Aos 90 anos, morreu uma figura lendária que revolucionou a literatura persa do século XX. Deixa uma obra-prima, Savushun / ”Requiem”. Até o regime islâmico que ela criticou a homenageou. (Ler mais | Read more…)

Aos 27 anos, Simin Daneshvar publicou a sua primeira colectânea de contos. Chamou-lhe Atash-e Khamush / “Extinguished Fire”. Foi também em 1948 que começou a ganhar notoriedade como tradutora de inglês para persa, dando a conhecer aos compatriotas Anton Chekhov, George Bernard Shaw, Alan Paton, Nathaniel Hawthorne e outros. (Na foto, a escritora em 2007)
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Sabia que nós, as aves migratórias, continuaríamos a voar para o infinito, com raios de luar trespassando-nos as asas para irem tocar as penas do nosso peito *
A grandeza de Simin Daneshvar (1922-2012) está no tributo que a televisão estatal em Teerão prestou à autora da primeira antologia de contos (Atash-e Khamush / “Extinguished Fire”, 1948) e do primeiro romance (Savushun / ”Requiem”, 1969) alguma vez escritos por uma mulher no Irão.
No sábado [17 de Março de 2012], dia em que foi anunciada a sua morte, o site da Press TV homenageou “a pioneira entre as escritoras de ficção persa”, que nunca temeu abordar nos seus livros o modo como a Revolução Islâmica de 1979 afectou as várias classes sociais do país, em particular os intelectuais.
Morreu “serenamente”, na sua casa em Teerão, a 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, em consequência de uma gripe, segundo familiares e amigos. As filhas estavam na rua, a protestar contra a repressão interna e a ameaça externa de uma guerra contra o Irão.
Entre os romances mais críticos e que, surpreendentemente, a Press TV não se inibiu de enunciar, estão a antologia Whom Should I Greet? (1980) e a trilogia Island of Bewilderment, The Dazed Camel Driver e The Mountain of Bewilderment (este último volume ainda não publicado).
Em Ask the Migrating Birds (“Pergunta às aves migratórias”, 1997), um conto sobre a vida e morte de uma rapariga na República Islâmica, e incluído numa outra antologia com o mesmo nome, compôs Simin Daneshvar:
Estávamos a ordenar-nos para seguirmos para as aulas, depois das orações. A reitora agarrou-me o braço e retirou-me da fila. Ficámos as duas à frente das outras. A reitora tirou-me o lenço da cabeça. Primeiro cortou-me o cabelo ao meio com uma tesoura. Furiosamente, sem mais nem menos. A minha cabeça devia parecer o continente africano, ou então apresentava a forma do meu país. As zonas peladas eram os desertos.

Simin Daneshvar nasceu na cidade de Shiraz, berço dos grandes poetas persas Hafez e Sa’adi. Foi a a primeira directora da Associação de Escritores Iranianos
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Nascida em 28 de Abril 1921 em Shiraz, berço de dois venerados poetas persas, Hafez e Sa’adi, e o cenário de Savushun / ”Requiem”, a sua obra-prima traduzida em 17 línguas (na qual narra a história da ocupação do Irão pelos Aliados durante a II Guerra Mundial), a primeira directora da Associação de Escritores Iranianos descendia de uma importante família daquela cidade.
O pai, Mohammad Ali Daneshvar, era médico e a mãe, Qamar al-Saltaneh Hekmat, pintora e reitora na faculdade de artes.
Aos 27 anos, Simin Daneshvar publicou a sua primeira colectânea de contos. Chamou-lhe Atash-e Khamush / “Extinguished Fire”. Foi também em 1948 que começou a ganhar notoriedade como tradutora de inglês para persa, dando a conhecer aos compatriotas Anton Chekhov, George Bernard Shaw, Alan Paton, Nathaniel Hawthorne e outros.
O ano de 1950 foi marcante para esta contadora de histórias. Obteve o seu PhD, com uma tese sobre A Beleza na Literatura Persa, na Universidade de Teerão (ao mesmo tempo que trabalhava na Rádio Teerão para sustentar a família, após a morte do pai).
Casou-se com Jalal Al-e-Ahmad, um dos mais brilhantes escritores iranianos, militante de esquerda e crítico social. E foi para os Estados Unidos completar um pós-doutoramento na Universidade de Stanford (Califórnia), com uma bolsa Fullbright.
Em 1959, estava de regresso ao Irão para dar aulas de História da Arte e “sair da sombra do marido”, dez anos depois, com a monumental saga familiar Savushun / ”Requiem”.
Um livro que “revolucionou a literatura iraniana e ajudou a mudar o modo como os iranianos se vêem a si próprios, de um povo derrotado a um povo independente e com auto-estima”, elogiou, no New York Times, Stephen Kinzer, biógrafo do nacionalista Mohamed Mossadegh (derrubado pela CIA em 1952).

Savushun / ”Requiem”, a obra-prima de Simin, é um livro que “revolucionou a literatura iraniana e ajudou a mudar o modo como os iranianos se vêem a si próprios, de um povo derrotado a um povo independente e com auto-estima”
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O Xá Mohammad Reza Pahlavi considerava-a “potencialmente perigosa” e impediu a sua admissão plena nos quadros da Universidade de Teerão, anotou Kinzer. Só em 1980, porém, um ano após a queda da monarquia, ela aceitou a reforma da vida académica, sem abandonar o trabalho literário.
Num obituário publicado no site da estação televisiva Al-Jazeera, Hamid Dabashi, professor de Estudos Iranianos e Literatura Comparada na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, afirma que Simin Daneshvar “foi crucial para a ascensão da literatura persa”. E cita uma história que ela própria contava, de um jovem que um dia foi de Teerão até à sua casa em Shiraz.
O pai encorajou-a a levá-lo a um café nas redondezas para lhe dar a conhecer um herói local, Dash Akol. O jovem de Teerão, refere Dabashi, foi “o pai fundador da ficção persa e ‘Dash Akol’ tornou-se no protagonista de uma das suas maiores obras literárias”.
Acrescenta o autor de Masters and Masterpieces of Iranian Cinema (2007): “Ela estava lá quando se faziam lendas – e ela tornou-se uma delas.”
Embora Simin Daneshvar tenha vivido numa “sociedade profundamente patriarcal e intelectualmente egocêntrica”, observou Dabashi, ela “emergiu, graças ao mérito pessoal, como uma figura luminária da cena literária persa, quando um país inteiro estava enfeitiçado pelo seu marido. Sobreviveu-lhe 40 anos e a ele sobreviverá por uma eternidade.”
*Do conto ‘Ask the Migrating Birds’ (“Pergunta às aves migratórias”), incluído na antologia “Strange Times My Dear”, traduzida para português sob o título “Um Bom escritor é um escritor morto”(Ed. Nova Vega, 2009)

Simin Daneshvar e o marido, Jalal Al-e Ahmad, um dos mais brilhantes escritores iranianos, militante de esquerda e crítico social, numa foto, possivelmente, do início dos anos 1960
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Este artigo, aqui na íntegra, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO, em 20 de Março de 2012 | This article, here in the expanded version, was originally published in the Portuguese daily newspaper PÚBLICO, on March 20, 2012.