Síria: O colapso do medo

Uma explosão quase decapitou o círculo restrito do regime sírio, em Julho de 2012. “Mais importante do que saber quem morreu é a estocada desferida à reputação de Bashar al-Assad, que se apresentava como um deus, rodeado de líderes intocáveis – essa imagem foi totalmente desfeita”, diz um dissidente. (Ler mais | Read more…)

© Giulio Petrocco | AFP | Getty Images

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Em Damasco, Mohamed Hamdan, jornalista residente em Damasco, foi testemunha do que Ayman Abdel-Nour, analista político obrigado a exilar-se no Canadá, descreveu como “o colapso do medo nos corações dos sírios” após uma explosão que quase decapitou o círculo restrito do regime, no centro da capital [em 18 de Julho de 2012].

“Muitas pessoas celebraram nas ruas, a cantar e a dançar; outras estão a festejar no Facebook e no Twitter”, diz-me Hamdan, numa entrevista por e-mail, fazendo questão de ser identificado, porque já não teme represálias.

“O ataque ocorreu no bairro de al-Rawdeh, onde vivem os mais ricos, e nas proximidades da residência do Presidente, Bashar al-Assad, na área de Moujajereen”, precisou. “Também ouvimos dizer que foi atacado o quartel-general da 4º Divisão do Exército, liderada por Maher al-Assad, irmão do Presidente, mas não há confirmação.”

“A Guarda republicana isolou totalmente o Hospital de Shami, para onde foram enviados os feridos, alguns em estado grave”, adiantou Hamdan. “A televisão estatal deu a notícia, mas não mostrou imagens. Oficialmente, foi tudo apresentado como um ‘atentado terrorista, levado a cabo por gangues criminosos’, mas ninguém acredita.”

“A mobilização de reservistas e das tropas que estavam nos Montes Golã [a Síria só controla a cidade de Quneitra] mostrou que, para o regime, o principal inimigo não é Israel mas o seu próprio povo, bombardeado com canhões, artilharia e carros de combate.”

Na explosão de ontem foram confirmadas [por vários ‘media’ e fontes sírias cuja fiabilidade é impossível de verificar] as mortes do ministro da Defesa, general Daoud Rajiha; do titular da pasta do Interior, Mohammad Ibrahim al-Shaar [mais tarde, surgiu o esclarecimento de que ficou ferido mas sobreviveu]; do seu “vice” e cunhado do Presidente, general Assef Shawkat; do chefe da “célula de crise” e adjunto do vice-presidente, general Hassan Turkmani; e do director dos serviços secretos e primo do chefe de Estado, general Hafez Makhlouf [outras versões referem que ficou apenas ferido].

“Mais importante do que saber quem morreu é a estocada desferida à reputação de Bashar al-Assad, que se apresentava como um deus, rodeado de líderes intocáveis – essa imagem foi totalmente desfeita”, disse Nour, também por e-mail.

Filho de um médico cristão que aderiu ao Partido Baas (no poder) aos 14 anos, o autor do influente blogue all4Syria teve de abandonar a pátria quando percebeu que o regime socialista e pan-arabista que fascinou o seu pai não podia ser reformado, apenas derrubado.

© Khalil Ashawi | Reuters

© Khalil Ashawi | Reuters

A morte do principal conselheiro de segurança de Bashar, elo de ligação com o Irão e o Hezbollah no Líbano, foi um duro revés para o Presidente, mas Nour, ao contrário de outros, não considera Shawkat o “cérebro da repressão”.

Em seu entender, “há três figuras piores: Maher, Jamil Hassan [chefe da espionagem militar] e Ali Mamlouk”, outro consultor presidencial, alegadamente, encarregado de infiltrar sírios em grupos terroristas.

Certo é que, embora o ministro da Defesa fosse Daoud Rajiha, um cristão “nomeado à pressa em 2011 para dar a aparência de abertura multiconfessional”, segundo o diário britânico The Guardian, o verdadeiro detentor do cargo era Shawkat, de 62 anos.

A reputação de implacável ganhou-a quando, depois de se divorciar da primeira mulher, ousou ir ao palácio do defunto Presidente Hafez al-Assad buscar a única filha deste, Bushra, “a solteira mais cobiçada da Síria”, para se casar com ela.

Inicialmente, toda a família e, em particular, Basil, o primogénito, se opunha a este enlace: Shawkat era mais velho do que “a menina querida da Esfinge de Damasco” e, embora alauita e militar de carreira, tinha origens humildes e demasiada ambição.

Basil, a ser preparado para suceder ao pai, morreu num misterioso acidente na estrada para Beirute em 1994 – foi a única vez que alguém viu Hafez chorar em público. Shawkat, que desposou Bushra no ano seguinte, esteve na lista de suspeitos mas provou a sua lealdade.

Quando chegou a altura de Bashar ocupar o lugar do irmão, o cunhado ajudou-o. E Bashar foi grato, oferecendo-lhe o controlo da espionagem militar, em 2001, e o domínio sobre o vizinho Líbano.

Após o assassínio, em 2005, do ex-primeiro-ministro libanês Rafic Hariri, e para afastar as desconfianças internacionais de que Shawkat ordenara o crime, Bashar “despromoveu-o” temporariamente. No entanto, nos últimos 16 meses de sublevação, foi encarregue de supervisionar directamente os massacres.

Shawkat tornou-se de tal modo num “pilar do regime” que, segundo a Reuters, era já notória uma certa rivalidade com o cunhado: Bushra e o marido achavam-se mais merecedores do título de “casal presidencial” do que Bashar e a sua mulher, Asma, membro da elite sunita.

© Javier Manzano | AFP | Getty Images

© Javier Manzano | AFP | Getty Images

Para Iyas Maleh, activista sírio de direitos humanos que divide o seu tempo entre a Bélgica e os EUA, a morte de Shawkat “foi o golpe mais duro” depois da deserção de importantes personalidades, como o amigo Manaf Tlas, o antigo embaixador no Iraque e vários generais, que se refugiaram na Turquia.

“Também foram grandes perdas as mortes do primo Hafez Makhlouf [que pertence ao clã de Anisa al-Assad, a mãe de Bashar], e de Hassan Turkmani, o chefe da força de intervenção encarregue de reprimir a revolução”, diz-me, por e-mail, o filho de Haitham Maleh, um dos mais respeitados dissidentes que abandonou o Conselho Nacional Sírio (CNS, principal movimento da oposição), por este não armar a insurreição.

Iyas Maleh deu ainda conta de “uma fuga maciça de soldados em várias regiões do país, abandonando equipamento militar – em mais uma prova do caos que assola as tropas presidenciais e de que estas estão a perder terreno para o Exército Sírio Livre”.

Sem referir a ajuda logística que os rebeldes têm recebido de países como a Arábia Saudita e o Qatar, Iyas Maleh salienta que o avanço do Exército Livre até Damasco indicia “mais confiança para enfrentar as forças de Assad a quem a Rússia tem vendido arsenais.” Chegar às portas do Presidente “é o sinal mais claro de que o regime está fraco e vai cair subitamente quando menos se esperar.”

© Hussein Malla | AP Photo

© Hussein Malla | AP Photo

“A diferença entre os revolucionários e as tropas de Assad é a sua vontade e a sua causa justa – eles são destemidos enquanto as forças do regime são criminosos obstinados”, adiantou Maleh.

“Serão estes revolucionários no terreno que vão acabar com o regime – não a oposição no exílio! Serão aqueles que defendem o país com o seu sangue que vão governar depois de Assad, não os que têm vivido no estrangeiro nos últimos 40 anos e que perderam a noção do sofrimento do povo sírio sob um déspota.”

Opinião igual é a de Ayman Abdel-Nour: “O Exército Livre revelou-se muito organizado e com uma hierarquia bem estruturada. Vai seguramente desempenhar um papel importante na governação futura do país, em conjunto com um conselho de transição civil.”

Nem Maleh nem Nour receiam ataques vingativos contra as minorias que se aliaram aos Assad na assunção de que estes eram o guardião da sua sobrevivência face a uma maioria sunita (70 por cento dos 22 milhões de habitantes da Síria). “Vivemos uma revolução pela dignidade e liberdade contra uma ditadura”, sublinhou Iyas. “Não é uma guerra contra cristãos, alauitas ou outra comunidade.”

Nour acredita que Bashar, “desligado da realidade”, não se vai render porque ainda espera, “com a ajuda da Rússia, criar um Estado separatista alauita em Latakia”, o bastião dos Assad.”

Maleh, por seu turno, acha que Moscovo “já perdeu o seu único aliado no Médio Oriente” – o país onde controla uma importante base naval e que é o seu principal comprador de armas.

Haitham al-Maleh (à direita) e o seu filho Iyas al-Maleh, líderes da oposição aos Assad, durante uma passagem pelo Egipto, em 2011. @Sharif Abdel Kouddous

Haitham al-Maleh, mais de 40 anos em luta contra os Assad – e o seu filho Iyas al-Maleh (esq.), líderes da oposição, durante uma passagem pelo Egipto, em 2011
© Sharif Abdel Kouddous

Ayman Abdel Nour, um cristão, director do blogue All4Syria e antigo membro do Partido Baas, hoje no exílio
© CNN

Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO, em 19 de Julho de 2012 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on July 19, 2012

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