A milícia suspeita de um massacre em Houla [em 25 de Maio de 2012 – 198 mortos, dos quais 38 mulheres e 49 crianças, segundo a ONU] emergiu, alegadamente, de bandos mafiosos nas regiões da Síria dominadas por famílias alauitas. Tem sido usada pelo regime como arma de sobrevivência, diz-nos o escritor e dissidente Yassin al-Haj Saleh. (Ler mais | Read more…)
A palavra shabiha entrou no léxico árabe quando, Hafez al-Assad interveio na guerra civil libanesa em 1976. Até então, ninguém fora da Síria conhecia o termo cuja origem permanece obscura. Crê-se que deriva de Ashbah (“Fantasmas”).
Talvez, porque esta milícia que protege o regime “opera fora da lei, vivendo na sombra, figurativa e literalmente, materializando-se e desaparecendo a uma velocidade surpreendente”, explica, via Facebook, e a partir da sua [antiga] residência em Damasco, Yassin al-Haj Saleh jornalista, escritor e ex-prisioneiro político (de 1980 a 1996).
[Nascido em Raqqa, a cidade que o autoproclamado “estado islâmico” ou Daesh proclamou capital do seu califado, Yassin tem sido considerado, por muitos dos seus apoiantes, a “consciência da revolução síria“, iniciada em 2011.]
O termo Shabiha, refere Yassin, também poderá provir de Shabah, um modelo de carros Mercedes outrora popular entre os responsáveis da milícia, porque realçava o estatuto social e permitia transportar todo o tipo de contrabando em bagageiras amplas. Outra explicação: “A ideia de privilégios extensos que permitem a um indivíduo alargar a sua shabah, ou sombra.”
Terá sido, pois, a partir do final dos anos 1970, com o crescente tráfico de bens do Líbano, que se começou a ouvir falar de Shabiha (plural de shabih, ou “rufia”). Assim eram referidos “bandos masculinos nas regiões costeiras da Síria, todos oriundos de influentes famílias alauitas – os Assad, os Deeb, os Berri e os Makhlouf.”
Ganhavam a vida com “negócios ilícitos (electrodomésticos, tabaco, álcool, drogas e antiguidades) e cobrança de ‘impostos’ (extorsão).” Conquistaram fama pela “brutalidade e crueldade, mas também pela devoção cega aos seus líderes, tratados como mu‘allim (chefe) ou khaal (tio).”
Nas suas áreas de acção – uma delas o reduto alauita de Latakia –, os shabiha eram “intocáveis e impunes”, estavam acima da lei. “Se houvesse um conflito de interesses com as autoridades locais, estas não se atreveriam a defender-se”, observou Yasin Saleh, autor de vários livros, entre eles, Syria in the Shadow: Looks Inside the Black Box e The Myth of the Others: A Critique of Contemporary Islam and a Critique of The Critique.
A “primeira característica dos shabiha “é a dos laços de sangue e seita que os amarram à família do Presidente”, referiu o intelectual sírio [a quem foi atribuído, em 2012, o prestigiado Prémio Príncipe Claus,”como tributo ao povo sírio e à revolução”].
Outras facetas são: “a predisposição para hostilizar a sociedade, o que faz deles o meio perfeito para praticar a violência, de forma organizada ou arbitrária, contra a população civil; a obediência inquestionável aos seus líderes; e a motivação económica – usam a força para obter bens materiais ou controlar fontes de receita valiosas, como os portos.”
Ao contrário do que seria de supor, porém, a maioria dos shabiha não são ricos, como os seus chefes. Explicou Saleh: “Suspeita-se que a região costeira, como um todo, e os habitantes alauitas, em particular, são mantidos propositadamente numa situação de pobreza e subdesenvolvimento para que possam ser o fornecedor constante do músculo, sem qualificação e educação, que defende o regime.”
“Eles são mão-de-obra barata e violenta, chamados a fazer trabalhos sujos, pelos quais são pagos e que são único sustento pessoal.”
Ainda que “não seja do seu interesse”, estes alauitas, adiantou Saleh, “são facilmente transformados em guardiões fanáticos de uma elite política afortunada que só se importa com o seu bem-estar, bastando-lhe invocar a religião e a comunidade em comum.”
Este “elemento de sectarismo” é o que distingue os Shabiha na Síria dos Baltagiyya no Egipto e dos Balatija no Iémen” – alusão aos “mercenários” que serviram os ditadores depostos naqueles países.
Os shabiha nunca deixaram de ser leais ao regime, nem mesmo quando foram confrontados. “Para ganhar popularidade, quando se preparava para suceder ao pai”, Basil al-Assad, o filho mais velho de Hafez, lançou contra os shabiha uma campanha no início dos anos 1990, recordou Saleh, nesta entrevista.
Mandou até prender até alguns dos seus primos. “Nessa altura, porém, os “rufias” eram “mais um fenómeno económico do que político.” Basil morreu num misterioso acidente de viação, na estrada que liga Damasco a Beirute, em 1994.
Bashar, o oftalmologista treinado à pressa para ocupar o lugar de Basil, após a morte de Hafez, em 2000, também colocou o seu temível primo Numir nas prisões de Adra e Siadaniya, mas rapidamente percebeu que não podia continuar a afrontar os shabiha, “a face negra do regime” que lhe assegura a sobrevivência.
“Ele confia mais nos shabiha, parte da comunidade alauita e operando em articulação com o aparelho de segurança, do que no Exército, abalado por crescentes deserções.”
Para ilustrar “a relação orgânica” entre os shabiha e o regime, Saleh citou o poeta e dramaturgo Mamdouh Adwan (1941-2005), nascido em Hama, cidade onde Hafez mandou matar cerca de 30 mil pessoas, para se vingar da Irmandade Muçulmana que o tentou derrubar e assassinar.
Na obra Hayawanat al-Insan (“A Bestialidade do Homem”), Adwan escreveu: “O homem parou o carro num semáforo. Quando a luz verde acendeu, ele avançou. Subitamente, apareceu-lhe um shabih de moto que não respeitou o sinal vermelho.”
“Uma colisão esteve iminente, mas foi evitada. Apesar de ser o infractor, o shabih insultou o condutor do automóvel. ‘Irmão’, disse este, ‘a luz estava verde e a estrada era minha.’ Enquanto o pontapeava no rosto, o shabih respondia: ‘A estrada é tua? Não sabes que todo o país é nosso?’”
Esta “mistura de poder e superioridade racial”, na avaliação de Saleh, expandiu-se com a revolução, iniciada em Março de 2011, contra Bashar, a ponto de os shabiha, “proletários da repressão”, serem os principais suspeitos do massacre de Houla, cometido na noite de 25 para 26 de Maio. Contaram-se 109 mortos, incluindo 32 crianças.
A cidade, predominantemente sunita, foi alvo de um bombardeamento aéreo. Os que sobreviveram foram depois degolados e alvejados na cabeça. Num discurso televisivo à nação, a 3 de Junho [de 2011], Bashar, ilibou as suas forças do crime e culpou “terroristas a soldo do estrangeiro”, dizendo: “Nem monstros poderiam ter feito aquilo que vimos.”
Yassin Saleh não acredita que os shabiha possam salvar Bashar, mas alerta que os “fantasmas” poderão tornar-se “ainda mais perigosos” à medida que o regime se aproxima do fim. “Eles são o símbolo do ódio. Vamos precisar de muitos anos para restabelecer os laços que foram sendo quebrados entre os diferentes grupos confessionais na Síria.”

Yassin al-Haj Saleh, por muitos considerado “a consciência da revolução síria”
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