Os turcos não gostaram de uma resolução aprovada por uma comissão da Câmara dos Representantes dos EUA que reconhece o genocídio arménio. Entrevista com o historiador Fikret Adanir, da Universidade Sabanci, em Istambul. (Ler mais | Read more…)

Refugiados arménios e sírios expulsos do território da actual Turquia, num campo da Cruz Vermelha nos arredores de Jerusalém, circa 1917-1919
© Library of Congress | The Wall Street Journal
Professor de História da Turquia na prestigiada Universidade de Sabanci, em Istambul, Fikret Adanir foi, em 2005, um dos organizadores de uma rara e ousada conferência, Os Arménios Durante o Colapso do Império Otomano, realizada na Universidade de Bogazici, também em Istambul. Nesta entrevista por telefone, confessa que “não tem medo” de usar a expressão “genocídio arménio”.
Como turco e como historiador, qual o significado da resolução aprovada pela Comissão dos Negócios Estrangeiros da Câmara dos Representantes dos EUA [reconhecendo o genocídio arménio]?
Nenhum país, nenhum povo gosta de aceitar que os seus antepassados cometeram um genocídio e, sobretudo, que parlamentos de outros países aprovem resoluções sobre isso quando ignoram os crimes cometidos por outros. Por outro lado, é importante afirmar que o Estado turco ainda não enfrentou a sua própria História.
O povo turco tem uma grande dificuldade em enfrentar a sua própria história, que tem muitas páginas em branco e também muitos actos criminosos. A maioria dos turcos não aceita e só uma minoria está preparada para o fazer.
Eu, pessoalmente, penso que a Turquia tem de fazer uma leitura correcta da sua história e aceitar que o que aconteceu aos seus arménios foi um crime contra a humanidade.
A Turquia deve reconhecer um crime contra a humanidade?
Sim, é o que eu acho. Acho que os turcos devem reconhecer isso. Mas também acho que nem os Estados Unidos ou qualquer outra nação têm o direito de dar lições aos turcos, porque os turcos não lhes reconhecem essa autoridade moral. Por que é que os EUA nunca aprovaram resoluções sobre os crimes da França e da Grã-Bretanha cometidos durante os seus períodos coloniais?
Por que é que o Congresso norte-americano não discute e aprova uma resolução sobre os crimes dos franceses na Argélia? Estas discussões e resoluções são selectivas. Se não se limitassem ao que os otomanos fizeram [entre 1915-17] seriam mais convincentes.
Na Turquia há um grande desapontamento, que se estende ao Estado turco, porque só há uns dez anos permitiu a discussão pública desta questão. Nas escolas estatais, os livros de História ainda não referem o que aconteceu aos arménios. É uma filosofia educativa errada. Há muito que devia ter sido mudada.

Retrato de duas famílias arménias, os Selian e os Gulbenkian, em Mersin, no antigo Império Otomano, actual Turquia, em 1906
© Project SAVE Armenian Photograph Archive, Watertown, Massachusetts (EUA) | ushmm.org
O que impediu a discussão?
Os turcos sempre se viram como vítimas das grandes potências e responsabilizam as grandes potências pelo que aconteceu aos arménios. Os arménios tentaram criar o seu próprio Estado num território que era maioritariamente habitado por muçulmanos e não por arménios.
A Arménia histórica é hoje o Curdistão. As pessoas que queriam criar uma Arménia não tiveram em conta o facto de que viviam entre uma maioria de muçulmanos, muitos deles curdos.
Sim, houve massacres e deportações, mas o conceito de genocídio é moderno. Começou a ser usado em 1948. A lei internacional não permite a aplicação de um veredicto, retroactivamente, a um tempo em que não existia esse conceito.
Os turcos receiam que os arménios na diáspora, sobretudo nos Estados Unidos e em França, reclamem território – o que, aliás, estão a fazer.
Os turcos aceitam pedir desculpas e até acolher e oferecer cidadania aos arménios que quiserem regressar, mas o Estado turco, enquanto existir na sua forma actual, jamais reconhecerá o genocídio arménio. Isso não quer dizer que a questão não seja discutida e que não procuremos uma melhor compreensão mútua.
Em 2005, tivemos uma conferência [Os Arménios Durante o Colapso do Império Otomano, realizada na Universidade de Bogazici, em Istambul] para a qual convidámos arménios. Eu uso o termo “genocídio” nas minhas aulas. Mas uso-o num sentido moral, não no sentido legal. Digo que foi cometido um grande crime, e compreendo a posição arménia.
Não tenho medo de usar o termo “genocídio”, e de o usar aqui, na Turquia. Mas eu pertenço a um grupo pequeno, porque a maioria ainda não aceita essa definição. E não aceitará se continuar a ser imposta por parlamentos estrangeiros.
Acha que a resolução vai prejudicar o processo de reconciliação em curso entre turcos e arménios?
Acho que sim. Os turcos e arménios estavam prestes a restabelecer laços diplomáticos. Estavam a negociar. Os turcos pediam algumas concessões quanto ao Nagorno-Karabach [enclave no Azerbaijão controlado pela Arménia] porque sentem que têm o dever de proteger os azeris [turcófonos e muçulmanos]; os arménios, por seu lado, também faziam as suas reivindicações. Este já era um processo difícil, mas esta resolução nos EUA pode ser interpretada como uma grande ingerência.
Quando se sentarem à mesa das negociações, os arménios já não se sentirão receptivos a ceder, porque sentem que têm os EUA do seu lado. Quanto aos turcos, vão tornar-se ainda mais racionalistas, porque os nacionalistas nunca aceitarão estas pressões, o que afecta o processo de reconciliação.
E qual será o impacto para as relações entre os Estados Unidos e a Turquia?
É óbvio que as relações vão continuar a existir, mesmo que os EUA reconheçam oficialmente o genocídio – embora eu não acredite que isso vá acontecer. Mesmo que todo o Senado aprovasse a resolução e que esta fosse subscrita pelo Presidente, as relações bilaterais não mudariam de um dia para o outro nem a Turquia abandonaria a NATO.
Mas há analistas a admitir que a Turquia poderá restringir o uso das bases norte-americanas ou rever a sua participação militar no Afeganistão.
Admito que, se o Presidente Obama reconhecer oficialmente o genocídio no seu discurso de 24 de Abril [a data assinalada pelos arménios], talvez os turcos limitem, ou até encerrem, a base militar de Incirlik. Mas os turcos que estão no Afeganistão não são tropas de combate. Estão lá para dar assistência, e vão lá continuar, mesmo que os EUA se retirem.
Não há dúvidas quanto a isso. Não creio que Obama vá longe de mais. E, mesmo que vá, não será uma catástrofe para os turcos, até porque a opinião pública já não é muito favorável aos EUA (se isso é certo ou errado, é outra coisa).
Também não acredito que a Turquia se vá aproximar mais do Irão, da Irmandade Muçulmana ou da Rússia… Isso não quer dizer que alguns círculos turcos não tentem atrair a opinião pública para estas posições.

Arménios no quartel de Marash aguardam a sua execução, em Abril de 1915. Acima deles, estão o governador otomano Haydar Pasha e os seus soldados
© Armenian Genocide Museum-Institute | The Guardian
Ou seja, mesmo que esteja desapontada com os EUA, a Turquia não se vai aproximar do Irão ou da Rússia…
… as relações turcas com os EUA já não são o que eram há dois ou cinco anos, mesmo antes desta resolução do genocídio se ter tornado realidade. É possível que esse afastamento tenha sido motivado por não termos dado acesso aos EUA à base de Incirlik na guerra do Iraque [em 2003], mas as relações bilaterais perduram.
A resolução foi aprovada na comissão da Câmara dos Representantes por uma maioria muito estreita e não acredito que passe no Senado. Isto é apenas um jogo diplomático.
Pela minha parte, espero que a Turquia mude as suas políticas culturais, mude as políticas face às suas minorias. A Turquia precisa de um olhar novo, de uma nova interpretação sobre a sua história. Tem de resolver os seus problemas sem se importar com as pressões externas.
Há quem diga que esta resolução se deve à pressão da diáspora arménia sobre os democratas em vésperas de eleições intercalares para o Congresso; outros apontam pressões do Azerbaijão sobre a Turquia para não se reaproximar da Arménia antes de resolver o conflito do Nagorno-Karabakh. Qual a sua opinião?
Há muitas pessoas de origem azeri a viver na Turquia e os partidos nacionalistas turcos que apoiam o Azerbaijão pressionam o Governo. Não é o Governo do Azerbaijão que exerce pressão sobre o turco – a oposição turca é que pressiona o Executivo [em Ancara] a favor do Azerbaijão.
A maioria da diáspora arménia nos EUA também usa, por seu turno, a questão do genocídio para exercer pressões. De um lado e do outro, tudo não passa de política interna.
Qual o impacto da resolução nos esforços de reconciliação que têm sido empreendidos por historiadores turcos e arménios?
Isto é um revés para o nosso grupo. O nosso trabalho é cada vez mais difícil, porque a atmosfera liberal que existia está a ser ameaçada por um clima mais e mais nacionalista, que se torna dominante.
É um revés irreversível?
Não, claro que não. Confio em que haverá uma melhoria de relações com os nossos vizinhos. A Arménia é muito importante, para nós, tendo em conta o contexto histórico.
Será uma reconciliação a longo prazo.
Sim, a muito longo prazo.

Fikret Adanir, historiador na Universidade Sabanci em Istambul: “Uso o termo ‘genocídio’ nas minhas aulas, mas num sentido moral, não legal. Digo que foi cometido um grande crime, e compreendo a posição arménia”
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Este artigo foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO, em 5 de Março de 2010 | This article was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on March 5, 2010