Nora al-Fayez entrou no governo e fez história na Arábia Saudita

A ministra adjunta da Educação (só para raparigas) comunica com o seu chefe por um circuito fechado de televisão – a segregação mantém-se. Mas algo poderá estar a mudar na Casa de Saud, quando uma mulher aparece (numa foto) de rosto destapado ao lado do homem que vai liderar a temível polícia religiosa. Esta é a sua primeira entrevista a um jornal ocidental. (Ler mais | Read more…)

Socióloga de 54 anos, formada nos EUA, Nora al-Fayez tutelou apenas a “educação de raparigas”, mas o simbolismo da sua nomeação é inegável

Uma semana antes de 14 de Fevereiro, Dia de São Valentim, os pregadores nas mesquitas da Arábia Saudita relembram aos fiéis que é “pecado” celebrar este mártir cristão, decapitado em 270 por realizar casamentos proibidos pelo imperador romano Cláudio II.

A polícia religiosa ou Comissão (Hai’a) para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício, não descansa enquanto não confiscar tudo o que de vermelho aparecer nas lojas, sejam rosas ou ursos de peluche. Comerciantes e clientes são multados, detidos e/ou chicoteados.

Este ano [2009], porém, os temíveis mutaww’in tiveram uma inesperada prenda no Dia dos Namorados: o seu chefe foi demitido e uma mulher escolhida – pela primeira vez – para entrar no governo, assumindo uma pasta que pertencia ao “mais conservador e barbudo” zelota do reino.

Abdullah Bin Abdul Aziz, o octogenário monarca absoluto [que morreria em Janeiro de 2015, aos 90 anos], surpreendeu os súbditos ao nomear Nora al-Fayez ministra-adjunta da Educação [ou vice-ministra].

Socióloga de 54 anos, formada nos Estados Unidos, ela será apenas responsável pela “educação de raparigas” (da pré-primária ao liceu), mas o simbolismo não esmorece. A sua tarefa era exclusiva de um departamento totalmente masculino – a maior promoção até agora era a supervisora ou reitora.

O assombro aumentou quando a foto da sorridente Norah Al Fayez foi publicada na primeira página do Al Eqtisadiya (versão saudita do Financial Times).

De rosto maquilhado e descoberto, sem a abaya (túnica) negra que tapa o corpo da cabeça aos pés e apenas com um hijab (lenço) invulgarmente branco a ocultar o cabelo, ela aparece na mesma galeria do também recém-designado chefe da Hai’a, Abdul Aziz bin Humain.

Na primeira entrevista, ao diário árabe Al Watan, Nora al-Fayez declarou-se indignada, “mas disposta a perdoar”, por terem ousado expor os seus bâton, blush, eyeliner e rímel sem autorização.

“Fiquei profundamente perturbada, e nunca aceitaria que publicassem a minha foto em lado nenhum. Sou uma mulher saudita de Najd [a mais conservadora região, onde nasceu o rei e o fundador da doutrina wahabita] e uso o niqab [que apenas deixa ver os olhos]. Se tivesse instaurado um processo em tribunal, ganharia de certeza”, explicou.

Disse ainda que não sabia onde o Al Eqtisadiya foi buscar a imagem mas, quando a contactei (vários telefonemas, SMS, faxes e e-mails) para esta entrevista –, a primeira a um jornal ocidental – encaminhou-nos, sem qualquer restrição, para a mesma fonte: a edição digital de Leaders of Saudi Arabia.

O académico americano Toby C. Jones, que estuda as monarquias árabes, nota: “Mais radical teria sido designar uma mulher como responsável pela educação dos rapazes – isso, sim, seria um passo revolucionário”
© Middle East Monitor

Oriunda de uma das mais importantes tribos pré-islâmicas, os Bani Tamim, antepassados dos Quraysh, do profeta Maomé, compreende-se que Nora al-Fayez não quisesse ofender a sua base. Essa inquietude desapareceu, aparentemente, quando as perguntas chegaram do estrangeiro e ela viu aqui a oportunidade de passar uma imagem “moderna” do berço de Osama bin Laden.

Foi no dia 12 de Fevereiro, dois dias antes do decreto real, que Nora al-Fayez recebeu um telefonema da corte a convidá-la para entrar na história de um país onde as mulheres têm sido privadas dos seus direitos básicos com base na rígida teologia wahhabita. “Foi um momento sublime, a nível pessoal”, disse-nos, por correio electrónico.

“É uma honra assumir as grandes responsabilidades que Sua Majestade me conferiu. (…) É, definitivamente, um passo no sentido de dar às mulheres papéis de relevo que elas saberão desempenhar nos círculos onde se tomam decisões.”

“A minha nomeação reflecte a visão de Sua Majestade de que a educação é uma prioridade estratégica da nossa nação, que as mulheres e os homens sauditas podem ajudar a transformar o sistema educativo, para desenvolver os recursos humanos e ir ao encontro das exigências de um mundo cada vez mais competitivo”, explicou.

“De início, fiquei intrigada com a questão ‘porquê eu?’, mas agora estou mais ocupada em obter respostas para o que pode ser feito, e como fazê-lo da maneira mais correcta e positiva.”

“Acredito que qualquer problema pode ser resolvido se formos até às suas raízes, e não nos limitarmos a um conserto rápido, nem nos centrarmos nos efeitos secundários. Homens e mulheres podem obter soluções duradouras para grandes problemas – e um deles é o analfabetismo [13,7 por cento em 27 milhões de habitantes]”.

Quem encorajou a abertura das primeiras escolas para meninas na Arábia Saudita foi Iffat al-Thunayan, a terceira e favorita mulher do rei Faisal, em 1956. Enfrentou tribos e imãs para introduzir uma educação secular que não fosse apenas a das madrassas (seminários religiosos mais do que escolas)
© qswownews.com

O combate ao analfabetismo não é, porém, a razão número um para mudar o sistema educativo, mas sim o controlo deste por extremistas religiosos, sobretudo os salafistas, que em 1979 (ano da Revolução Islâmica no Irão) tentaram derrubar a Casa de Saud com um ataque à Grande Mesquita de Meca.

São os salafistas, defensores da jihad (guerra santa), os mentores da al-Qaeda, a rede que atacou primeiro nos EUA, em 11 de Setembro de 2001 (15 dos 19 suicidas eram sauditas), e depois em Riad, a capital do reino, em 2003.

Se a nomeação de Nora Al Fayez é histórica, igualmente memorável é o afastamento de Ibrahim al-Gaith, o anterior chefe da polícia religiosa, cuja brutalidade e poderes começaram a ser questionados, em 2002.

Em Março deste ano, um incêndio deflagrou numa escola e os bombeiros foram impedidos pelos mutaww’in de socorrer as 835 alunas e 35 professoras. “Não estavam vestidas de acordo com o código islâmico”, e 15 crianças morreram queimadas.

Em 2007, mais um escândalo abalou a imagem da Casa de Saud: o “crime de Qatif”, cidade no Leste, onde a mais odiada instituição do país – os seus agentes vagueiam pelas ruas ou espreitam às esquinas, munidos de varapaus – condenaram a prisão e 200 chicotadas uma adolescente vítima de violação.

Outra decisão notável do rei foi a demissão de Saleh al-Lihedan, presidente do Supremo Conselho de Justiça, o mais importante tribunal do reino –, que em Setembro de 2008 emitiu uma fatwa (édito religioso) legalizando o assassínio de quem possuísse antenas parabólicas para captar “programas de conteúdo imoral”.

Em 1963, o rei Faisal chegou a mobilizar as forças de segurança para reprimir uma revolta de beduínos que recusavam enviar as filhas às aulas. Em 2009, quando Nora Al Fayez chegou ao governo, havia cerca de “12 mil escolas só para raparigas e o número de alunas ultrapassava os 2,5 milhões”
© Wall Street Journal

Na era da Al Jazeera (com sede no Qatar) e da Al Arabiya (estação de capitais sauditas), a condenação foi geral.

A leitura que Nora al-Fayez faz do decreto real de 14 de Fevereiro é a de que a Arábia Saudita “quer mudar o futuro dos seus jovens, homens e mulheres”.

E acrescenta: “O mercado de trabalho está a enviar os sinais certos de que como deve funcionar em paralelo com as reformas educativas. Ao longo da minha carreira como directora-geral da secção feminina do IPA [Instituto de Administração Pública], adquiri um sólido conhecimento de quais as profissões que o mundo do trabalho precisa e não precisa.”

“Além disso, todos sabem que a taxa de desemprego é maior entre as mulheres. Ora, se a integração das mulheres for um valor acrescentado, irá equilibrar a balança, e estabelecer uma nova dinâmica de igualdade e importância de género no mercado de trabalho.”

O desafio, adianta a técnica que desde 1984 tem estado ligada a escolas públicas e privadas, “é formar cidadãos que não sejam obrigados a pôr em prática reformas, mas que sejam verdadeiros crentes nas reformas (ou nos méritos que estas têm)”.

As universidades sauditas “mantêm um compromisso intocável com os valores islâmicos, mas precisamos de melhorar a qualidade dos nossos eruditos”, sublinhou, numa implícita alusão aos que fazem uma retrógrada interpretação dos textos religiosos.

Em Março de 2019, Nora al-Fayez (à esq.), afastada do Governo pelo rei Salman, foi homenageada na Universidade de Taif por “quatro décadas de uma carreira extraordinária”
© Asharq al-Awsat

Quem encorajou a abertura das primeiras escolas para meninas na Arábia Saudita foi Iffat al-Thunayan, a terceira e favorita mulher do Rei Faisal, em 1956. Enfrentou tribos e imãs para introduzir uma educação secular que não fosse apenas a das madrassahs (seminários religiosos mais do que escolas).

Em 1963, Faisal chegou a mobilizar as forças de segurança para reprimir uma revolta de beduínos que recusavam enviar as filhas às aulas. Hoje, diz Norah Al Fayez, “há 12 mil escolas só para raparigas e o número de alunas ultrapassa os 2,5 milhões”.

Segundo a UNESCO, são mulheres 70 por cento dos alunos inscritos nas universidades sauditas, 56 por cento dos licenciados e 40 por cento dos que concluem o doutoramento. No mercado de trabalho, porém, elas representam apenas 5 por cento da força activa – a mais baixa taxa em todo o mundo.

Wajeha al-Huwaider, uma das mais importantes fundadoras da Associação para a Protecção e Defesa dos Direitos das Mulheres na Arábia Saudita, relata-nos, por telefone, que “as mulheres são encorajadas a estudar nas universidades sauditas para serem médicas, enfermeiras, professoras e até banqueiras, mas se quiserem ser engenheiras, geólogas, arqueólogas ou jornalistas terão de se formar no estrangeiro”.

Quando regressam, “terão dificuldades em encontrar emprego, com raras excepções na indústria do petróleo”, de que o reino é o maior produtor mundial.

“Todo o sistema está concebido para perpetuar a segregação. Cerca de 90% dos empregos estão reservados aos homens – porque eles têm medo das capacidades das mulheres. Os homens sauditas são mimados. Sem competição, não precisam de se esforçar para realizar sonhos.”

A activista que, desde 1990, lidera a campanha para que as mulheres possam conduzir (seja automóveis ou bicicletas) no único país do mundo onde estão proibidas de o fazer saudou a nomeação de Nora al-Fayez como “uma coisa boa”, motivada pela tomada de consciência de que “a Arábia Saudita já não é vista apenas como a terra do petróleo mas também de terroristas”.

Em 2017, pela primeira vez, a Arábia Saudita introduziu a educação física no currículo das escolas para meninas – uma das medidas que Nora al-Fayez sempre quis aplicar, mas que enfrentava a oposição dos ultraconservadores do reino
© South China Morning Post

No entanto, ressalva Wajeha, “fazer parte do governo não significa que Norah venha a ter margem de manobra para grandes mudanças”. E uma das mudanças mais prementes “é revogar a lei do mahram ou guardião masculino que nos retira o controlo da nossa vida. Não temos qualquer poder de decisão, sobre estudos, trabalho, casamento, sair de casa ou viajar, nem sequer sobre tratamentos médicos, sem a aprovação de pai, irmão, marido, filho.”

“É um paradoxo que, sob o pretexto de não haver mistura entre homens e mulheres, não podermos guiar mas sermos forçadas a contratar estranhos para motoristas”, lastima-se Wajeha, 47 anos, divorciada e mãe de dois jovens (os seus tutores).

“Outra aberração é só os homens terem autorização para vender lingerie [muitos risos]. A nossa luta é pela mudança das leis, incluindo a que permite o casamento de meninas de 8 ou 9 anos.”

Wajeha não desvaloriza o decreto de Abdullah – o monarca que ascendeu ao trono em 2005 e em quem deposita “grandes esperanças” desde que era príncipe herdeiro.

As pessoas escolhidas para o Governo, entre eles, os novos ministros da Saúde, um cirurgião especialista em separar gémeos siameses, e o da Educação, príncipe Faisal bin Abdullah [cessou funções em Dezembro de 2013], cunhado do soberano, “são moderados que têm convivido com outras culturas e trouxeram novas ideias”, sublinhou.

Isso não significa, porém, que Nora al-Fayez vá ter uma relação de trabalho com Faisal como se vivesse no Utah, onde concluiu um mestrado em técnicas de educação na universidade estadual, em 1982, ou em Oxford, Bruxelas e Amesterdão, onde tem participado em palestras e seminários.

Se quiser falar com o príncipe ou com subordinados masculinos será – disse ela ao jornal Al Watan, “naturalmente, através de um circuito fechado de televisão”.

Uma das primeiras imagens públicas de Norah Al Fayez, após a nomeação para o Governo. @ Center for Human Rights & Democracy in Saudi Arabia

Uma das primeiras imagens públicas de Nora al-Fayez, após a histórica nomeação para o Governo do rei Abdullah, em 2009
©  Center for Human Rights & Democracy in Saudi Arabia

A experiência de ter ido para os EUA, logo após o casamento com o engenheiro Suleiman al-Suwlai e a licenciatura em Sociologia numa universidade de Riad, “foi um marco na carreira”, realça Nora al-Fayez.

“Aprendi com os livros, com os amigos e com os professores que a procura do saber é uma viagem de uma vida. Desde o primeiro trabalho na função pública, nunca mais deixei de desenvolver as minhas capacidades. Ao seguir a via do autoconhecimento, contribuo para a prosperidade do meu país”.

E qual o impacto das suas frequentes viagens pela Europa? “Tive a oportunidade de interagir e comunicar com pessoas de culturas diferentes. Apresentei-me como mensageira das mulheres sauditas, e mostrei que a nossa posição e estatuto têm sido muitas vezes denegridos por estereótipos negativos. Também aprendi a não olhar para as outras culturas a preto e branco, mas como um arco-íris.”

Sair do país, ao contrário do que acontece com a maioria das compatriotas, não parece ser um obstáculo para Nora. “A minha família adaptou-se ao meu estilo de vida. Aprendi a gerir o tempo, e acho que é possível construir uma grande carreira e manter um extraordinário equilíbrio em casa.”

“O sucesso não depende das circunstâncias. Requer devoção, disciplina e definição de prioridades profissionais. Começo o dia às 7h30, no meu gabinete. Às 14h30, almoço com a família e, as horas restantes, dedico-as a reuniões de trabalho ou a instituições de caridade a que estou ligada.”

“Tenho três filhos”, prossegue. “O mais velho, Bader, licenciou-se em marketing; o segundo, Shadi, é engenheiro aeronáutico; o terceiro, Mohammad, estuda Informática na América. Tenho duas filhas: Sarah está no 11º ano e Mashael está no 10º. Partilho com eles as minhas ambições. Recentemente, fui abençoada com a chegada de dois netos.”

Nora al-Fayez nasceu, em 1955, numa pequena vila nas proximidades de Riade, num lar de classe média. “Não tenho qualquer relação com a família real”, esclarece, desfazendo rumores a esse respeito. “Mas tenho orgulho em pertencer a esta amada nação onde todos os sauditas são uma família.”

[Em Abril de 2015, Nora al-Fayez foi afastada do cargo pelo novo rei Salman, sucessor de Abdullah, sem qualquer explicação oficial. Certo é que ela foi o motor para a introdução, em 2017, da educação física no currículos das escolas femininas, algo a que se opunham os círculos ultraconservadores agora marginalizados pelo príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman (MBS). Em Março de 2019, este contributo foi implicitamente reconhecido, quando a Universidade de Taif homenageou a ex-vice-ministra por “quatro décadas de uma carreira extraordinária”.]  

Em 2009, a revista TIME incluiu Nora al-Fayez, assim ilustrada, na sua lista dos “100 mais influentes” do mundo
© Jeffrey Smith

Reformas? Que reformas?

Toby Craig Jones, historiador da Casa de Saud, e Eman Fahad Al Nafjan, autora de um dos mais populares blogues sauditas, explicaram-nos o que significou o “decreto real do Dia dos Namorados”.

© alaraby.co.uk

A inédita nomeação de uma mulher para o Governo – pela primeira vez desde que a Arábia Saudita se tornou um Estado em 1932 – e uma remodelação nos ramos executivo, religioso e judicial “são sinais simbólicos, mas não mudanças significativas”, garante o historiador Toby C. Jones, antigo analista em Riade do think tank International Crisis Group e autor de Desert Kingdom: How Oil and Water Forged Modern Saudi Arabia, publicado em 2010.

“Não devemos esquecer que o rei Abdullah ascendeu ao trono, em 2005, depois de ter sido durante vários anos receptivo a um movimento interno que pedia reformas substanciais – se não a instauração de uma monarquia constitucional, pelo menos, a introdução de medidas que permitissem uma maior participação política dos súbditos”, diz-nos Jones, por telefone. “O que ele anunciou, a 14 de Fevereiro, não se aproxima, sequer remotamente, dessas reivindicações”.

Professor na Universidade de Rutgers (New Jersey, EUA), Jones concorda que a nomeação de Nora al-Fayez como ministra-adjunta da Educação (de raparigas), “é uma pujante mensagem, em consonância com a vontade que o rei tem demonstrado de atribuir mais poderes às mulheres”. No entanto, acrescenta, “não são estas as mudanças fundamentais que têm sido pedidas.”

Na opinião de Jones, Abdullah tinha de demitir Ibrahim al-Gaith, chefe do que alguns sauditas desdenham como “polícia do vício”, e Saleh al-Lihedan, presidente do mais importante tribunal do reino, porque ambos “representavam instituições fora de controlo”.

Por outro lado, “constituíam uma franja extremista do establishment religioso, e o regime já não se sentia confortável com a autoridade que exerciam. Era como se casa real estivesse a dormir com fanáticos. Enfraqueciam a monarquia. Se a Casa de Saud não agisse, ainda que timidamente, para controlar o ritmo das reformas, os extremistas acabariam por assumir o poder.”

© Reuters

O decreto do Dia dos Namorados “é uma resposta a pressões da sociedade”, acredita Jones. Mas não é o que diz Eman Al Nafjan, “uma liberal” de 30 anos, professora de inglês, filha de um oficial do Exército, casada com um engenheiro de computação, mãe de três filhos e autora de Saudiwoman’s Weblog, um dos mais populares blogues do reino.

“Não creio que tenha sido uma resposta à sociedade, porque a maioria da sociedade está feliz com os conservadores”, disse-nos, por e-mail. “Foi mais uma resposta às pressões do mundo exterior e das elites na Arábia Saudita. O establishment religioso tem aqui muita força, e o Governo tem de andar sobre uma linha ténue para não o hostilizar.”

Outros analistas regionais notaram que o rei foi aconselhado (o decreto não terá sido iniciativa pessoal) a escolher pessoas da sua própria tribo, para evitar convulsões sociais.

Todos os nomeados para o Governo – excepto o ministro da Cultura e Informação, Abdul-Aziz Al-Khoja (o sucessor de Iyad bin Amin Madani, que estava sob fogo por permitir liberdade de expressão aos que criticam as autoridades), – provêm da região central de Nejd. Sabem bem como lidar com os ultraconservadores sem grandes atritos.

Em todo o caso, quer Eman Al Nafjan quer Toby C. Jones enalteceram a escolha de personalidades de vários backgrounds tribais e culturais, e também de diferentes escolas do Islão, não apenas a rígida hanbalita, para o Grande Conselho dos Ulema, a mais alta autoridade religiosa (21 membros).

“É uma decisão ao encontro de vozes que têm sido marginalizadas por quem detinha o monopólio [da interpretação dos textos religiosos]”, justificou o académico norte-americano.

Sobre se a Casa de Saud está dividida quanto à necessidade de mudanças, Jones comenta: “Suspeito, mas não tenho a certeza, que o príncipe Nayef [ministro do Interior, que haveria de morrer em 2012] esteja mais próximo dos conservadores, e que o rei [e seu irmão] Abdullah simpatize com os reformistas.”

A blogger Eman, a completar o doutoramento em Linguística na Universidade de Riade após um mestrado na Universidade de Birmingham (Inglatera), afirma: “Não tenho muita informação sobre a família real, mas tenho a certeza que Abdullah é um tradicionalista convicto – ele tenta fazer reformas à maneira tradicional. A sua mãe é oriunda de uma tribo beduína, e as tribos beduínas tratam as mulheres com equidade”.

© STR | AFP | Getty Images
Financial Times

A Arábia Saudita, destaca Jones, mudou a partir de 1979 depois do ataque à Grande Mesquita de Meca. “Foi um momento de viragem. A partir daqui, a família real passou a dever a sua legitimidade ao establishment religioso.”

“Muitos falam na aliança entre a Casa de Saud e os wahhabitas, mas a aliança que mais pesa é com os salafistas, mais politizados e adeptos do confronto. [Próximos da Irmandade Muçulmana], vêem a Casa de Saud como um governo impuro.”

A escolha de Nora al-Fayez “deixou muitos entusiasmados, mas poucos acreditam que ela irá deter poder genuíno”, adianta Jones. “Há até o receio de que o Ministério da Educação se torne um gueto de onde as mulheres jamais poderão escapar.”

Eman Al Nafjan deu conta que, no passado dia 24, os jornais sauditas anunciavam que a educação das raparigas passará a ser exclusivamente uma missão das mulheres – até agora, era só de homens.

Jones nota que “mais radical seria designar uma mulher como responsável pela educação dos rapazes – isso, sim, seria um passo revolucionário. O rei poderia ter ido muito mais longe, mas a grande prioridade é preservar o seu poder.”

“Ter a certeza de que, ao fim do dia, não está sob ameaça de ninguém. Ao designar uma personalidade liberal e tecnocrata para uma posição de mínima responsabilidade não é muito diferente do que Abdullah tem feito, excepto que, desta vez, se trata de uma mulher.”

Que país é, afinal, a Arábia Saudita? “Não é um lugar maléfico”, responde Jones. “Não tem um regime prestes a cair e não está à beira de uma revolução. Acabará por se transformar, mas a muito longo prazo.”

Eman descreve a pátria: “São muitos países dentro de um só. Somos extremamente fechados. Um estranho que venha viver aqui, provavelmente, nunca saberá muito da nossa cultura e modo de viver, devido à natureza tribal e familiar da sociedade.”

Eman Al Nafjan

Toby C. Jones

Wajeha al-Huwaider
© acelebrationofwomen.org

Este artigo, com outro título e agora actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO, em 28 de Março de 2009 | This article, under a different headline and now updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on March 2, 2009

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