Ele vai atravessar o Médio Oriente numa “corrida pela paz”, mas não vai parar aí. Quando chegar ao Monte Evereste, terá passado por 195 países, um deles Portugal. (Ler mais | Read more…)
Foram cerca de 400 quilómetros a pé, da sua casa em Teerão até Isfahan, a cidade onde moravam os tios a quem pediu abrigo depois de uma briga violenta com a mãe. Reza Baluchi tinha oito anos e, desde então, a sua vida tem sido uma correria.
“Não posso revelar o que motivou a discussão, porque estou a preparar uma autobiografia que, talvez, dê um filme”, disse à 2 o iraniano que fugiu do seu país em 1995 e espera voltar, em 2013, quando atravessar o Médio Oriente numa “missão pela paz”.
Hoje com 40 anos, Reza vive numa tenda em Death Valley, na Califórnia, e é aqui, com temperaturas, diurnas e nocturnas, “entre os 40 e os 49 graus centígrados”, que ele se prepara para a “grande viagem”.
Contactei-o através da sua página no Facebook, mas ele demorou a responder porque tem de pedir emprestados computador e telefone. Esta entrevista foi feita através do telemóvel de uma amiga, que o alojou temporariamente num apartamento em Los Angeles.
“Sou como um cigano”, diz Baluchi, voz pausada e inglês titubeante. “Nunca precisei de muita coisa para subsistir. Durmo duas a três horas por dia. É suficiente. Trabalho num hotel no Parque Nacional, no turno da noite, lavo a louça e faço outros trabalhos, em troca de dinheiro, alimentos e, sobretudo, autorização para acampar e correr pelos trilhos. Não me falta nada. Só me lembro de ter adoecido uma vez, com malária, numa passagem por África.”
África foi um dos continentes por onde Reza Baluchi vagueou quando deixou Portugal em 2000, mas antes contemos a sua história no Irão. Quando a mãe lhe deu uma tareia, não pensou duas vezes e fugiu. Estava habituado a caminhar uma média de dez quilómetros diários para ir e vir da escola. “Não foi difícil nem tive medo durante as duas semanas que demo- rei para chegar a Isfahan”, garante. Também não se zangou.
Desde os sete anos que ajudava o pai, que era mecânico, e arranjou um emprego nesta área para enviar o salário para a família. Estudava e trabalhava, percorrendo sempre longas distâncias, até que trocou os livros pelo ofício que lhe dava prazer.
Se a habilidade de Baluchi a consertar carros ainda continua a ser uma das suas formas de subsistência, foi a resistência física, aos 14 anos, que chamou a atenção da selecção iraniana de ciclismo. Não desiludiu e ajudou a vencer várias provas, mas não bastou para evitar provações.

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Um adolescente revoltado com as normas de conduta impostas na República Islâmica, Baluchi afastou-se da religião e aproximou-se de opositores políticos. Foi preso na cadeia de Evin.
“Era um ambiente sufocante”, recorda. “Se usava cabelo comprido, era obrigado a cortá-lo. Se fosse apanhado a dormitar num passeio, era chicoteado. Quando a milícia Basij me deteve, eu vestia uma T-shirt com a imagem de Michael Jackson e tinha comigo um filme romântico iraniano, comprado no mercado negro.”
Até as autoridades concluírem que ele “não era uma ameaça”, Baluchi foi isolado numa cela “durante 45 dias”. Nesta entrevista, não quis lembrar esse “período doloroso”, que descreveu assim à CNN: “Torturavam-me to- dos os dias. Seria melhor que me matassem para eu não ter de sofrer.” Depois de liberta- do, voltou ao ciclismo, mas o seu sonho já era outro: deixar o Irão.
A oportunidade surgiu quando a equipa foi competir na Alemanha, em 1996. “Pedi asilo político”, contou. “Consegui apenas uma licença de residência, que tinha de ser renovada de seis em seis meses. Fui aceite numa equipa de ciclismo e ganhámos várias vezes.”
“Ao fim de quatro anos, a fazer todo o tipo de tarefas para sobreviver, decidi ir para a América. Peguei na minha bicicleta, oferecida por colegas alemães, e parei no México. Até lá, andei pelo resto da Europa, por África, pela Austrália, pela Ásia e pela América do Sul — um total de 55 países.”
Em 2000, Baluchi estava no Algarve. “Integrei uma equipa de ciclismo, mas não gostei e, dez dias depois, fui para Lisboa”, relata. “Tenho um grande amigo em Cascais, Mohamed Tasmini, dono de dois bares. Ajudou-me muito e ainda nos mantemos em contacto. Deu-me 2000 dólares que fiz seguir pelo correio para a minha família no Irão.”

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Hossein Mermazie, 36 anos, outro iraniano que vive em Portugal desde 1986, também se recorda do compatriota que conhecia como Ali. “Ficou em nossa casa durante uma semana. Foi-nos apresentado junto ao Chequers [um dos bares de Tasmini], que ficava perto da pizzaria da minha tia. Vinha de bicicleta e trazia fotos das fronteiras por onde passava. Era uma pessoa simples por quem o meu pai nutria grande afeição, mas não falava muito.”
Mashi, a mãe de Hossein, diverte-se quando evoca o tempo em que Ali/Balushi partilhou o mesmo tecto. “Era tão fechado que alguns vizinhos receavam que pudesse ser perigoso. Não partilhava o passado, mas lutou muito para construir o futuro. Um dia, ficámos espantados quando, ao ouvir uma rádio que emite em farsi, tomámos conhecimento de que ele tinha chegado à América.”
E, para chegar à América, um empurrão crucial, segundo Hossein, terá sido um emprego que Ali/Baluchi conseguiu em Sintra, após responder ao anúncio de um “coleccionador de carros antigos” que precisava de um bom mecânico.
“Ele abria e voltava a montar caixas de mudanças automáticas de olhos fechados, e isso era impressionante na época. O patrão não só lhe pagava bem como o instalou numa roulotte de luxo à porta da sua residência.”
Depois de Portugal, a primeira etapa de Baluchi foi Marrocos. Seguiu-se o Senegal, a Mauritânia, o Níger, o Burkina Faso… “Nunca tive problemas”, assegura. “Sou um tipo pacífico que quer mostrar a humanidade das pessoas do Médio Oriente.”
Foi complicado transmitir essa mensagem, sobretudo depois dos atentados terroristas de 11 de Setembro de 2011. Após uma estadia na Argentina e chegado a Monterrey, na fronteira do México com os EUA, Baluchi esperou 90 dias por um visto de entrada na terra dos seus sonhos.
“Ainda não tinha os documentos da imigração e entrei sem querer no Arizona”, conta. “Pensava que estava em território mexicano e montei a minha tenda. Ao amanhecer, tinha um helicóptero a sobrevoar a área. Assustado, comecei a falar alemão, mas ao verem os recortes de jornais que eu tinha comigo, um deles, o Anglo-Portuguese News, que se referiam a ‘um iraniano em busca da paz’, os polícias apontaram-me as armas. Detiveram-me por ‘entrada ilegal’. Como eu não tinha meios de pagar a fiança, de 5000 dólares, fiquei preso cinco meses.”

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Em tribunal, “prometi ao juiz que correria por todos os EUA e que o dinheiro angariado iria para os familiares das vítimas do 11/9”, precisou Baluchi. “Consegui isso graças a do- nativos da comunidade iraniana-americana e de muitas empresas.”
Em 2007, após uma primeira volta à América (a segunda foi em 2009), Baluchi percorreu o perímetro dos EUA — 202 dias consecutivos —, recolhendo fundos para o Hospital Pediátrico de Denver. Se as promessas cumpridas lhe deram fama, o momento de glória foi a oferta da sua bicicleta ao Departamento de Bombeiros de Nova Iorque, o que perdeu mais profissionais na explosão das Torres Gémeas. “Vai ficar exposta no renovado Ground Zero”, exultou.
Agora, em Death Valley, Reza Baluchi prepara-se para a “missão mais importante”: a travessia do Médio Oriente. Começará em Fevereiro de 2013, ainda sem dia marcado. “Partirei de Jerusalém e não falarei com ninguém excepto com a minha mãe, quando chegar ao Irão, quinta etapa da caminhada até ao Monte Evereste. O meu silêncio será como um jejum de palavras. Deixo tudo escrito aos amigos que me acompanham.”
“De cada lugar por onde passar levarei um pouco de terra, símbolo de paz. Todo o dinheiro que angariar será oferecido a instituições que ajudam crianças de rua. Quero que essas crianças possam ter bolsas de estudo e só peço que, depois de formadas, também elas ajudem outros. Toda a gente pode ser um herói.”
Quando o inquirimos se não tem medo de ser preso ao chegar a Teerão, até porque partirá de Jerusalém, cidade que israelitas e palestinianos reclamam como capital, Baluchi responde: “É difícil, mas não impossível — no final terei estado em 195 países. Quero ser uma ponte. Não tenho religião, mas acredito que Deus me protege. A minha família é o mundo.”

Em 2016, Reza Baluchi tentou, sem êxito, chegar às Bermudas numa bolha insuflável. A Guarda Costeira americana resgatou-o pela segunda vez. A primeira foi em 2014, quando se perdeu na corrente do golfo e esteve três dias perdido no mar alto. Esta era mais uma missão humanitária: “Angariar fundos crianças pobres e inspirar os que perderam a esperança num futuro melhor”
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Este artigo, agora actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 24 de Junho de 2012 | This article, now updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on June 24, 2012