“O povo de Israel confia em si – boa sorte!” Terá sido assim que Benjamin Netanyahu se despediu do chefe da Mossad no dia em que lhe deu luz verde para assassinar, no Dubai, o comprador de armas do Hamas. A missão cumpriu-se mas os agentes tiveram azar… expuseram identidades falsas. O embaraço não assusta o general que os egípcios elogiaram como “o único capaz de impedir o Irão de ter a bomba atómica”. (Ler mais | Read more…)

Um outsider olhado com desconfiança pela comunidade de espionagem, Meir Dagan quis mostrar aos adversários internos (200 agentes demitiram-se quando ele entrou) e aos inimigos externos que poderia ser tão ferino na Mossad como foi no Exército
© Miriam Alster | The Times of Israel
O israelita Meir Dagan [1945-2016] dificilmente teria o fim do palestiniano Mahmoud al-Mabhouh, sufocado ou envenenado numa suite do luxuoso hotel Al-Bustan Rutana no Dubai. O director da Mossad escolhe sempre hotéis modestos quando viaja para o estrangeiro.
Já o fim do chefe do Hamas encarregue de comprar armas ao Irão só poderia ser o que foi, presumivelmente, traçado pelo general a quem Ariel Sharon terá ordenado que dirigisse, “com uma faca entre os dentes”, a agência de espionagem mais temível do mundo.
Talvez pelo facto de ter nascido, há 65 anos, num comboio de mercadorias em trânsito da Sibéria para a Polónia, este descendente de sobreviventes do Holocausto e apenas o décimo chefe da Mossad a ostentar o título de memune (“primeiro entre iguais”, em hebraico) nunca está parado.
É impressionante a “folha de serviços” de Meir Dagan desde que, em 2002, foi nomeado para suceder a Ephraim Levy, afastado por ter “amolecido” a agência, ao optar pela diplomacia em detrimento dos assassínios selectivos.
Uma das primeiras missões de Dagan para reactivar o “longo braço” da Mossad foi levada a cabo no Quénia, em Novembro de 2002, dois meses depois de Sharon o ter nomeado, e de ele ter estipulado duas únicas prioridades: extinguir o programa nuclear iraniano e a ameaça terrorista no exterior.
“A lista deve ser reduzida”, explicou Dagan ao ex-primeiro-ministro. “Se continuarmos a fingir que podemos fazer tudo, acabamos por não fazer nada.”

Meir Dagan (de pé e com boné), em Beirute, quando Israel invadiu o Líbano e cercou a primeira capital árabe, em 1982
© Jewish Journal
Seguindo o exemplo de Golda Meir, que ordenou a eliminação, “onde quer que se encontrassem”, de todos os membros do Setembro Negro envolvidos no massacre de atletas israelitas na aldeia olímpica de Munique em 1972, Meir Dagan mobilizou os operacionais mais experientes da Kidon, unidade ultra-secreta de assassínios da Mossad, para se vingarem de dois ataques em Mombaça.
O primeiro foi a explosão de um jipe armadilhado que destruiu o Paradise Hotel, propriedade de um israelita (15 mortos e 80 feridos graves); o segundo, o lançamento de dois mísseis, que quase abateram um avião de passageiros transportando mais de 270 turistas de regresso a Telavive.
Uma hora depois destes atentados, relatou Gordon Thomas, autor de Gideon’s Spies Mossad’s Secret Warriors – a única biografia autorizada da agência – os kidon de Dagan chegaram ao Quénia munidos com tudo o que era necessário para liquidar os seus alvos:
- “Um pequeno laboratório de venenos, selados em ampulhetas para se manterem preservados até ao momento de serem usados; facas de várias dimensões; cordas de piano para estrangulamento; explosivos pequenos como uma pastilha elástica mas capazes de rebentar cabeças; um arsenal de armas, de pistolas com silenciadores a espingardas de snipers.”
Para não falharem, os agentes aprenderam a língua swahili e outros dialectos, que falavam entre si, de modo a serem confundidos com comerciantes árabes e indianos locais. Memorizavam rostos, infiltravam-se em quartos sem serem detectados para colocar aparelhos de escuta ou bombas.
Até as kidon (nome deriva do termo hebraico para baioneta) “iam para a cama com quem pudesse fornecer informações vitais”.
Thomas citou Meir Amit, “o mais inovador e inflexível director da Mossad” cujo “guia para matar”, delineado há mais de meio século, continua a ser distribuído aos katsas (espiões): “O sexo é a arma das mulheres. Conversa de cabeceira não é problema para elas, mas é preciso grande coragem, porque não se trata apenas de dormir com o inimigo.”

Do ponto de vista técnico, a missão para matar Mabhouh foi um êxito – o alvo foi eliminado e os operacionais não foram capturados. Do ponto de vista diplomático, foi um pesadelo. As pessoas nas fotos e imagens de vídeo foram as que o mataram, mas viajaram sob identidades roubadas de israelitas com dupla nacionalidade
O homem que trabalha 18 horas por dia raramente deixava o seu gabinete, tão obcecado estava em punir Osama bin Laden e Saddam Hussein, os seus suspeitos nos ataques em Mombaça.
Um avião da companhia El Al transportava, diariamente, para o Norte de Israel todas as provas recolhidas por cientistas, patologistas e agentes de campo da Mossad – vindos de todo o lado, da África do Sul, Nigéria, Roma, Malta e Chipre. Não se sabe se esta missão já terminou. Muitos dos perseguidos escaparam para as Filipinas, Paquistão e Afeganistão.
Certo é que Dagan não ficou de braços cruzados. Um outsider olhado com desconfiança pela comunidade de espionagem, quis mostrar aos adversários internos (200 agentes demitiram-se quando ele entrou) e aos inimigos externos que poderia ser tão ferino na Mossad como foi no Exército.
O facto de estar sempre “com o dedo no gatilho” reflecte as privações e perigos que enfrentou desde que nasceu no chão gelado de uma carruagem.
Em 1950, quando os pais fugiam da Rússia para a Palestina do mandato britânico, o menino Meir, de apenas 5 anos, estava a bordo de um navio que uma tempestade quase fez naufragar. Envergando um colete salva-vidas, foi para o convés comer uma laranja e rezar, sem esperança de sobreviver.
Para nunca se esquecer dos sacrifícios da família, pendurou no seu gabinete a foto de um velho judeu de pé numa trincheira, com a arma de um nazi SS apontada à sua cabeça. “Este velho judeu é o meu avô”, disse ao jornal britânico The Times. “Temos de ser fortes, usar o cérebro e defendermo-nos, para que o Holocausto nunca mais se repita.”
Os imigrantes Huberman, mais tarde Dagan, instalaram-se em Bat Yam, subúrbio a sul de Telavive. Já na faculdade, Meir abandonou os estudos (embora se licenciasse posteriormente em Ciência Política) para se candidatar à prestigiada unidade militar Sayeret Matkal, a que pertenceram Yitzhak Rabin e Ehud Barak.
Não foi admitido e, alegadamente, não superou o ressentimento. O Exército integrou-o numa brigada de pára-quedistas. Em 1967, na Guerra dos Seis Dias, foi promovido a comandante de uma companhia que combateu na Península do Sinai (Egipto) e nos Montes Golã (Síria).

Mahmoud al-Mabhouh foi sufocado (ou envenenado) numa suite do luxuoso Hotel Al-Bustan Rutana no Dubai, a 19 de Janeiro de 2010. Na casa da família, no campo de refugiados de Jabaliya, na Faixa de Gaza, o pai do palestiniano exibe uma foto do filho
© Mohammed Salem | Reuters
Em 1970, como chefe do Comando Sul das Forças Armadas, o general Sharon encarregou Dagan, então com 25 anos, de chefiar a unidade de elite Sayeret Rimon, cujos membros actuavam infiltrados na Faixa de Gaza.
Terá sido aqui que ficou coxo, ao tentar desactivar uma granada, numa luta corpo a corpo com um guerrilheiro palestiniano – evita, todavia, usar bengala “para não mostrar sinal de fraqueza”.
Terá sido também aqui, segundo a imprensa israelita, que alguns dos seus homens, disfarçados de árabes, mataram a sangue-frio um grupo de combatentes da OLP. Em 1971, o homem que é a antítese de James Bond (gordo calvo, apreciador de iogurtes naturais e não de martinis) obteve a sua primeira condecoração: a Medalha da Coragem.
Na guerra do Líbano de 1982, quando os tanques de Sharon cercaram a primeira capital árabe, Dagan estava à frente da Brigada de Blindados Barak.
Não receava percorrer as vielas estreitas de Beirute, por vezes acompanhado apenas do seu doberman Paco e de um revólver no bolso. Em 1995, passou à reserva. Um ano depois, estava a ser chamado por Shimon Peres para uma task force de combate ao terror.
Em 2002, quando assumiu a direcção da Mossad, Dagan procedeu a uma total reorganização da agência. Aumentou o número de agentes e de operações. Quanto mais êxitos, mais recursos recebia.
Tornou-se numa das figuras mais poderosas – foi eleito, em 2008, Man of the Year / “Homem do Ano” em Israel. Não era ele a ser recebido pelo primeiro-ministro, mas este é que ia ao seu encontro. Antes dele, nunca nenhum director-geral da Mossad havia visto o seu mandato renovado por mais de quatro anos.

Os kidon de Meir Dagan foram a Damasco matar Imad Mughniyeh. No dia do funeral, em Beirute, a mãe do comandante do Hezbollah dizia que o filho (ambos na imagem), planeava visitá-la no dia em que foi assassinado, e lamentava não ter uma foto dele para o recordar. “Dois dias depois, Umm Imad recebeu uma encomenda”, revelou o biógrafo oficial da Mossad. “Lá dentro estava uma fotografia. Tinha sido expedida de Haifa”, no Norte de Israel
© Al Akhbar

Em Janeiro de 2015, Jihad Mughniyeh (na foto), filho de Imad e comandante do Hezbollah no sector dos Montes Golã controlado pela Síria, foi morto com outros quatro combatentes do movimento libanês quando mísseis israelitas atacaram uma aldeia do Líbano na fronteira síria
© Twitter
Meir Dagan estava em funções há oito anos quando começaram a aparecer pedidos para a sua demissão depois do embaraço diplomático no Dubai. Se o fizesse nessa altura, seria o mesmo que confessar o envolvimento da Mossad no crime.
Além disso, Benjamin Netanyahu, o chefe do Governo que assinou a ordem para assassinar Mahmoud al-Mabhouh (no final de uma reunião na sede da agência, Mashrit, em Herzilya, ter-se-á despedido de Dagan, dizendo: “O povo de Israel confia em si, boa sorte”) estava convencido de que só o antigo confidente de Ariel Sharon poderia salvar Israel da ameaça iraniana.
Até os egípcios, num raro elogio árabe a um israelita, enaltecerem os esforços de Meir Dagan para conter as ambições do Irão xiita. “Sem este Super-Homem, o programa nuclear iraniano já estaria activo há muitos anos”, escreveu Ashraf Abu al-Haul, antigo correspondente em Gaza do jornal Al-Ahram, do Cairo. Recentemente, Dagan reviu para 2014 a data prevista para Teerão possuir a bomba.
Vejamos como o “Super-Homem”, casado e com três filhos, vegetariano, pintor amador e leitor de John le Carré (simpatiza com Smiley, o herói) tem agido na “guerra secreta” contra o Irão: no final de 2002, a Mossad descobriu que a República Islâmica estava a colaborar com o cientista nuclear paquistanês Abdel Qadir Khan para construir uma central de enriquecimento de urânio em Natanz.
A informação foi passada ao Conselho Nacional de Resistência, grupo de oposição iraniano, para que a divulgasse publicamente mantendo anónimas as fontes.
Não demorou muito a que começassem a ocorrer “incidentes inexplicáveis”, segundo a Newsweek, como o desaparecimento de cientistas ou incêndios em laboratórios.

Pouco tempo antes de morrer, Meir Dagan fez um balanço demolidor da acção governativa do direitista Benjamin Netanyahu e do trabalhista Ehud Barak(à esq.). “Conheci muitos primeiros-ministros. Nenhum deles era puro e santo. Mas partilhavam uma qualidade: quando havia um conflito entre os interesses pessoais e interesses nacionais, todos colocavam sempre o Estado em primeiro lugar, à excepção de dois: ‘Bibi’ e Barak”
© The Times of Israel
Em 2007, a Mossad fez outra importante descoberta: a Síria estava a desenvolver um programa nuclear em colaboração com a Coreia do Norte. Em Setembro, aviões israelitas bombardearam o local que consideravam suspeito.
Em 2009, a agência de Dagan, colaborando com serviços secretos dos EUA, França e Grã-Bretanha, descobriu uma segunda central secreta iraniana, em Qom – a revelação humilhou as autoridade de Teerão, obrigadas a prestar contas à Agência Internacional de Energia Atómica.
De todas as operações – desde as que permitiram que caças israelitas entrassem no espaço aéreo sudanês, para bombardear uma coluna de 17 camiões transportando armas para o Hamas em Gaza, até às que facilitaram a intercepção de um navio, ao largo de Chipre, com arsenais para o Hezbollah –, a mais arrojada terá sido a que conduziu ao assassínio de Imad Mughniyeh, em Damasco.
O comandante do Partido de Deus e comanditário de um ataque contra o quartel-general dos Marines em Beirute, em 1983, de que resultaram 241 mortos, há muito que estava na clandestinidade.
Dagan conseguiu que os seus kidon entrassem na capital síria e seguissem Mughniyeh. Descobriram que iria participar nas celebrações da Revolução Islâmica no Centro Cultural Iraniano, e conseguiram armadilhar o Mitsubishi Pajero que ele havia alugado.
Por volta das 19h00 locais do dia 12, quando o “convidado de honra” chegava para os festejos, um telemóvel foi accionado e fez detonar os explosivos colocados num encosto de cabeça do veículo.
A potente deflagração fora concebida para decapitar Mughniyeh, tal como acontecera ao “mestre bombista” palestiniano Yahya Ayyash, em 1996, em Gaza.

Em 29 de Novembro de 2010, Meir Dagan foi afastado por Benjamin Netanyahu da direcção-geral da Mossad, para dar lugar a Tamir Pardo, que assumiu o comando em 1 de Janeiro de 2011. Assim que cessou funções, declarou publicamente, várias vezes, que não era favorável a um ataque militar contra as centrais nucleares iranianas
© welt.de
Há um dado curioso nesta história que Gordon Thomas detalhou no Daily Telegraph. No funeral de Mughniyeh, na capital libanesa, a sua mãe, Umm Imad, dizia que o filho, há anos fugitivo, planeava visitá-la no dia em que foi morto, e lamentava não ter uma foto dele para o recordar.
“Dois dias depois, ela recebeu uma encomenda”, revelou o biógrafo oficial da Mossad. “Lá dentro estava uma fotografia. Tinha sido expedida de Haifa”, no Norte de Israel.
O assassínio de Mahmoud al-Mabhouh, em 19 de Janeiro de 2010, foi um êxito, do ponto de vista técnico. O alvo foi eliminado e os operacionais abandonaram o país horas depois da missão cumprida. Do ponto de vista diplomático, foi “um pesadelo”, observou Ronen Bergman, analista de segurança do diário israelita Yedioth Ahronoth.
“É certo que os dados revelados pela polícia do Dubai não provam, inequivocamente, que as pessoas nas fotos e nas imagens de vídeo foram as que mataram Mabhouh, excepto que viajaram sob identidades roubadas de cidadãos israelitas com dupla nacionalidade.
As provas circunstanciais, porém, são fortes: um grupo de 12 – os 11 nas fotografias mais uma mulher não identificada – actuaram de uma forma altamente coordenada e eficaz. O mais surpreendente, contudo, foi a polícia do Dubai ter conseguido fazer uma reconstituição das imagens a uma velocidade extraordinária.”
“De uma certa maneira, é o fim de uma era de operações undercover”, comentou Bergman. “Já não é possível levar a cabo assassínios sem deixar rasto.” Em Israel, alguns continuam a pedir a cabeça de Meir Dagan.
Os que o conhecem avisam: “Ele não é o tipo de pessoa que se incomoda por ter enfurecido alguns.” Na sua porta deve estar pendurado o mesmo sinal que os agentes no Dubai deixaram no quarto de Mabhouh: Do not disturb!
[ Em 29 de Novembro de 2010, Meir Dagan foi afastado por Benjamin Netanyahu da direcção-geral da Mossad, para dar lugar a Tamir Pardo, que assumiu o comando em 1 de Janeiro de 2011. Assim que cessou funções, declarou publicamente, várias vezes, que não era favorável a um ataque militar contra as centrais nucleares iranianas. Usou mesmo a expressão “a ideia mais estúpida”, para classificar a opção que o primeiro-ministro israelita (seu antigo aliado) nunca retirou da mesa. Justificou Dagan: o actual regime em Teerão “é muito racional” – pode ser homicida, mas não é suicida; só lhe interessa garantir a sua sobrevivência.]
Em Janeiro de 2015, Jihad Mughniyeh, filho de Imad, e comandante do Hezbollah no sector dos Montes Golã controlado pela Síria, foi morto com outros quatro combatentes do movimento libanês quando mísseis israelitas atacaram uma aldeia do Líbano na fronteira síria.
Em Março de 2016, aos 71 anos, Dagan morreu após uma batalha com um inimigo invencível: um cancro. Numa entrevista que deu ao jornal “Yediot Aharonot”, pouco tempo antes de morrer, fez um balanço demolidor da acção governativa de Netanyahu e do trabalhista Ehud Barak. “Conheci muitos primeiros-ministros. Nenhum deles era puro e santo. (…) Mas partilhavam uma qualidade: quando havia um conflito entre interesses pessoais e interesses nacionais, todos colocavam sempre o Estado em primeiro lugar, à excepção de dois: ‘Bibi’ e Barak.”]
Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 1 de Março de 2010 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚLICO, on March 1, 2010