and used sharp outlines for the fur. The outlines also became noticeably darker, especially around the head. Finally, the background of the portrait has shifted to an almost psychedelic pattern of abstract colours and shapes. © endofthegame.net

Wain começou a usar cores mais vibrantes e realçava mais o pelo dos gatos, com tonalidades mais escuras. O background do retrato ganhou uma forma quase psicadélica nas formas e cores abstractas”
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Que efeitos tiveram a doença e a medicação?

Scott tomava os medicamentos, mas exigia que lhe prescrevessem o tipo certo para o manter equilibrado. Insistia em que o médico não mudasse a terapêutica quando ele se sentia melhor. Só que os medicamentos contribuíram para que ele aumentasse de peso, talvez uns 20 ou 30 quilos. A obesidade é, por vezes, um dos efeitos secundários dos antipsicóticos.

Além disso, Scott também desenvolveu diabetes. Outra agravante: as pessoas com esquizofrenia não gostam muito de sair de casa nem de fazer exercício físico, o que acontecia com o meu irmão. Era obeso e diabético. Isso é fatal para qualquer coração; foi fatal para o do meu irmão.

A sua mudança, da América para a Austrália, agravou o estado de saúde de Scott?

O impacto da minha transferência para Sydney foi mais psicológico do que físico. Uma das coisas que o meu irmão gostava muito quando eu vivia nos EUA (é tão difícil para mim falar disto…) era, por exemplo, se havia um problema com a mãe ou o padrasto, se este o queria obrigar a aparar a relva e ele não queria, ou o padrasto achar que não havia nada de errado com o carro e Scott estar convencido de que havia um ruído persistente.

Quando o meu irmão precisava de falar disto comigo, chamava-me. Sabia que me podia telefonar a qualquer hora do dia e tinha o meu apoio. Podia ser só para dizer, “‘Os meus dentes estão a ficar amarelos e tenho de os tratar”, e eu garantia a consulta e o pagamento.

Eu era, para Scott, a sua rede de segurança, a melhor amiga, a pessoa que olhava para ele de uma forma positiva e incondicional, e acreditava nele sempre.

Por isso, quando me mudei para Sydney e ele precisava de me telefonar, eu estava a dormir ou ainda meio acordada [devido à diferença horária], e não entendia o que ele me dizia nem qual era o problema.

Nem tenho a certeza se me mostrava interessada, porque estava a meio de um sonho ou em sono profundo. Ele ficou perturbado, porque era mais difícil ligar-me, havia códigos de país e cidade complicados antes do número de telefone. Em situações de emergência, ele terá sentido que eu me estava a afastar dele.

“Characteristic changes in the art began to occur, changes common to schizophrenic artists. Jagged lines of bright color began emanating from his feline subjects. The outlines of the cats became severe and spiky, and their outlines persisted well throughout the sketches, as if they were throwing off energy.” © endofthegame.net

“Os desenhos de Wain começaram a sofrer acentuadas mudanças, características dos artistas portadores de esquizofrenia. Sobressaíam as linhas coloridas e com reentrâncias. A imagem dos gatos tornou-se mais austera e agressiva, como se expelissem energia” 
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Consegue falar da noite de Acção de Graças, em 2008, quando o seu irmão morreu? 

Começámos o dia com um jogo: adivinhar quem era a pessoa mais famosa que o outro havia imaginado. Pensa-se em alguém, fazem-nos perguntas e só podemos responder “sim” ou “não”. Basicamente, íamos descodificando deste modo quem era a pessoa imaginada.

Eu era a rainha de França e o meu irmão, naturalmente, era Jim Morrisson. Ele adorou a brincadeira e vestiu a melhor roupa que eu lhe oferecera no Natal do ano anterior. Estava lindo.

À hora do jantar, fizemos as nossas orações. O meu irmão disse que agradecia “a casa, o carro, o cão e a família”. Eu disse que estava grata por ele ter dado sentido à minha vida. Recordo que costumávamos falar em viajarmos juntos para vários pontos do mundo.

Naquela noite de Acção de Graças, perguntei a Scott que país queria visitar, depois de termos ido ambos a Inglaterra (um dos sonhos do meu irmão era “investigar” se os ingleses eram “melhores, iguais ou piores” do que os americanos porque tínhamos sido “uma colónia”). Ele respondeu-me: “Quem disse que vamos viajar pelo mundo?”

Repliquei: “Bem Scott, quando curarmos a esquizofrenia, toda a gente vai querer saber como é que conseguimos isso, e vai ser necessário viajarmos pelo mundo. Eu subo ao pódio e direi que foi por causa de ti que eu fiz isto”. Scott imitou-me e declarou: ‘Foi tudo por causa de ti, Cyndi.”

[Scott subiu, não ao pódio mas ao seu quarto, e Cyndi desceu as escadas para dar um recado à mãe. Quando voltou para junto do irmão, ele tinha morrido de ataque cardíaco].

Descreveu a cidade onde nasceu, Shortsville, como sendo “tão pequena que, ao passar por ela, quem piscar os olhos já não a vê”. Neste lugar de 2000 habitantes havia outros casos de esquizofrenia?

Não.

O caso do seu irmão é único na sua família?

Recentemente, descobri que um sobrinho meu tem mostrado sintomas semelhantes aos de Scott, e tive uma tia-avó que sofreu de alucinações e paranóia. Por isso, acredito que a doença está presente na minha família. Diria que todos os genes são importantes porque mesmo que a doença não esteja presente na família ainda pode ter uma base genética, porque cada um de nós tem alterações genéticas “ novo.”

By now the psychedelic patterned backgrounds have slipped into the cat itself, resulting in surreal patterns and colours enclosed in an outline of a cat’s body. This cat looks quite sad or depressed, in comparison to the above cats which look quite surprised or anxious. Depression and Anxiety are typical mental dysfunctions experienced by those suffering from schizophrenia, although in a much more extreme form. © endofthegame.net

“O padrão psicadélico de Wain já não é visível apenas em background mas na própria imagem do gato. Este felino parece triste e deprimido” 
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Qual foi o maior progresso registado desde que a doença foi diagnosticada pela primeira vez?

Provavelmente, o maior progresso foi a descoberta, por acaso, de que injectar cloropromazina ou o seu equivalente tinha um efeito ansiolítico nos pacientes quando vão para cirurgias e que a aplicação deste medicamento à esquizofrenia bloqueia as alucinações e delírios.

Este foi um achado casual, nos anos 1950, quando um médico astuto [o francês Henri-Marie Laborit] decidiu injectar tal substância nos seus pacientes da ala psiquiátrica e verificou que conseguia ‘acalmar’ os doentes com esquizofrenia.

Como explica o método e o principal foco da sua investigação sobre “desenvolvimento molecular, celular e cognitivo”?

O principal método consiste em usar os cérebros de pessoas com diagnóstico de esquizofrenia já falecidas e compará-los com controlos, sendo necessária a compreensão do ADN do genoma humano e da neuroanatomia celular.

Olhamos, basicamente, para os padrões da expressão génica no cérebro. É preciso ter um nível elevado de formação em biologia molecular e neuroanatomia para compreender as mudanças moleculares num contexto anatómico para que, dessa forma, seja possível reconhecer diferentes tipos de células no cérebro e [perceber] como é que elas podem ser insuficientes na comunicação de umas com as outras.

Não é um processo difícil; a teoria por detrás dele é que pressupõe uma certa exigência de estudo. Creio que existe também variabilidade de uma pessoa para outra.

Não é como uma investigação controlada [por exemplo, estudos de caso-controlo], portanto temos de ter em conta potenciais confundidores resultados que criam enviesamentos – se não houver separação por género em saúde mental, por exemplo, cria-se um factor de enviesamento] relativamente à estatística, quando se analisa e interpreta os dados.

Um dos problemas com a utilização de material do cérebro humano é o facto de haver falta de consistência nos achados de um laboratório para outro.

Tentamos agora ultrapassar isso, usando amostragens cada vez maiores [antes eram 2-3 casos] por exemplo ter 38 a 40 cérebros de pessoas com esquizofrenia, melhorando tanto quanto possível a qualidade dos controlos (controlando, por ex., para o factor idade).

“Soon the cats became abstracted, seeming now to be made up of hundreds of small repetitive shapes, coming together in a clashing jangles of color that transform the cat into something resembling an Eastern deity.” © endofthegame.net

“Não demorou muito até que os gatos de Louis Wain, portador de esquizofrenia, se tornassem figuras abstractas, compostas por centenas de pequenas formas repetitivas, num conjunto de cores que fazem com que  felino se assemelhe quase a uma divindade”
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Teorias mais modernas sugerem que o córtex cerebral, que normalmente controla os neurónios dopaminérgicos [associados ao neurotransmissor dopamina], é fraco e que a doença começa, efectivamente, no córtex.

No passado, os neuropatologistas olhavam para o córtex e não encontravam prova dessa fraqueza nem danos nas células do cérebro. Uma das descobertas mais extraordinárias da neuropatologia moderna é a de que, na realidade, existem células que estão danificadas, mas são pequenos neurónios inibidores no córtex que não foram detectados por anteriores investigadores. O facto de os neurónios inibitórios corticais estarem danificados é uma das descobertas mais consensuais até à data.

Examinámos sobretudo moléculas de modo a procurar uma neuropatologia mais específica, e tentando descobrir as causas possíveis da falência dos neurónios inibitórios.

Quisemos usar a tecnologia mais actual para examinar milhares de moléculas de uma só vez com extrema sensibilidade para ver o que os próprios cérebros podem dizer-nos sobre como o ambiente molecular do córtex pode ser diferente na esquizofrenia quando comparado com os controlos.

Reexaminámos uma velha teoria de que não havia gliose nos cérebros de pessoas com esquizofrenia (o que seria previsível se houvesse morte celular e lesão neuronal). Utilizamos abordagens modernas de coloração, e com o maior número de amostras jamais estudados levantámos a hipótese de que se investigássemos nesse sentido detectaríamos de facto gliose.

Descobrimos, primeiro, que havia evidência de gliose no córtex. Eram pequenas células da glia, a microglia, que estavam aumentadas nos cérebros de pessoas com esquizofrenia. Estas células da glia são as que, existentes, se associam à imunidade. E um aumento das células da glia sugere que estão a reagir a lesão neuronal.

Em segundo lugar, observámos que vários tipos de moléculas tipicamente produzidas por células imunitárias conhecidas como citocinas [ou citoquinas] estavam aumentados no córtex de pessoas com esquizofrenia.

Estas duas linhas de evidência sugerem que há um processo activo de lesão cortical que ocorre nos cérebros de pessoas com esquizofrenia. Verificámos que uma grande percentagem, cerca de 40%, de pessoas com esquizofrenia integram este grupo de inflamação “elevada”.

A esquizofrenia tem, de facto, uma base biológica. Os nossos achados significam que os aumentos nas citocinas registadas no sangue de pessoas com esquizofrenia podem estar associados a citocinas aumentadas e à activação imunitária no cérebro. Podemos, agora, ser capazes de tentar desenvolver um biomarcador sanguíneo para identificar as pessoas com neuro-inflamação como pertencendo à fisiopatologia desta doença.

Ainda mais importante: os tratamentos desenvolvidos para tratar a neuro-inflamação podem fornecer terapêuticas novas para pessoas com esquizofrenia.

Dado que a resposta às terapêuticas neuro-imunes pode ser enorme, talvez venhamos a assistir à restauração de funções neuropsicológicas superiores e ver algumas pessoas “curadas”.

At this stage the drawings become more disturbed; it is clear that Wain’s hallucinations are increasing in severity as these drawings look more like demonic oriental dragons on drugs than cats. © endofthegame.net

“Os desenhos de Wain revelam agora maiores distúrbios, sinal de que as alucinações são mais graves; os gatos parecem dragões demoníacos”
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Definiu um prazo para concluir a investigação?

O nosso trabalho, a nível clínico, terminou no final de Agosto quando atingimos o número pretendido de participantes. Estamos agora a analisar os dados recolhidos para garantir fiabilidade antes de revelar os resultados. Não há prazo para uma conclusão. A investigação tem o seu próprio tempo.

Quando fazemos uma investigação, levantam-se, geralmente, novas questões. Determinados projectos têm prazos para serem finalizados mas não é o caso desta investigação que, prevejo, continuará durante muito tempo.

Dito isto, embora existam objectivos de investigação a longo prazo na neurociência básica da esquizofrenia, creio que conseguiremos desenvolver novas terapêuticas a curto prazo – mesmo sem compreender o completo mecanismo etiopatogénico desta doença – que permitam uma maior eficácia do tratamento.

Temos a responsabilidade, para com os doentes, de aplicar terapêuticas agora, em vez de esperar 10 a 15 anos, até conhecermos os resultados finais da investigação.

Não diria que é [um processo] fácil, mas creio que é mais controlável porque temos mais instrumentos ao nosso dispor.

Por instrumentos, quero dizer que em vez de olharmos para uma única molécula às vezes podemos olhar para centenas de moléculas numa única investigação [e, eventualmente, observar como interagem umas com as outras].

Nos seus testes está a usar Raloxifene, que resultou noutras patologias. Por que é que, alegadamente, a indústria farmacêutica não investe mais em medicamentos para doenças mentais e, em específico, para a esquizofrenia?

Creio que o Raloxifene tem estado a ser usado no tratamento da osteoporose. Quando inquiri sobre a possibilidade de usar Raloxifene em casos de esquizofrenia, disseram-me que “é a droga dos ossos do povo” e não “a droga do cérebro do povo”.

Por isso, desconheço por que a indústria farmacêutica não está interessada. As decisões que estão por detrás das grandes companhias estão para além do meu entendimento e não as consigo comentar.

Quais os efeitos do Raloxifene no tratamento dos seus pacientes?

Nota importante: não esperamos que todos os pacientes com esquizofrenia melhorem com esta terapêutica – apenas temos a previsão de que um subtipo de doentes possa responder positivamente, cerca de 20 por cento, sobretudo a nível dos sintomas emocionais e cognitivos.

Por isso, os indivíduos com mais sintomas negativos e maiores dificuldades intelectuais serão os que mais beneficiarão. Vamos avançar no sentido de uma abordagem preventiva e mais personalizada no tratamento de problemas psiquiátricos.

À medida que cresce a compreensão biológica, seremos capazes de testar mais fármacos. Tentaremos desenvolver biomarcadores que ajudem no tratamento e, no final, seremos capazes de desenvolver não uma, mas “várias curas” para a esquizofrenia.

Acredita mesmo ser possível uma cura no seu tempo de vida?

Nunca haverá “uma só cura” para a esquizofrenia. Haverá “várias curas” para a esquizofrenia – e eu confio que irei descobrir uma no meu tempo de vida.

“The abstraction continued, the cats now being seen as made up by small repeating patterns, almost fractal in nature. Until finally they ceased to resemble cats at all, and became the ultimate abstraction, an indistinct form made up by near symmetrical repeating patterns.” © endofthegame.net

“o abstraccionismo de Louis Wain continuou: padrões repetitivos, uma natureza quase de fractura –  figuras que quase já não parecem sequer gatos” 
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A jornalista agradece o apoio precioso, na descodificação de termos científicos e médicos, do Sr. Doutor Rui Coelho, chefe do serviço de psiquiatria do Centro Hospitalar de São João do Porto e professor de Psiquiatria e Saúde Mental na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

Esta entrevista serviu de base a uma reportagem publicada no jornal PÚBLICO em 11 de Novembro de 2012 | Parts of this interview were included in a feature story published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on November 11, 2012

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