Fadwa Soliman, símbolo da revolução síria

Membro da minoria alauita no poder, a actriz e poeta teve de fugir do país depois de desafiar a sua comunidade. Foi renegada pela família ao revoltar-se contra o regime de Assad. Esta é a sua história, narrada, na primeira pessoa, a partir de um dos seus esconderijos. (Ler mais | Read more…)

Fadwa Soliman no exílio em Paris: “Como pôde [Bashar] tornar-se presidente sem eleições, apenas por ser o filho de Hafez al-Assad? Previ que uma revolução iria começar, que as massas não ficariam silenciosas”
© Associated Press

Sou Fadwa Soliman, nascida há pouco mais de 30 anos na cidade de Aleppo, na Síria. Passei a minha infância e adolescência em Safita, uma vila do distrito de Tartus. A minha família era muito pobre. Com apenas quatro anos de idade, perdi o meu pai.

Tenho oito irmãos, todos eles com formação universitária. Licenciei-me no Instituto Superior de Dramaturgia, em Damasco. Como actriz, fiz teatro televisão e cinema.

Muitos terão ficado surpreendidos quando, recentemente, me viram mobilizar centenas de manifestantes em Homs, uma das regiões mais conservadoras do país, entoando palavras de ordem contra Bashar al-Assad.

O meu destino podia ser a prisão ou a morte, mas quis estar presente naquela manifestação para eliminar a percepção de que toda a comunidade alauita, a que pertenço, apoia o regime.

Também quis provar que não há sectarismo na Síria, e que são mentiras as alegações de que os que participam nos protestos são islamistas radicais, grupos armados ou agentes estrangeiros.

Agora, vivo escondida, sempre em fuga, porque sou perseguida. As forças de segurança tomaram de assalto um bairro em Homs, à minha procura. Espancaram muita gente para revelarem onde eu estava. Fugi do país. Não posso revelar pormenores, mas ando sempre a mudar de esconderijo e de número de telefone. As autoridades não desistiram de me encontrar.

Acredito que a cultura e o teatro são os verdadeiros motores da mudança, e o impulso para conquistarmos a nossa liberdade e os nossos direitos.

Descobri, porém, que a instituição cultural na Síria é alicerçada num pensamento superficial, e que existe uma censura implacável que estrangula o pensamento, a arte e a criatividade. Esta instituição é dominada por um espírito securitário.

Aleppo, a cidade-natal de Fadwa Soliman: À procura de sobreviventes depois de um bombardeamento atribuído a forças leais a Bashar al-Assad, no bairro de Al-Shaar, em 7 de Setembro 2015
© Newsweek

Não há intelectual no meu país que não sofra as consequências desta mentalidade. Parte destes intelectuais viriam a juntar-se à instituição, moldando-se a ela; outra parte recusou e viu-se marginalizada. Comigo estão, por exemplo, outras actrizes como Mona Wassef e May Skaf, a cantora Assala Nasri, o cineasta Nabil Maleh e o compositor Malek Jandali.

Não me deram espaço e liberdade na cena artística por ter rejeitado os mecanismos do ofício orientado pela linha securitária. Refugiei-me primeiro em Latakia, durante sete anos, antes de reaparecer em Homs, impelida pela visão chocante de um vídeo em que uma família foi massacrada, os crânios das crianças desfeitos, pelas milícias pró-governamentais Shabiha.

Nos últimos anos de mandato do Presidente Hafez Al-Assad e início do de Bashar, em 2000, multiplicaram-se as produtoras artísticas privadas, as mais importantes das quais eram propriedade de políticos, de homens dos serviços de segurança e do exército. O objectivo era branquear capitais.

Na altura, julgámos que poderia existir alguma abertura cultural e um mais amplo leque de opções teatrais. Contudo, ficámos chocados quando nos apercebemos de que se tratavam de instituições corruptas, com critérios comerciais que apostam em temas supérfluos e na banalização da cultura árabe.

Quanto a Bashar al-Assad, encarei o facto de ter alterado a Constituição para poder assumir a chefia do Estado como sendo a maior afronta ao povo sírio. Interroguei-me: Como pôde tornar-se presidente sem eleições, apenas por ser o filho de Hafez al-Assad? Previ, então, que uma revolução iria começar, que as massas não ficariam silenciosas.

Fadwa Soliman nunca deixou de lutar pela Síria. Morreu de cancro, no exílio em Paris, em 17 de Agosto de 2017
© Nasib Bittar | Libération

O silêncio tinha sido criado pelo medo que a governação de Hafez al-Assad semeara; pela lembrança viva dos seus crimes, pela detenção de todos os opositores sírios, fossem laicos ou islâmicos, atirados para uma qualquer prisão, por dezenas e dezenas de anos. A grande maioria destes detidos acabou por morrer, após tantas sevícias, tantas torturas.

Ainda esperei que o primeiro discurso presidencial de Bashar Al-Assad fosse de reconciliação nacional, para fechar uma página escura na História da Síria.

Mas fiquei chocada com essa primeira declaração, pejada de vãs promessas de reformas jamais cumpridas. Ele não tinha em mente unir o povo sírio e sarar as feridas que o regime do seu pai causara.

Eu nunca me filiei em qualquer partido político da oposição, nem no Baas (no poder), mas sempre fui uma ferrenha opositora, insurgindo-me contra a pobreza, a humilhação, a exploração, a indiferença e a banalidade cultural. Ergui-me contra o medo e contra a cobardia.

Continuamente bradava bem alto: “É uma injustiça, temos de nos revoltar e derrubar Bashar Al-Assad!” Tornei-me eu própria numa fonte de medo para os meus colegas, por causa da minha “língua desgovernada”. Com ironia, diziam-me que a queda do regime jamais iria acontecer, e que eles apenas desejavam manter os seus empregos.

Como poderia eu não ficar do lado dos que se sublevaram?! Só acreditei que o povo descera à rua quando me juntei a ele em Homs.

Quando subi a um palanque para falar ao povo, quis demonstrar que recusava a matança e o cerco imposto à povoação de Daraa, e para reclamar o nosso direito edificar um Estado de Direito e democrático onde não podemos ser agredidos e mortos.

Homs: Foi nesta cidade, que sempre foi reduto da Irmandade Muçulmana, cerca de 160 quilómetros a norte de Damasco, que a alauita Fadwa Soliman se juntou à oposição, depois de ver imagens de um massacre de crianças cometido pelos milicianos Shabiha, fiéis ao clã Assad
© The Independent

Em Daraa e em Homs, corri sempre perigo de vida. Enfrentávamos a morte a cada dia que passava e, após cada manifestação, lançávamo-nos numa correria desenfreada antes da chegada dos carros de combate e das tropas.

Atravessávamos as ruas à frente de atiradores furtivos, sem saber se estes estavam autorizados a dispararem contra nós ou não.

Em Homs, a todo o momento, éramos ameaçados com bombardeamentos aos bairros. A prova de que os sunitas não são uma ameaça é que eu, uma alauita sem hijab, numa cidade onde muitas mulheres usam lenço, fui acolhida e protegida nas suas casas quando agentes de segurança foram procurar-me.

Não quero falar da minha família [um dos seus irmãos foi à televisão estatal renegá-la publicamente, dizendo. ‘Infelizmente ela esqueceu-se dos valores segundo os quais foi educada; sei que ela recebeu muito dinheiro do estrangeiro.’]

No que diz respeito aos alauitas [a comunidade religiosa a que Fadwa pertence], um número significativo deles são opositores e têm sido detidos.

Os alauitas são como qualquer grupo confessional na Síria: uma parte está do lado do regime; outra está contra, filiados em partidos e correntes políticas da oposição.

Algumas minorias religiosas receiam a mudança, porque o regime alega que depois de Assad virão os salafistas governar Síria. Entre a maioria sunita, também há quem tenha medo.

Este sentimento foi reforçado pelas situações no Líbano [onde os cristãos maronitas, outrora dominantes, perderam influência] e no Iraque [onde a maioria xiita se impôs às minorias sunita e cristã]. Este sentimento de medo é uma ferramenta nas mãos do regime, que o tenta intensificar para assegurar a sua sobrevivência.

Existe um fosso entre as várias confissões religiosas na Síria que foi construído por Hafez Al-Assad, sobretudo a partir do massacre de Hama, em 1982, quando matou centenas de civis, fazendo crer às minorias que a Irmandade Muçulmana queria criar um Estado islâmico.

Com a revolução em curso e o envolvimento de todos os sírios – das minorias e da maioria –, a consciência popular foi reforçada. O povo entendeu que o fosso não é real: é uma consequência da opressão.

“As fracturas na oposição são o resultado de 40 anos de ausência de acção política e institucional na Síria”, diz Fadwa Soliman. “Mas também creio que uma parte dos que querem derrubar o regime adoptou agendas estrangeiras, agravando as divisões”
© The New York Times

Tenho sido crítica do regime e da oposição, porque todos os dias há derramamento de sangue na Síria – o número de mortos desde Março de 2011 ultrapassa os 10 mil [em 2016, segundo a ONU, já eram 400 mil]. Isso deve-se, em parte, à incapacidade da oposição em conseguir uma solução política.

Hoje, pergunto-me, se uma oposição unida solicitar à comunidade internacional ajuda para forçar Bashar Al-Assad a pôr fim à violência, este pedido será atendido?

Até agora, o mundo não soube ter uma posição clara nem quando os sírios, ainda no início da revolução, se manifestavam de forma pacífica e eram descaradamente chacinados pelo regime. Não enviou observadores nem organizações de direitos humanos para revelar os factos e estancar a carnificina.

Os opositores, por seu turno, não fizeram devidamente o seu trabalho, porque se dividiram e não planearam mecanismos para derrubar, pacificamente, o regime; não conseguiram conquistar o apoio da opinião pública mundial.

Hoje, têm uma enorme responsabilidade: humana, histórica e moral perante tudo o que está a acontecer.

As fracturas na oposição são o resultado de 40 anos de ausência de acção política e institucional na Síria. Mas também creio que uma parte dos que querem derrubar o regime adoptou agendas estrangeiras, agravando as divisões. É no terreno que se encontram os verdadeiros opositores.

Uma guerra civil é inevitável se a crise se prolongar sem uma solução política e caso os opositores não se apressem a resolver o que os separa.

Mesmo após sair do país, tenho conhecimento de tudo o que acontece na Síria. Mantenho-me activa através de gravações no YouTube e da minha página no Facebook.

É uma tarefa de todos nós fazer com que os massacres cessem e os seus responsáveis compareçam perante tribunais internacionais.

Os massacres estão a ser cometidos pelo regime, que iniciou a onda de violência, mas sou contra a ideia de armar a oposição, porque o regime alegará que está a ser alvo de grupos armados.

É extremamente difícil dizer a seja quem for: ‘Não tens o direito de te defender’. Apoio o direito à autodefesa, mas estou contra a entrega de armas a civis porque isso só prolonga a matança e não derruba o regime. Queremos um Estado de direito que possa julgar os assassinos; é errado sermos nós a julgá-los.

A alternativa é a criação de um parlamento composto pelos opositores jovens para apoiar o Conselho Nacional Sírio [no exílio] para encontrar uma solução.

Advogados, médicos, engenheiros e empresários fora da Síria uniram-se para ajudar os movimentos da sociedade civil, cada vez mais activos no interior do país.

Fadwa Soliman numa manifestação de apoio ao povo sírio, em 17 de Abril de 2012, em Paris
© Thibault Camus | AP

O objectivo é exprimir uma consciencialização política e nacional; unir o povo, socorrendo-o com fundos; tratar psicologicamente os desalojados; estreitar laços com os meios de comunicação social livres que emergiram com a revolução; promover publicações que apoiam uma revolta pacífica. Este regime corrupto deve ser derrubado pacificamente.

Bashar Al-Assad não vai durar muito, tendo em conta notícias [não confirmadas] que referem as mortes de Assef Shawkat [cunhado do Presidente e antigo chefe da espionagem, morto num atentado em Damasco, em Julho de 2012] e de Hisham al-Ikhtiyar [director do Bureau de Segurança Nacional, que também morreu no atentado que vitimou Shawkat].

O povo está determinado a obter a sua liberdade, e o regime não está a conseguir oprimir a vontade do povo, apesar de toda a brutalidade.

Finalmente, sobre Asma Al-Assad, a mulher do Presidente, não percebo como pode ela aceitar a violência e os massacres que o regime tem vindo a cometer.

Pior: não entendo por que é que ela apoia o marido. Todas as pessoas têm o direito de manifestar a sua pertença política, intelectual, religiosa e étnica sem que a sua vida seja posta em perigo.

Se Asma tivesse desempenhado esse papel, hoje seria olhada como uma mulher mais humana e verdadeira. Teria contribuído para travar o derramamento do sangue.

Não temo, de modo algum, que a Síria venha a estar sob domínio dos islamistas. O povo que saiu à rua só permitirá que os islamistas ou outros ascendam ao poder com o seu aval. Na Síria, o islão nunca foi extremista. Os media estatais é que tentam distorcer a imagem dos muçulmanos na Síria.

[Em 2016, a viver em França, Fadwa Soliman recebeu o Prix Découvreurs, pelo seu livro de poesia “À la pleine Lune” (Éditions du Soupirail). Um extracto da obra pode ser lido aqui:

Ne cherchez pas mes traces / La trace du papillon a accroché sa couleur bleue / Sur les statues qui ont jeté leurs âmes / Dans les flammes de la vérité / Et la vérité est entière / Qu’on la démembre et elle devient / Idéologies, confessions, partis, religions / Entière est la vérité / Alors détruis tes geôliers / Et tes geôles / J’attends la lumière / Qui brûlera mon cœur / Ce cœur toujours en attente /De qui frappera à son cœur /Afin de l’ouvrir au jour

No dia 17 de Agosto de 2017, no exílio parisiense, Fadwa morreu de cancro.]

Fadwa Soliman, no exílio, de cabelo rapado

@ André Carrilho |Courrier international

© André Carrilho | Courrier international

 

A jornalista agradece a preciosa colaboração de Badr Hassanein, da Editora Civilização, que traduziu do árabe para português as respostas de Fadwa Soliman, enviadas por “e-mail”. A entrevista foi iniciada por telefone, em francês, e concluída, vários dias depois,  por correio electrónico.

Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO, em 29 de Maio de 2012 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on May 29, 2012

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