Presidente e Supremo Líder confrontam-se em legislativas que, não mudando a política interna e externa, são um teste à legitimidade do regime. (Ler mais | Read more…)

O Supremo Líder, Ayatollah Ali Khamenei, protegeu Ahmadinejad, mas depois foi retirando gradualmente o seu apoio ao presidente que contribuiu para maior isolamento do Irão
© Radio Free Europe
Os documentos oficiais iranianos começam, invariavelmente, com a frase “Em nome de Deus, o misericordioso e compassivo”, mas estas não parecem ser virtudes de Seyyed Ali Khamenei. O Supremo Líder da República Islâmica não perdoou Mahmoud Ahmadinejad pela ingratidão com que retribuiu a protecção oferecida após as controversas eleições presidenciais de 2009 e hoje tenta vingar-se.
Enfrentando a maior crise política das últimas três décadas, desde a queda da monarquia, Khamenei colocara todas as suas forças ao dispor de Ahmadinejad, para o apoiar mas, sobretudo, salvar o regime que uma parte da oposição queria reformar e outra derrubar.
Agora [em 2012], com 48 milhões de iranianos chamados a escolher (entre 3444 candidatos) os 290 deputados do novo Majlis, o ayatollah e o ex-guarda da revolução que nunca foi mullah estão em campos opostos.
É um confronto entre grupos de “linha dura” que o “movimento verde”, silenciado e violentamente reprimido, optou por boicotar. A opinião unânime de três analistas que ccontactámos, via e-mail, é a de que triunfarão os fiéis do vali-e faqhi, guia político e espiritual.
“O Irão passou a ter um sistema de partido único: o partido de Khamenei”, diz-nos Karim Sadjadpour, investigador do Carnegie Endowment for International Peace (EUA), onde ingressou depois de ter sido o principal analista para questões iranianas no International Crisis Group em Teerão e Washington. “A maior qualificação para os aspirantes a membros do Parlamento é a lealdade total ao Supremo Líder”.
Autor da biografia Reading Khamenei: The World View of Iran”s Most Powerful Leader, Sadjadpour salienta que “Khamenei gosta de dividir e reinar e, para isso, equilibra habitualmente diferentes facções umas contra as outras, sendo que por essa razão é agora do seu interesse enfraquecer a facção de Ahmadinejad, embora mantendo-a ligada a um ventilador.”

“O afastamento de Khamenei tem a ver, em particular, com o estilo (abrasivo, conflituoso) e as ambições” de Ahmadinejad, explica o analista iraniano Rouzbeh Parsi
© Behrouz Mehri | AFP | Getty Images
O Presidente “tem demonstrado uma capacidade única de perder amigos e afastar pessoas”, constata o analista. “Ao ser insubordinado e intransigente, ele incomodou os escalões mais altos.”
“Estas eleições são importantes porque nos dirão algo sobre a capacidade de as diferentes facções conservadoras trabalharem em conjunto (ou não – o mais provável), mas também porque serão uma espécie de ensaio para as presidenciais em 2012”, afirma Rouzbeh Parsi, especialista em Irão, Iraque e Golfo Pérsico no European Union Institute for Security Studies (EUISS, Paris), think tank que foi [2007-2012] dirigido pelo português Álvaro de Vasconcelos.
Ahmadinejad precisa de dominar o Majlis (Parlamento)para escolher um candidato presidencial que o mantenha ao leme, mas Khamenei fará tudo para não perder essa prerrogativa.
Não é muito diferente a opinião de Hooman Majd, neto de um ayatollah (Seyyed Mohammad Kazem Assar), escritor nascido em Teerão mas que reside nos Estados Unidos, onde é colunista de vários media, da New Yorker ao Daily Beast, e “tradutor temporário” de Ahmadinejad quando este discursou, em 2008, perante a Assembleia-Geral da ONU, em Nova Iorque.
“Ainda que sem candidatos liberais ou reformistas, estas eleições não deixam de ser relevantes para a legitimidade da “democracia islâmica”. Independentemente de quem ganhe, ninguém mais se atreverá a desafiar o Supremo Líder”, frisa Majd.
Qual foi, afinal, o detonador da ruptura entre o mestre e o discípulo? “O afastamento de Khamenei tem a ver, em particular, com o estilo (abrasivo, conflituoso) e as ambições do Presidente”, explica Rouzbeh.
“Quando Ahmadinejad tentou demitir o ministro dos Serviços Secretos e nomear o seu próprio homem, pisou um risco e tornou-se ameaça potencial ao equilíbrio frágil de um sistema que Khamenei tentara restabelecer depois de 2009. O Ministério dos Serviços Secretos é um posto sensível cujo titular responde directamente perante Khamenei, não perante o Presidente.”

Ahmadinejad “tem demonstrado uma capacidade única de perder amigos e afastar pessoas: ao ser insubordinado e intransigente, ele incomodou os escalões mais altos”, comenta Karim Sadjadpour, do Carnegie Endowment for International Peace
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Majd, autor de livros como The Ayatollah Begs to Differ e The Ayatollahs’ Democracy: An Iranian Challenge, aponta este e outros motivos para a discórdia. “O principal terá sido o facto de o Presidente, logo imediatamente após a sua reeleição, ter nomeado Esfandiar Mashaei como 1.º vice-presidente contra as ordens de Khamenei. A linha dura, que despreza Mashaei [supostamente defensor de “menos Islão e mais nacionalismo”], ficou horrorizada.”
Em privado, o Supremo Líder exortou Ahmadinejad a recuar, mas este só cedeu depois de Khamenei divulgar uma carta exigindo que afastasse Mashaei. Ahmadinejad voltaria a desafiar Khamenei, ao nomear Mashaei seu chefe de gabinete e principal conselheiro.
Em 2011, afrontou de novo o Supremo Líder ao demitir o ministro dos Serviços Secretos, forçando mais uma vez Khamenei a “envolver-se publicamente em questões comezinhas, o que ele odeia, para que [Gholam-Hossein Mohseni-Eje’i] fosse readmitido”.
No entender de Hooman Majd, o (anterior) Presidente iraniano sabia que Khamenei não poderia dispensá-lo depois de o ter amparado face a gigantescos protestos populares em 2009 e quis tirar partido desse apoio.
Todavia, ainda que o Supremo Líder “não possa (sem se embaraçar a si próprio e ao regime) livrar-se de Ahmadinejad antes de este terminar o segundo mandato de quatro anos, tentará reduzi-lo a uma figura insignificante, basicamente o que tem feito desde Abril de 2011.”
Quanto ao boicote da oposição reformista, Rouzbeh Parsi admite que “terá consequências”, mas realça que, provavelmente, será o impasse político a gerar maior apatia do eleitorado.
“Se a afluência às urnas for espectacularmente baixa, isso vai abalar a legitimidade já enfraquecida do regime, mas este ficará satisfeito com uma taxa de participação de apenas 40%”, considera o investigador do EUISS.
Karim Sadjadpour, do Carnegie Endowment, sublinha que os iranianos “já não se entusiasmam com eleições parlamentares – são cada vez menos os que acreditam ser possível mudar o seu destino pelo voto”.
Hooman Majd, que se desloca frequentemente ao Irão, confirma que “não há um grande entusiasmo” e que “um largo segmento da classe média” não participará.
“Não é fácil prever se o voto rural e não urbano será suficiente para chegar aos 60 por cento – o patamar ambicionado pelo regime”, observa.
À pergunta sobre se a coacção internacional pode influir no desfecho eleitoral, Majd é veemente: “Não, de todo! No Irão, toda a gente reconhece que a segurança nacional e a política nuclear estão nas mãos do Supremo Líder e, como o programa nuclear se mantém muito popular, a pressão estrangeira não afectará os resultados.”
Rouzbeh Parsi anota que, embora as sanções estejam a abalar seriamente a economia e a população iranianas, “só afectarão directamente os resultados se for possível determinar duas coisas: a) Quem é que os mais prejudicados responsabilizam? b) Onde podem eles encontrar uma alternativa em quem votar?”
“A política de sanções/negociações é altamente problemática por várias razões, mas agora sofre de um problema de credibilidade porque, sendo as sanções mais rigorosas, talvez sejam vistas no Irão como um esquema de mudança de regime”, acentua Parsi, criticando a “posição maximalista” de Israel de tentar impedir todo o enriquecimento de urânio em solo iraniano, “para preservar o seu monopólio de armas nucleares.”
“Não se pode forçar a República Islâmica a negociar o fim do seu programa nuclear e, ao mesmo tempo, lamentar que o regime ainda não tenha sido derrubado”, avisa Parsi.
“Para possibilitar um compromisso, a realidade presente tem de ser reconhecida e aceite; de outro modo não há razão para a República Islâmica se sentar à mesa das negociações e abdicar do seu trunfo mais importante.”
Karim Sadjadpour, que sempre repete ser o regime “homicida” mas não “suicida”, conclui: “Mais do que as eleições, o que vai ser determinante no comportamento nuclear iraniano é o preço do petróleo – quando os preços sobem todos são de linha dura; se os preços descem, os duros podem tornar-se moderados.”

“Ahmadinejad afrontou o Supremo Líder ao demitir o ministro dos Serviços Secretos, forçando Khamenei a “envolver-se publicamente em questões comezinhas, o que ele odeia”, diz Hooman Majd, escritor e analista, neto de um ayatollah
© Ben Ferrari

“Khamenei gosta de dividir e reinar e, para isso, equilibra habitualmente diferentes facções umas contra as outras”, diz Karim Sadjadpour, investigador do Carnegie Endowment for International Peace

“Mahmoud Ahmadinejad tornou-se uma ameaça potencial ao equilíbrio frágil de um sistema que Khamenei tentara restabelecer” diz Rouzbeh Parsi, que foi investigador no European Union Institute for Security Studies
© JOHAN BÄVMAN
Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 2 de Março de 2012 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on March 2, 2012