O ditador egípcio resistiu até ao limite ao que o académico libanês Fawas Gerges descreveu como “o momento Berlim do mundo árabe”. Mas a maré humana nas ruas do país e as pressões externas só lhe deixaram uma de duas alternativas: abandonar o poder com uma réstia de dignidade ou na ignomínia. (Ler mais | Read more…)

Um cartaz com a cara de Hosni Mubarak – o homem cujo poder era frequentemente comparado aos dos faraós – durante um protesto, na Praça Tahrir, no Cairo, em 1 de Maio de 2011, em que milhares de trabalhadores exigiram o seu julgamento
© Khaled Desouki | pri.org
Hosni Mubarak foi falar às crianças de uma escola primária e, depois do seu discurso, ofereceu-se para um período de perguntas. Um rapazinho chamado Ramy levantou a mão e o Presidente egípcio interpelou-o: O que queres saber?
Ramy disse: Tenho quatro perguntas.
– Primeira: por que é que o senhor é Presidente há 29 anos?
– Segunda: Por que é que nunca nomeou um vice-presidente?
– Terceira: Por que é que os seus dois filhos, Gamal e Alaa, controlam a economia e política do país?
– Quarta: Por que é que o Egipto é um Estado miseravelmente pobre e o senhor não faz nada?
Nesse preciso momento, a campainha tocou e Mubarak informou as crianças que voltaria depois do intervalo. No regresso, retomou a conversa: Ok, em que ponto estávamos? Ah, já sei… na sessão de perguntas. Alguém quer perguntar alguma coisa?
Um outro rapazinho levantou a mão. Mubarak apontou para ele e pediu-lhe que se identificasse.
– Eu sou Tamer, respondeu o menino.
– E qual é a tua pergunta, Tamer?
– Eu tenho seis perguntas:
– Primeira: por que é que o senhor é Presidente há 29 anos?
– Segunda: Por que é que nunca nomeou um vice-presidente?
– Terceira: Por que é que os seus dois filhos, Gamal e Alaa, controlam a economia e política do país?
– Quarta: Por que é que o Egipto é um Estado miseravelmente pobre e o senhor não faz nada?
– Quinta: Por que é que a campainha tocou para intervalo 20 minutos antes do que é habitual?
– Sexta: O que é que o senhor fez a Ramy?
Esta velha anedota, sussurrada entre portas e relembrada por Issandr El Amrani no seu blogue The Arabist, exprime bem algumas das razões que levaram os egípcios a perder o medo e a reclamar, não em segredo mas nas ruas, o fim de um regime ditatorial em vigor há quase três décadas.
Foi a 14 de Outubro de 1981 que Hosni Mubarak, vice-presidente de Anwar el-Sadat (desde 1975), sucedeu ao Raïs (Presidente), depois de escapar por um triz às balas que, no dia 6, mataram o seu predecessor durante um desfile militar, a que ambos assistiam, lado a lado, no Cairo.
O desaparecimento do homem que pagou com a vida “a traição” do primeiro tratado de paz israelo-árabe, levantou dúvidas, sobretudo entre a comunidade internacional, sobre se o Egipto ficaria à mercê da Irmandade Muçulmana – de cujas fileiras emergiu o assassino –, já que a liderança do país iria ser assumida por um homem desconhecido apesar da sua imparável ascensão militar.

Hosni Mubarak aprendeu a pilotar bombardeiros na antiga União Soviética. Em 1967, foi promovido a chefe de Estado-Maior da Força Aérea. Em 1972, já era vice-ministro da Defesa. Em 1973, atribuíram-lhe a patente de marechal
© rferl.org
Um dos cinco filhos de um funcionário do Ministério da Justiça, Muhammad Hosni Sayyid Mubarak nasceu a 4 de Maio de 1928 em Kafr-el-Meselha, aldeia no delta do rio Nilo. Estudou, primeiro, na Academia Nacional Militar em 1949 e formou-se, depois, como piloto de caça e instrutor de voo na Academia da Força Aérea.
Entre 1959 e 1961, foi para antiga União Soviética aprender a pilotar bombardeiros. Em 1966, no retorno à pátria, assumiu o comando de duas bases aéreas e, no ano seguinte, foi promovido a chefe de Estado-Maior da Força Aérea. Em 1972, já era vice-ministro da Defesa e, em 1973, atribuíram-lhe a patente de marechal.
Foi a recompensa pela participação na Guerra de Outubro ou de Yom Kippur – vista pelos árabes como “a desforra” pela humilhante derrota que Israel lhes desferiu na Guerra dos Seis Dias, de 1967, durante a qual o Egipto perdeu, em seis horas, a península do Sinai.
As credenciais de Mubarak entre os militares eram tão imaculadas que Sadat, o sucessor do pan-arabista Gamal Abdel Nasser, não hesitou em nomeá-lo seu “número dois”, conferindo-lhe a responsabilidade de várias e importantes missões de política interna e externa.
Com a morte do visionário que emocionou os israelitas ao visitar Jerusalém em 1977, Mubarak foi catapultado para a chefia do Estado, superando a longevidade do reinado de Muhammad Ali Paxá, o otomano cuja dinastia se manteve no poder até à revolução de 1952 que derrubou o monarquia.

1981: Hosni Mubarak e Anwar el-Sadat, de quem foi vice-presidente
© billfoley.com
O que distingue Mubarak dos defuntos Nasser, sempre idolatrado pelas massas árabes, e Sadat, ainda malquerido? Responde-nos, por e-mail, Adel Iskandar, professor de Media do Médio Oriente na Universidade de Georgetown (EUA), e colunista do jornal egípcio Al-Masry Al-Youm: “Nasser era um líder demagogo e carismático que mobilizava os impulsos revolucionários do povo”; Sadat era um estadista controverso sem papas na língua que perdeu popularidade ao aproximar-se de Israel.”
“Mubarak é um chefe bastante diplomático, com aparência de benevolente, que diz uma coisa e faz outra – fala de solidariedade com os palestinianos mas colabora estreitamente com os israelitas; fala em apoiar os pobres mas isenta os ricos de impostos enquanto recusa aumentar o salário mínimo; critica a ingerência política externa mas apela ao investimento estrangeiro e à privatização de todos os sectores da economia.”
Sobre as razões que levaram Mubarak – detentor de todos os poderes (executivo, militar e judicial) – a manter o país sob lei marcial desde que subiu ao poder, Iskandar, académico britânico de origem egípcia e autor de vários livros, incluindo o primeiro grande estudo sobre o fenómeno Al Jazeera, esclarece:
-“O estado de emergência foi imposto sob o pretexto de proteger o país contra forças estrangeiras e sublevações internas. O medo de um qualquer governo de transição deixou Mubarak obcecado em eliminar toda a oposição, em particular a Irmandade Muçulmana.”
“Ele precisava de um mecanismo legal que lhe permitisse prender e perseguir qualquer pessoa sem ter de prestar contas”, adiantou “Em todas as situações, Mubarak ora exagerava ora demonizava grupos ou tendências de oposição para justificar a continuação das leis de emergência.”
“Qualquer incidente no Egipto era usado para renovar o estado de emergência – fosse um atentado terrorista, actos de sectarismo ou manifestações contra a guerra [no Iraque e em Gaza].”

Hosni Mubarak, já como vice-Presidente, com Menachem Begin (à esq.) e Anwar Sadat (ao centro), quando o Egipto assinou o primeiro tratado de paz israelo-árabe
© billfoley.com
A mão de ferro com que tem conduzido o país ajudou Mubarak a sobreviver – tentaram eliminá-lo pelo menos seis vezes e sempre escapou à morte –, mas também fez dele, como comprovam as gigantescas manifestações do Cairo a Alexandria, uma figura odiada pelos egípcios, incapazes de aceitar a abjecta pobreza a que foram condenados por uma elite, quase uma aristocracia, manchada pela corrupção e pelo nepotismo.
O sistema imposto por Mubarak impossibilitava uma alternativa ao domínio absoluto do seu Partido Nacional Democrático (PND). Qualquer tentativa de o desafiar – de forma violenta ou legal – era punida severamente.
Nos anos 1990, depois de uma série de ataques terroristas que visavam alvos nacionais e estrangeiros, não hesitou em destruir todas as plantações de cana-de-açúcar que serviam de refúgio aos extremistas do Gama’a al-Islamiyya (Grupo Islâmico), ordenando a execução e prisão de milhares de combatentes.
Em 2005, quando o popular político da oposição Ayman Nour, do partido El-Ghad (Amanhã), concorreu às primeiras presidenciais em que foram admitidos outros candidatos, também ele foi preso, durante três anos, sem culpa formada – e, no entanto, só obteve 7% dos votos, contra os 89 de Mubarak.
Libertaram-no após pressões dos EUA, mas à saída da cadeia espancaram-no violentamente, e os agressores nunca foram capturados. Nos protestos iniciados a 25 de Janeiro último, Nour voltou a ser agredido e a necessitar de internamento hospitalar.
A recusa em nomear um vice-presidente – só o fez no sábado, numa rara cedência aos protestos populares (que incluiu também a nomeação de um novo governo) – foi sempre olhada com desconfiança pela população, hostil a sucessões dinásticas desde a queda do rei Farouk e temerosa de que Mubarak estaria a preparar o filho mais velho, Gamal, ser o próximo Raïs.

Mubarak com Yasser Arafat da Palestina (em cima), Hussein da Jordânia e Saddam Hussein do Iraque (centro) e com Muammar Kadhafi da Líbia
© Reuters
No Cairo, especulava-se que teria sido a mulher, Suzanne, filha de um egípcio e de uma galesa, que o aconselhou a deixar o lugar vago para o varão. Toda a família ter-se-á refugiado em Londres, na semana passada.
Se no Egipto, Mubarak é uma figura odiada – muitos viam como uma obscenidade o corte de quilómetros de estradas quando ele saía do palácio como seu cortejo de limusines –, em Israel e nos Estados Unidos era até agora considerado um valioso aliado.
A América fornecia-lhe anualmente 60 milhões de dólares (um total de 28 mil milhões desde 1979), quase tanto quanto os 100 milhões anuais oferecidos aos israelitas, para “manter a estabilidade na região”.
Mubarak e Omar Suleiman [1936-2012], ex-chefe dos serviços secretos [que seria vice-presidente no período de transição], serviam de interlocutores do Hamas em negociações com os palestinianos e garantiam a aparência de normalização nas relações com Israel. [Suleiman morreu em 19 de Julho de 2012, de doença].
Os protestos incessantes, induzidos pela revolução que derrubou Ben Ali na Tunísia, deixaram israelitas e norte-americanos numa situação delicada. “Estão viciados em ditadores e não interiorizaram a necessidade de abrir um diálogo com forças até agora diabolizadas”, observou Steve Clemons, da New American Foundation.
Em Washington, Barack Obama e Hillary Clinton aumentaram a pressão sobre Mubarak, exortando ao fim da violência e a eleições “livres e justas”, não apenas uma “remodelação” do governo. Os seus apelos tiveram eco na Europa, com franceses, alemães e britânicos a insistirem que as nomeações de um vice-presidente e de um novo primeiro-ministro não são suficientes.
Na sexta-feira à noite [28 de Janeiro de 2011], quando apareceu perante as câmaras de televisão a garantir que nunca deixou de estar “ao lado dos pobres” e que sempre respeitou a “liberdade de expressão” dos cidadãos – paradoxalmente, no mesmo dia em que o Egipto se tornou no primeiro país do mundo a bloquear totalmente a Internet –, Hosni Mubarak parecia mais uma múmia do que um vigoroso faraó.

Mubarak com a mulher, Suzanne (centro), a nora Heidi Al Rasekh, o filho mais novo, Alaa, e o mais velho, Gamal – uma família riquíssima acusada de corrupção
© The Independent
Sem o seu uniforme militar (pormenor que muitos observadores notaram, porque o exército é visto como a força que definiria o desfecho da revolta), o octogenário Mubarak estava longe de ser o tipo saudável que nunca fumou nem bebeu, e que começava os dias às 6 da manhã, com exercícios no ginásio ou a praticar squash, deixando exaustos assessores e guarda-costas.
Recentemente, as suas frequentes ausências de cerimónias públicas alimentaram rumores de que estará muito doente, e que já era Gamal, um ex-banqueiro de 40 anos, quem governava o país.
A nomeação de Suleiman (também ele com saúde débil) para vice-presidente e de Ahmed Shafiq para primeiro-ministro, dois ex-militares, foi lida por alguns comentadores entrevistados pela Al Jazeera como um sinal de que Mubarak estará, ainda que relutante, a preparar a transição.
Deixe o poder de forma digna ou na ignomínia, qual será o legado de Mubarak? Poderia o antigo director da Agência Internacional de Energia Atómica, Mohamed ElBaradei ser uma alternativa? Se houver eleições, quais as forças mais bem posicionadas para vencer: as religiosas ou as seculares? [A Irmandade Muçulmana seria a grande vencedora de eleições legislativas e presidenciais.]
“O legado de Mubarak poderia ter sido salvo se ele não se tivesse recandidato em 2005”, comentou o académico egípcio Adel Iskandar. “Mas os últimos seis anos mostraram um líder irredutível, incapaz de compreender e muito longe das aspirações do seu povo. Isto deixou-o ainda menos tolerante para com os dissidentes.”
“Sair de cena no meio de uma gigantesca revolta popular equivale a ter caído completamente em desgraça. A História não olhará favoravelmente para o seu mandato de 29 anos e, sobretudo, para as últimas 72 horas em que testemunhámos uma brutalidade repugnante, a supressão de direitos políticos, a intolerância e o sequestro de toda a população.”
“ElBaradei é uma das várias alternativas viáveis” a Mubarak, acredita Iskandar. “Tem reputação e atrai largos segmentos da população egípcia, podendo ajudar o país na transição para uma melhor situação política. Sendo civil, homem do mundo, pluralista com uma visão secular, ElBaradei tem agido como porta-voz de muitas das reivindicações dos egípcios. Advoga mudanças constitucionais que permitirão exprimirem-se livremente e escolherem o seu destino.”

Da presidência para a prisão: Mubarak seria libertado em 2017 de um hospital militar onde esteve detido, depois de ilibado da responsabilidade pela morte de 900 egípcios durante a sublevação que o derrubou em 2011
© ibtimes.com
Sobre a Irmandade Muçulmana, Iskandar observou [quando deu esta entrevista, em Janeiro de 2011]: “É difícil avaliar a popularidade da organização, mas muito notam que está desligada da realidade desde [as legislativas de] 2005 quando obteve 88 lugares no Parlamento e muito pouco conquistou no terreno.”
“Os seus planos nada têm a ver com os anseios de uma grande parte dos egípcios”, frisou Iskandar. “Mas, obviamente, não é improvável que venha a desempenhar um papel significativo num governo futuro [e assim foi quando ganhou as eleições, legislativas e presidenciais, de 2011-2012, antes de ser afastada do poder pelo Exército].”
“Dadas as recentes tensões sectárias [envolvendo muçulmanos e cristãos coptas], muitos já concluíram que é muito mais importante manter a unidade do país do que seguir um partido religioso.”
Na revista Foreign Policy, Robert D. Kaplan, dirigindo-se aos que temem um destino para o Egipto igual ao do Irão, quando o Xá Mohammad Reza Pahlavi, aliado estratégico da América, foi derrubado em 1979 por uma revolução islâmica, lembrou: “Em nenhum destes países árabes [onde estão em curso protestos] existe um líder carismático radical que seja um ponto central de oposição, como o Ayatollah Khomeini era; nem as várias organizações islamistas no mundo árabe são tão teóricas e ideológicas no seu anti-americanismo como era a liderança religiosa xiita.”
“A Irmandade Muçulmana no Egipto funciona, em larga medida, como uma organização de auxílio à comunidade e poderá não tentar sequestrar a revolução, como aconteceu no Irão”, observou Kaplan.
“Além disso, o Presidente Hosni Mubarak nunca se identificou com os interesses norte-americanos tanto como o Xá. As diferenças entre o Egipto 2011 e o Irão 1978 [quando começaram os protestos que levaram à queda do imperador] são muito mais profundas do que as semelhanças”.
Num artigo publicado pelo jornal The Christian Science Monitor, o académico libanês Fawaz A. Gerges, professor de Política do Médio Oriente e Relações Internacionais na London School of Economics, resumiu assim o que se vive no Médio Oriente:
– “Este é o momento Berlim do mundo árabe. O muro autoritário caiu – e isso é verdade independentemente de Mubarak sobreviver ou não. Vai muito para além de Mubarak. A entrada em cena do Exército mostra bem o fracasso da Polícia em reprimir os manifestantes.”
“Os militares foram chamados e, possivelmente, vão preencher qualquer vazio de autoridade nas próximas semanas. Mubarak está profundamente ferido e a sangrar. Estamos a assistir ao início de uma nova era.”
No Facebook – onde a revolução contra Mubarak começou (Nasser arregimentou os egípcios contra a monarquia usando a rádio; Khomeini dirigiu a insurreição contra o Xá através de cassetes áudio enviadas clandestinamente do seu exílio em França para as mesquitas do Irão) –, alguém que via pela TV os protestos na Praça da Libertação deixou este post: “O faraó está à beira do sarcófago”.

© Los Angeles Times
Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 31 de Janeiro de 2011 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on January 31, 2011