O Papa de Alexandria e patriarca de toda a África deixou órfãos milhões de fiéis. A sua comunidade agradece-lhe 41 anos de protecção, mas, na era pós-Mubarak, a defesa dos cristãos passa agora por maior participação política individual. (Ler mais | Read more…)

Oração junto ao corpo do Papa Shenouda III, líder da Igreja Copta Ortodoxa do Egipto, exposto para as devidas homenagens, na Catedral de Abbasiya no Cairo (18 de Março de 2012)
© Esam Al-Fetori | Reuters
Os funerais no Egipto costumam ser um barómetro da popularidade de figuras públicas. Em 1975, quando a inigualável cantora Umm Kulthum morreu, muitos notaram que ao seu enterro acorreu uma maré humana – quatro milhões de admiradores – muito superior à que homenageou o venerado pai do pan-arabismo, Gamal Abdel Nasser.
Os mesmos cálculos foram feitos agora, nas exéquias de Shenouda III, o 118.º Papa de Alexandria e patriarca de toda a África: nem Muhammad Sayyid Tantawi, grande xeque da Mesquita de Aal-Azhar, suprema entidade do Islão sunita, teve tanta gente a chorar a sua perda [em 2010].
Tantawi morreu de ataque cardíaco, aos 81 anos, na Arábia Saudita, e foi sepultado na cidade de Medina; Shenouda III morreu no Cairo, aos 88, de cancro e outras complicações. O seu corpo repousa num mosteiro no Delta do Nilo, conforme desejo expresso num testamento e no mesmo lugar onde viveu um exílio sem precedentes, imposto pelo Presidente Anwar el-Sadat após recusar-se a legitimar o tratado de paz com Israel porque excluía os palestinianos.
O mais extraordinário é que o velho clérigo de barbas brancas e sorriso matreiro conseguiu na morte o que sempre tentou fazer em vida: a harmonia de cristãos e muçulmanos em igrejas e mesquitas por todo o país.
Os coptas, para Shenouda III, não podiam ser tratados como minoria (foram a maioria nos séculos IV a VI d.C.), ainda que representem só 10% de 80 milhões de habitantes. O seu lema era: “Nós não vivemos no Egipto; o Egipto vive em nós”.

Fiéis coptas despedem-se do líder espiritual. Mãos tocam a foto do Papa Shenouda III, erguida numa igreja do Cairo, durante as exéquias fúnebres, a 18 de Março de 2012
© Nasser Nasser |AP
Carismático e visionário, Shenouda III reprovava a atitude de Sadat de encorajar os grupos islamistas como contra-poder aos nacionalistas de esquerda que contestavam a sua política. Durante esse período, os coptas foram alvo de ataques brutais, mas o raïs ignorou os avisos – quase proféticos – do antigo monge Nazeer Roufail.
Em 1981, um mês depois de ter colocado sob detenção domiciliária o homem que foi professor e repórter antes de descobrir a sua vocação religiosa, o Presidente foi assassinado por um muçulmano extremista.
O confronto com Sadat foi o primeiro em dois séculos entre um Papa copta e um governante egípcio. No entanto, desiludiram-se os que esperavam de Shenouda III, insultado e ofendido, um apelo à vingança, quando Hosni Mubarak o recolocou no trono de São Marcos.
A 2 de Janeiro de 1985, véspera do Natal copta, Shenouda subiu ao púlpito da catedral no Cairo que deve o nome ao evangelista fundador da Igreja e disse: “Abrimos o coração aos nossos irmãos, os muçulmanos. Sentimos que eles são a nossa carne e o nosso sangue nesta nação adorada.”
A atitude ecuménica foi a marca do seu papado, e muitos crentes temem não apenas um vazio de poder mas que o sucessor não seja suficientemente firme para evitar hostilidades. Por outro lado, há também os que vêem uma oportunidade de sair do “gueto” protector a que foram confinados, defendendo agora o direito de participarem na vida social e política, como indivíduos e não como parte de uma instituição.
“O Papa Shenouda III era um homem extremamente complexo e presidiu à Igreja Copta durante o seu período provavelmente mais turbulento na História contemporânea”, reconhece, em entrevista que me deu, por e-mail, Adel Iskandar, britânico de origem egípcia, professor na Universidade de Georgetown, nos EUA.
“A tensão com Sadat foi um momento difícil para os coptas e a Igreja fechou-se em si própria. Como o Estado deixou de proteger os cristãos, o Papa e a Igreja tornaram-se os seus únicos defensores; a comunidade desapareceu praticamente da vida pública.”

Shenouda III com o Xeque Muhammad Sayyid Tantawi (esq.), grande Mufti e Imã da Mesquita de Al-Azhar que morreria, na Arábia Saudita, em 10 de Março de 2010
Desfiando o legado do Papa cuja fotografia ornamentava muitos lares e lojas, Iskandar refere que “Shenouda III será lembrado por muitas acções contraditórias – o apoio [na candidatura às presidenciais] que deu a [Hosni] Mubarak e ao seu filho, Gamal; os apelos aos cristãos para não protestarem na Praça Tahrir, no Cairo, durante a revolução de Janeiro de 2011; mas também a atitude apaziguadora e as relações calorosas com líderes religiosos muçulmanos.”
Durante este último ano, adianta Iskandar, alguns definirão a sua posição como “intransigência”; outros como “sabedoria”. Na própria Igreja, “gerou-se mal-estar” por Shenouda III não ter condenado abertamente o Conselho Supremo das Forças Armadas (CSFA), na sequência do “infame incidente”, conhecido como “massacre de Maspero“, em 9 de Outubro de 2011, no Cairo, quando carros de combate avançaram sobre manifestantes coptas, causando 27 mortos e mais de 300 feridos.
Sem Shenouda III, muitos coptas temem perder um porta-voz para as suas reivindicações. Nenhuma das 26 universidades no Egipto tem um reitor copta; só cinco coptas foram eleitos para o Parlamento e outros cinco escolhidos para cargos menores nas forças de segurança.
Não é raro os coptas serem julgados por “difamar o islão”, mas acusações de “infiéis” dirigidas contra eles são frequentes nos media estatais. Os templos coptas, ocasionalmente profanados e incendiados, têm dificuldade em obter licenças para serem renovados, e muito menos para que novos sejam construídos.
Adianta o académico Adel Iskandar: “Não se pode negar que os desafios para a comunidade aumentaram na era pós-Mubarak, mas, a par disso, há também uma crescente visibilidade e uma maior audácia da parte dos coptas. A identidade cristã foi suprimida durante décadas e agora está, gradualmente, a ocupar o seu espaço na nova identidade revolucionária do Egipto.”
“Muitos coptas estão mais conscientes de que foram usados como trunfos políticos pelo CSFA e por grupos islamistas com capacidade para galvanizar a população em termos sectários”, adiantou o académico Iskandar. “A dimensão da comunidade copta e a sua ligação profunda à sociedade egípcia exigem que os seus anseios sejam ouvidos.”
“Após terem sido silenciados e forçados à submissão, os coptas ganharam voz, desafiando o Estado e as forças políticas islamistas. Quem quer que venha a governar o Egipto, terá de lidar com esta nova realidade ou enfrentar agitação e instabilidade.”

Shenouda III com Anwar Sadat (assassinado em 1981), que o forçou ao exílio num mosteiro depois de ter criticado a sua política face aos islamistas e a Israel. À direita, Hosni Mubarak, o sucessor do presidente que o Papa copta haveria de apoiar, mesmo quando o povo clamava na Praça Tahrir pela queda do ditador, em 2011
O médico copta Atef Eskander, de 61 anos, residente no Cairo, concorda. Num breve depoimento que nos deu, por e-mail, escreveu: “O Papa Shenouda III será lembrado como um guerreiro da paz e herói da Igreja. Agora, chegou o momento de os egípcios coptas se juntarem à onda liberal no renascimento político do país para criar uma II República depois da revolução de 2011. O CSFA e os partidos islamistas têm de aceitar a nova realidade ou arriscam-se a que a anarquia tome conta do país.”
Com Shenouda III, a Igreja Copta expandiu-se para além das fronteiras do Egipto, sobretudo em África, na América do Norte e do Sul, onde ele próprio inaugurou várias congregações.
Na diáspora (cerca de um milhão de pessoas em 2008), um dos mais fervorosos seguidores do defunto Papa é Morcos Boulos. Nasceu há 44 anos no Cairo e aqui tem ainda familiares. Há duas décadas a residir em Brick, Nova Jérsia, nos EUA, onde é engenheiro especialista em inspecção de edifícios, diz-nos, numa troca de correspondência electrónica, que a emigração foi uma escolha pessoal, “em busca de um futuro melhor”.
O emigrante não se sentiu obrigado a fugir, ainda que seja “difícil a um cristão ter uma vida normal sem perseguições no Egipto”. Em Nova Jérsia, há uma grande congregação de coptas. “Todas as semanas, frequento os serviços religiosos”, exulta. “Adoro a Igreja Ortodoxa Copta, porque é a que melhor interpreta a Bíblia, de uma forma equilibrada e não extrema.”
Morcos Boulos só tem palavras para elogiar Shenouda III: “Sua Santidade era um grande pregador. O Espírito Santo falava pelos seus lábios. Há milhares de gravações dos seus sermões, e ele foi também autor de centenas de livros. Inteligente e erudito [licenciado em História da Arte], conseguiu o amor e o respeito de todos.”
“Ordenou 120 bispos e 800 padres; aumentou 20 vezes o número de igrejas coptas no mundo, em particular nos EUA, Austrália e Europa. Manteve intactas a fé ortodoxa copta e as tradições, tal como foram transmitidas por São Marcos.”
“Nenhuma biografia lhe fará justiça. Os coptas amam-no porque vêem Jesus nele. Era um santo. Tinha a sabedoria de Salomão, o coração de David, a filosofia de Paulo e o temor de Moisés a Deus.”
Se Moulos Boulos se regozija com o facto de Shenouda III “não ter permitido que as escrituras fossem contaminadas”, a realidade é que as restrições doutrinais que impôs em 2008, como a proibição do divórcio, excepto em caso de adultério, estão a levar discípulos para outros cultos cristãos e a encorajar até a conversão ao Islão.

O sucessor de Shenouda III como líder espiritual dos coptas ortodoxos, Papa Tawadros II (esq.) e o chefe da Igreja Católica Romana, Papa Francisco, durante uma audiência privada, no Vaticano, em 10 de Maio de 2013
© Andreas Solaro | AP
Até 1938, os coptas podiam invocar nove razões para se separarem dos cônjuges, uma delas “diferenças inconciliáveis”. Shenouda revogou essa prática e provocou um pequeno “cisma”, quando um movimento, O Direito a Viver, se afastou da ortodoxia, atraindo 4000 membros.
Uma cristã que se juntou a uma igreja evangélica é Samar Naguib, de 42 anos, casada e mãe de dois filhos, residente no Cairo. Em declarações que me deu, por e-mail, afirmou: “Shenouda III era sapiente e bondoso, mas eu não concordava com muitos dos rituais coptas nem com a ênfase que ele dava às tradições.”
“Isso agravou o fosso com outros cristãos. Ele ensinava as pessoas a História da Bíblia, mas não valorizava a relação pessoal com Jesus. Encorajava a oração através dos Salmos, mas não ajudava as pessoas a rezar com o coração.”
O que une Samar Naguib aos coptas é a preocupação de ver “74% do Parlamento nas mãos dos fanáticos da Irmandade Muçulmana. Eles vão escolher um novo presidente, em eleições previstas para Maio [de 2012 ]. As pessoas rezam para que o sucessor de Shenouda seja hábil, porque serão duros os tempos que se avizinham.”
O papel político da Igreja também “gera atritos”, observa Adel Iskandar: “Tudo está agora sobre a mesa. Haverá uma frente política copta? Devem os coptas aderir a partidos políticos e elevar a sua participação?”
“Deve a sua participação ser ditada pela Igreja? Muitos estão receptivos a reformas, de modo a confinar a da Igreja apenas a questões de religião, doutrina e escrituras, e já não a questões políticas, legais e socioculturais.”
“A Igreja tentará manter o monopólio sobre as vidas dos coptas, mas, ao contrário dos dias pré-revolucionários, não há garantia de que os coptas irão agir obedientemente apenas de acordo com as directrizes da instituição”, continuou Iskandar.
“Os cristãos reconhecem que são vulneráveis, sob o regime militar e islamista, mas não lhes interessa determinar qual destes dois poderes desfavoráveis é o mais aceitável. É improvável que os coptas voltem ao silêncio e à obediência – embora isso facilitasse mais o seu futuro.”

Egípcias muçulmanas erguem crucifixos durante uma manifestação no Cairo de protesto contra ataques de que resultaram vários mortos na comunidade copta, em Abril de 2013
© Amr Nabil | AP
Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 24 de Março de 2012 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on March 24, 2012