Eles votam em Cristo, não em Mitt Romney

O republicano que aspirava tornar-se, oficialmente, o adversário de Barack Obama nas eleições presidenciais americanas [em 2012] é membro e financiador da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Em Lisboa, os elders Perkins, Phillips, Rodrigues e Wilder garantem desconhecer o programa do ex-missionário que se tornou milionário. Apenas sabem de cor a Bíblia e o Livro de Mórmon. Se lhe baterem à porta, não lhes ofereça chá nem café. (Ler mais | Read more…)

Inseparável dos missionários SUD, O Livro de Mórmon é apresentado oficialmente como “a tradução de placas de ouro contendo a história de um antigo povo religioso”, que Joseph Smith, o fundador, “encontrou e mandou publicar, em 1830, sob o nome do profeta que o compilou
© Nuno Ferreira Santos

Com uma chapa preta ao peito que o identifica como Elder Wilder, o rapaz de 20 anos, natural do Utah, contrai o sorriso até então reluzente, compõe a gravata e hesita quando inquirido sobre se votaria no republicano Mitt Romney para Presidente da América.

De súbito, ganha coragem e clarifica: “Não o escolheria só por ser mórmon, porque o mais importante são os valores – além disso, não tenho seguido a campanha eleitoral, porque não vemos tv.”

Não ver televisão é um dos requisitos para a missão de 24 meses dos rapazes missionários (as raparigas cumprem 18) da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (SUD). Também só podem enviar um e-mail por semana à família, e apenas têm direito a fazer dois telefonemas por ano.

Com fácil acesso à Internet pelas ruas que calcorreiam diariamente, eles até podem ser tentados a quebrar as regras, mas Wilder e os três companheiros da “área geográfica de Sacavém” garantem que “evitam o pecado”.

É por isso que os Elders – termo que significa “ancião” ou “sábio e não é traduzido, em nenhum país, para manter o sentido bíblico – andam sempre aos pares. Outra razão é a “necessidade de ter uma testemunha” na difusão das principais Escrituras, Bíblia e O Livro de Mórmon (que contém registos de profetas antigos).

Os Elders também se concentram em cativar apenas adultos, encaminhando “as mulheres sem chefe de família” para as Sisters ou “irmãs” – que, tal como os rapazes, devem manter-se castos até ao matrimónio.

Só podem namorar após a missão, e enquanto esta durar vigora o conselho: “Mantém os olhos abertos mas o coração fechado”. Os Elders são, no entanto, encorajados a desposarem as “irmãs”, porque “estatísticas mostram que serão mais felizes” se escolherem cônjuges que partilhem a fé.

O casamento, “para a eternidade, não apenas até que a morte os separe”, e famílias numerosas, com muitos filhos e não com muitas mulheres (a poligamia foi abolida em 1890), são pilares deste movimento religioso fundado nos EUA, em 1820, por Joseph Smith, que diz ter visto Deus e Jesus. Esta denominação religiosa conta, actualmente, com 14 milhões de membros em todos os continentes. 

Em círculo, a partir da esquerda: o inglês Phillips, o dinamarquês Perkins, o brasileiro-americano Rodrigues, e Wilder, natural do Utah (o estado onde a Igreja SUD tem a sua “sede”, em Salt Lake City). Nas lapelas de casacos “sóbrios para não chamar a atenção”, uma chapa negra identifica-os como Elders
© Nuno Ferreira Santos

Num sábado à tarde, quando se encontraram connosco numa moradia alugada que serve de capela (o templo ainda há-de ser construído) entre a Rotunda do Relógio e o Areeiro, em Lisboa, não foi apenas Wilder, olhos de um azul intenso, quem aparentou desagrado com a pergunta sobre Romney.

Os Elders Rodrigues, brasileiro-americano de 20 anos; Perkins, dinamarquês de 22; e Phillips, inglês de 20, todos impecáveis nos seus fatos “sóbrios para não [sermos] o centro da atenção”, tentaram igualmente desfazer a percepção de que o antigo governador do Massachusetts possa ser um porta-voz da Igreja a que todos pertencem; um ónus e não mais-valia.

Tal como Wilder, Rodrigues, Perkins e Phillips, também Romney foi missionário. Tinha 21 anos quando o enviaram para França. Chegou a Paris, vindo de Bordéus, na Primavera de 1968, semanas antes da revolta de Maio.

Vivia numa mansão de luxo, mas não terá sido fácil pregar uma doutrina que interdita, por exemplo, o consumo de chá e café, num período revolucionário em que “era proibido proibir”.

Registou apenas duas conversões. Isso é irrelevante, explica Elder Philips: “Não importa quantas pessoas trazemos, só queremos ajudar as que aceitam seguir o exemplo de Cristo. Não procuramos convencer ninguém a mudar de religião; fazemos um convite a que mudem de hábitos. Interessa-nos apenas mostrar as bênçãos que recebemos.”

Um anel com a inscrição CTR – Choose The Right (“Escolhe a Tua Rota”) – é usado pelos Elders como um dos símbolos da sua fé
© Nuno Ferreira Santos

Phillips não se alonga sobre que bênçãos que colheu. “É o meu relacionamento pessoal com Deus, mas noto diferença na minha vida.” Wilder limita-se a dizer que deixou de ser “orgulhoso”. Rodrigues exalta “a união e felicidade” da sua família. Perkins anuiu ser difícil enumerar “as graças” recebidas.

Nos esforços para atraírem novos membros para a Igreja SUD – antes de abordarem alguém pedem “um sinal divino” que lhes indique “quem precisa de auxílio” –, os quatro Elders, têm histórias de rejeição, mas não muitas, asseguram.

“O pior que nos aconteceu foi levar com a porta na cara”, ironiza Wilder. E o melhor? “Foi entrar na Quinta do Mocho, onde temos muitos amigos, e conseguir que um traficante deixasse de vender e consumir drogas.”

“Sinceramente, se eu estivesse agora nos EUA, não saberia em quem votar”, confessa o extrovertido Rodrigues. “Cristo seria o nosso candidato”, sublinha Wilder, o altivo rapaz do Utah, onde os “santos” têm a sua sede, em Salt Lake City. Os restantes Elders fitam-no em silêncio, todos acenando com a cabeça, em sinal de concordância.

Mesmo que Romney tivesse sido eleito para a Casa Branca e seguisse políticas contrárias à sua crença, em nada prejudicaria os “santos”, vinca o antigo missionário Dinis Adriano, responsável pelas Relações Públicas em Portugal – o país que tem a quinta maior comunidade SUD da Europa (de 30 mil a 39 mil), depois da Inglaterra, Alemanha e Espanha.

“Ele não é representante da Igreja – há mórmones entre republicanos e democratas. Digam mal ou bem, o mais importante é que falem de nós.”

Na Igreja SUD há uma hierarquia – mas não um clero remunerado, explica Dinis Adriano (na foto), responsável pelas Relações Públicas em Portugal
© Nuno Ferreira Santos

Sobre a actual polémica envolvendo baptismos póstumos de vítimas do Holocausto – designadamente dos pais do célebre caçador de nazis Simon Wiesenthal, violando um pacto firmado em 1995 com os judeus ­–, mas também da mãe de Obama ou de Elvis Presley, o antigo missionário Adriano é veloz no desagravo.

“A Igreja já pediu desculpas publicamente. Todas as entradas na nossa base de dados foram anuladas, e quem voltar a incluir nomes que não sejam os da sua família arrisca-se a sanções disciplinares. Se não se arrepender, pode ser excomungado.”

Adriano valida os baptismos “por procuração”, em que, tal como os dos vivos, membros da Igreja são imersos em água em nome dos mortos, para “expiar os pecados e os aproximar do Pai Celestial”. Ele acredita que “também numa outra vida há livre arbítrio – os defuntos podem recusar esta oferta da Igreja.”

Na capela onde se juntaram, com vários aposentos decorados com quadros de cenas bíblicas mas sem qualquer imagem na Sala Sacramental (“porque acreditamos num Cristo vivo”), os Elders de Sacavém preferem falar deles mais do que de Romney.

Desde miúdo que o franzino Wilder quer ser nutricionista; o mais gordinho Phillips está determinado a ser realizador de cinema; Rodrigues alimenta o sonho de seguir um curso de Neurociências na Brigham Young University (BYU), propriedade da Igreja, em Provo-Utah; Perkins pretende formar-se em Economia. 

Solas gastas são sinal dos muitos quilómetros que os Elders percorrem por dia. Eles acordam por volta das 6/7 da manhã e deitam-se às 23h00, depois de completarem as tarefas domésticas e as obrigações religiosas
© Nuno Ferreira Santos

Estará Rodrigues preparado para o momento em que Ciência venha a pôr em causa a sua fé? “Acho que sim, mas não penso nisso”, responde, evasivo. E Perkins, aspira a ser um CEO como Romney? “Talvez, porque os negócios sempre me interessaram”, balbucia timidamente, num português quase fluente, com treino linguístico prévio de 9 semanas e outras 2 de prática no terreno.

Para a Igreja SUD, não se aplica a sentença bíblica “é mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico no reino dos céus”.

Perkins elucida: “Não é o dinheiro que nos impede de chegar ao céu, mas sim colocar o dinheiro à frente de Deus. Buscamos a prosperidade. Se vivemos agora uma vida confortável, também a teremos no céu.” Phillips afiança: “Se você tem, você dá.” Dinis Adriano acrescenta: “Claro que um rico não entrará no reino dos céus se o dinheiro for o seu deus.”

Não se estranhe, pois, quando Mitt Romney se mostra orgulhoso da sua fortuna calculada em 250 milhões de dólares – 2 milhões dos quais doados anualmente à Igreja SUD. O contributo financeiro, ou dízimo, é uma obrigação dos mórmones, chamados a oferecer a décima parte dos ganhos anuais, “para ajudar a edificar o reino de Deus na Terra”.

Maria José perdeu “muitos amigos” por ser mórmon

Maria José Gonçalves na capela mórmon em Lisboa; atrás de si está uma imagem com grande significado a SUD. O pintor terá mostrado a obra ao fundador da Igreja, Joseph Smith, que, depois de “visões de Deus e de Jesus”, lhe disse: “Não estás longe do rosto verdadeiro”
@ Nuno Ferreira Santos

A mãe obrigava-a a levantar-se cedo para ir à missa, mas quando leu o Livro de Mórmon a católica Maria José Gonçalves sentiu que a sua Igreja era outra. Hoje filhas, genros e netos são todos “Santos dos Últimos Dias”.

A Sociedade do Socorro é uma das organizações femininas mais antigas do mundo, criada em 1842 por Joseph Smith, o fundador da Igreja dos mórmones, e Maria José Gonçalves é presidente de um dos seus ramos.

Na sala onde se reúne com as companheiras de fé, na capela da Avenida Gago Coutinho, em Lisboa, a antiga telefonista que agora é também directora do Centro de História da Família dos Santos dos Últimos Dias, exulta ao relatar a sua conversão.

“Fui educada como católica”, conta. “A minha mãe obrigava-nos a acordar muito cedo para ir à missa. Afastei-me porque saí de casa muito cedo. Fui para Angola em 1969, e só em 1975 voltei a Portugal, quando o meu marido adoeceu.”

“Ele era ateu, mas quando precisou de fazer um transplante renal, pediu a Deus mais dez anos de vida para ver as filhas criadas.”

“Uma das minhas cunhadas começou a falar-me na Igreja SUD, a que ela já pertencia. ‘És maluca’, disse-lhe, mas numa ocasião aceitei ir a uma das actividades, a Festa da Primavera. Fiquei fascinada.”

“Além de orações, havia lanche – há sempre comida –, cânticos, hinos e baile. Umas missionárias perguntaram-me se podiam ir lá a casa. Concordei e a minha [filha] Gina foi a primeira a ser baptizada, a 2 de Fevereiro de 1986.”

No mês seguinte do mesmo ano, seguiram-se a própria Maria José (“senti que o Livro de Mórmon era mesmo verdadeiro’) e a outra filha. “Já o meu marido foi mais difícil”, admite. “Bebia álcool e café e fumava muito, três maços por dia, mas conseguiu encontrar vontade para abandonar os vícios”.

Foi baptizado em Maio de 1986. Morreu em 1993, após cumprir um sonho: “O de nos selarmos para toda a eternidade.” Para se casar num templo SUD, na Suíça, a mulher juntou “moedinhas de 20 escudos durante quase dois anos de muitos sacrifícios”.

A conversão de Maria José não incluiu apenas o baptismo mas também “a selagem para a eternidade” de pais, filhos e netos.

E porque ela acredita que até os mortos precisam de “expiar os pecados e serem salvos”, enviou para a Igreja SUD “cerca de mil e tal nomes” de antepassados mortos para serem também baptizados postumamente, por intermédio de voluntários que aceitam ser totalmente imersos em água, umas 10 ou 15 vezes cada um.

Esta é uma “ordenança”, a par do casamento e da selagem, que só pode ser efectuada nos templos (fechados ao domingo, totalmente interdito a estranhos “é o mais próximo que estamos de Deus e não podem ser profanados”, e sem qualquer ligação a redes de Internet por questões de segurança).

Sala de microfilmes no Centro de História da Família dos Santos dos Últimos Dias, dirigido por Maria José, ex-telefonista oriunda de uma família católica; o marido era ateu mas ela ajudou-o na conversão a mórmon antes de ele morrer
© Nuno Ferreira Santos

O baptismo das crianças só é possível a partir dos 8 anos – “a idade da responsabilidade”, mas os jovens dos 12 aos 18 já podem fazer baptismos póstumos. “A minha neta Andreia está ansiosa pelos 12 anos para ser baptizada” em nome de familiares falecidos, regozija-se Maria José. Nesta cerimónia, todos vão vestidos e calçados de branco, incluindo as solas dos sapatos, sem relógio e outros adornos, em sinal de pureza

Reformada do grupo Salvador Caetano, Maria José confessa que tentou, sem êxito, converter antigos colegas. “Quantas vezes não falei com o Martinho, o Castilho e a Helena Oliveira, porque gostava de me encontrar com eles no reino celestial”.

Eles ouviam-na sempre, mas nunca foram ter com ela aos locais para onde ela os convidava. “E os malandros do Benfica e do Sporting que, quando o meu FC Porto ganhava, diziam palavrões só para me irritarem? Não me esqueço do que me disse o Carlos Santos: ‘Mulher séria não tem ouvidos’ ”, lembra divertida. Linguagem obscena é proibida entre os mórmones.

“Também havia momentos em que, no meu gabinete, enquanto eu lia as Escrituras ou fazia crochet, se aproximavam, de mansinho, o Anselmo e o Vítor Ribeiro só para expelirem o fumo do cigarro para cima de mim – e eles sabiam que a minha religião proíbe o tabaco.” Em todo o caso, Maria José guarda desses tempos memórias felizes. Já fora do emprego, teve outros dissabores.

“Custou-me muito, mas perdi muitos amigos quando me converti”, lamenta. “Havia pessoas tão chegadas, como a madrinha da minha Gina, que depois se afastaram – nem sequer foram ao funeral do meu marido, e isso entristeceu-me.” Mas não se arrepende: “Ganhei muitos irmãos e irmãs de fé”.

Tem orgulho neles e realça o exemplo daqueles que “vendem casas e móveis”, para se poderem casar num templo SUD no estrangeiro, uma vez que em Portugal ainda não existe nenhum, embora já haja licença desde 2010 para o construir.

Maria José exibe uma espécie de cartão plastificado que tem de ser revalidado de 2 em 2 anos, depois de duas entrevistas, primeiro com o “presidente de ramo ou bispo” e depois com o “presidente da estaca” (diocese).

Qual exame de consciência, ela tem de confirmar que “guarda os mandamentos, cumpre a lei da castidade, paga o dízimo, aceita as responsabilidades e os líderes.”

Maria José (dir.) com a filha Gina – a primeira a converter-se –, o genro e duas netas, antes de um dos encontros de famílias organizado pela SUD em Lisboa
© Nuno Ferreira Santos

Às quartas, quintas e sextas-feiras à tarde, a “jóinha”, como os colegas a tratavam, passa os dias na sala de microfilmes a apoiar os que vão consultar (gratuitamente) cópias dos registos familiares que integram a maior base de dados genealógica do mundo – guardada debaixo de uma montanha rochosa, “à prova de tudo”, nos EUA.

Ela domina bem as máquinas e até decifra caligrafias ilegíveis do Centro de História da Família a que preside, e onde podem ser consultados documentos até ao ano de 1500. Todo este trabalho minucioso de arquivo, aprovado pelo Ministério português da Cultura, foi levado a cabo por voluntários mórmones.

Aos sábados, Maria José não perde as múltiplas actividades da capela de Sacavém, a sua área, e aos domingos participa activamente nas três horas de celebração religiosa e festividades, que incluem preparar e distribuir refeições na sua casa ou na cozinha comunitária.

Outro dia bom é segunda-feira, quando a família, seguindo a tradição mórmon de “reforçar a união e as crenças de pais e filhos para serem mais felizes”, se junta num encontro de uma hora, para ler o Evangelho mas também para brincar com as crianças (“não somos muito de sermões”).

Nesta reunião, a música (“um deleite para o coração, porque acreditamos que estamos a orar a Deus”) está sempre presente.” Será, talvez, por isso que o Utah, onde a Igreja SUD tem a sede, em Salt Lake City, é o estado norte-americano onde se vendem mais pianos e harpas.

Uma sondagem Pew Forum on Religion in Public Life concluiu que uma percentagem mais elevada de mórmones votou em George W. Bush em 2004 do que em Mitt Romney (na foto) em 2012. Mais: embora 78% dos fiéis tenham votado neste político republicano que partilha a sua fé, mais de 20% votaram em Barack Obama
© Charles Krupa | AP

Estes dois artigos, agora revistos e actualizados, foram publicados no jornal PÚBLICO em 6 de Março de 2012 | These two articles, now revised and updated, were published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on March 6, 2012

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