O marajá de Rajpipla deserdou e repudiou o filho quando ele confessou publicamente a sua homossexualidade. A reconciliação veio depois de Manvendra Singh Gohil aparecer no programa de Oprah Winfrey. A ONU deu-lhe um prémio pelo seu activismo na luta contra a sida. Encontrou o amor num reality show, mas não deu certo. Na primeira pessoa, esta é a sua história. (Ler mais | Read more…)

Manvendra Singh Gohil descende de uma dinastia com 600 anos. Nasceu num berço de ouro, como ele próprio disse: “Tive todos os luxos reservados a um príncipe herdeiro. Nada me faltou – a melhor educação, a melhor alimentação, as melhores roupas, o melhor de tudo para a vida”
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Manvendra Singh Raghubir Singh Sahib Gohil é o meu nome completo, mas podem chamar-me Pink Prince. Não me ofendo, pelo contrário.
Os meus antepassados, provavelmente, já adivinhavam que teriam um descendente gay, porque eu vivo num palácio vitoriano cor-de-rosa em Rajpipla, distrito de Gujarat, um dos mais prósperos estados da Índia.
Nasci a 23 de Setembro de 1965 e sou o yuvaraj (príncipe) herdeiro do marajá (grande rei) Shri Raghubir Rajendrasinghji Sahib e da maharani (grande rainha) Rukmani Devi Sahiba. Tenho uma irmã mais nova, uma princesa que se casou com um príncipe de Jammu e Caxemira.
A minha dinastia, Gohil, tem aproximadamente 600 anos. À semelhança de outras famílias reais que governavam os seus domínios durante o Império Britânico, a minha aceitou integrar-se na União Indiana, após a independência em 1947. Em 1968, a República da Índia invalidou os títulos de nobreza.
O meu bisavô foi o último rei reconhecido, mas ainda mantivemos poderes e privilégios. Em 1971, a primeira-ministra, Indira Gandhi, desconfiada de que as famílias reais se estavam a tornar demasiado poderosas politicamente, retirou-nos prerrogativas e privilégios.
Hoje, o nosso papel é meramente protocolar, mas ainda muito respeitado pelo povo, porque somos guardiões das tradições.
Nasci num berço de ouro. Tive todos os luxos reservados a um príncipe herdeiro. Nada me faltou – a melhor educação, a melhor alimentação, as melhores roupas, o melhor de tudo para a vida.
Estudei em Bombaim (actual Mumbai). Fiz aqui toda a minha formação. Licenciei-me em Direito, mas nunca tive intenção de praticar.
O objectivo era ter conhecimento para gerir as nossas propriedades e bens. Se sabemos direito, não dependemos de advogados. Chegámos a ter 11 palácios, agora só temos três. Muitos foram vendidos e alugados.
O palácio onde nasci tinha 35 quartos – alguns fazem agora parte de um hotel, gerido por nós. Temos mais de 100 funcionários, 25 dos quais criados da família. Eu tenho cinco. A minha cozinheira, por exemplo, tem 65 anos, e o meu secretário 85 – vão comigo para todo o lado.
Há mais de dois séculos que os seus parentes trabalham para nós. Dependo muito dos meus criados. Tinha 15 anos quando atravessei sozinho uma rua, pela primeira vez.
Só para conduzir é que dispenso o chauffeur – ele viaja comigo no banco de trás. Apenas conduz quando eu estou cansado. De resto, fica a guardar o meu jipe ou o meu automóvel, e encarrega-se das questões de oficina.

Em 2018, numa decisão histórica, o Supremo Tribunal da Índia discriminalizou a homossexualidade, considerando que a discriminação com base na orientação sexual é uma violação dos direitos humanos
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A relação com os meus criados é tão estreita que, quando comecei a ter lições de condução, fiz mal uma manobra, embati numa árvore e o instrutor saiu pelo vidro da frente com dois dentes partidos. Nunca quis ir ao dentista – disse-me que estar desdentado é uma boa recordação.
Talvez tenha sido essa dependência que levou Gareth McLean, do diário britânico The Guardian, a achar “fraquinho” o meu aperto de mão quando me entrevistou. Disse que eu estou “mais habituado a vénias”, o que é verdade.
O importante foi ele ter concluído que sou “um tipo doce, franco e amigável, embora um pouco desligado da realidade, talvez por ser da realeza”. Sim, é mais próxima a minha relação com os criados do que com os meus pais biológicos.
Uma governanta cuidou de mim desde que nasci. Não chamo mãe à minha mãe, nem pai ao meu pai. Trato ambos por Sua Alteza. Eles chamam-me príncipe. Se eu quiser encontrar-me com o meu pai, tenho de marcar dia e hora com os seus secretários pessoais.
É uma relação muito fria, formal. Não há amor, não há afecto. Por isso, não foi um grande desgosto quando o meu pai anunciou – depois de eu ter assumido publicamente a minha homossexualidade – que me retirava o título de príncipe herdeiro e me deserdava.
Ou quando a minha mãe publicou um anúncio nos jornais ameaçando processar quem dissesse que eu era filho dela.

Ashok Row Kavi, um dos primeiros activistas pelos direitos LGBT na Índia e director da newsletter Bombay Dost, foi fundamental para que o príncipe Manvendra aceitasse a sua homossexualidade: “Ele retirou-me o sentimento de culpa, o peso na consciência. Garantiu-me que eu era normal”
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Eu até percebo por que agiram assim. Foram pressionados por outros membros de famílias reais, receosos que eu, o primeiro a ousar “sair do armário”, identificasse quem, entre eles, eram os gays e as lésbicas – e eu sei bem quem são. Em todo o caso, as acções dos meus pais foram consideradas ilegais pelo Supremo Tribunal da Índia.
A descoberta da minha homossexualidade não foi fácil. Eu tinha 13 anos e percebi que não me sentia atraído por raparigas.
A minha avó escolheu um rapaz de 12 anos para tomar conta de mim, porque eu não podia misturar-me com plebeus, e as mulheres e homens têm aposentos separados nos palácios. Foi com esse rapaz que percebi a atracção por pessoas do meu sexo.
Andávamos a cavalo e nadávamos. Eu não gostava de actividades desportivas e preferia ler livros e ouvir música clássica. Aos cinco anos, aprendi a tocar harmónio.
Ainda hoje tenho lições em Bombaim, onde vou frequentemente. Tenho aqui um grande apartamento (e uma antiga mansão, que aluguei a um banco), onde me instalo com os meus cinco criados.
A princípio, pensei que o casamento mudaria a minha orientação sexual. Julgava que era uma fase temporária. Estava confuso e não tinha ninguém com quem desabafar.

A participação no programa de Oprah Winfrey permitiu a reconciliação do príncipe com os seus pais, que antes o haviam repudiado por ser gay
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Comecei a ser apresentado a várias princesas e escolhi uma, Chandrika Kumari, de Jhabua, estado de Madhya Pradesh. Casámo-nos em 1991. Eu tinha 25 anos e ela 22. Foram 15 meses de fracasso.
Era uma relação de irmãos que não foi consumada. A princesa nunca chegou a saber que eu era homossexual. Nunca falámos no assunto. Ela pensou, inicialmente, que eu tinha outra mulher, mas depois convenceu-se de que não havia ninguém.
Em 1992, decidimos separar-nos e, no ano seguinte, anulámos o casamento. Em tribunal, assegurei que ela continuava virgem, e provei que não era impotente – ambos apresentámos atestados médicos.
Quando ela saiu do palácio, deu-me um conselho: “Por favor, que mais nenhuma rapariga seja infeliz por tua culpa.” Fiquei emocionado, e prometi que não voltaria a casar-me.
Por volta de 2000, começou a ser publicada uma newsletter chamada Bombay Dost (Amigo de Bombaim). Tinha uma tiragem limitada e eu comprava-a às escondidas. Lia-a na minha casa de banho. Comecei a corresponder-me com alguns leitores usando endereços de amigos, para ninguém me identificar.
Um dia telefonei a uma das pessoas que me escreviam e combinámos encontrar-nos na cantina da minha universidade.
Foi assim que conheci Ashok Row Kavi, o director de Bombay Dost, e o primeiro activista gay da Índia. Ele, curiosamente meu vizinho, retirou-me o sentimento de culpa, o peso na consciência. Garantiu-me que eu era normal.

Manvendra Singh Gohil ganhou celebridade quando entrou num reality show da BBC 3, Undercover Princes, juntamente com os príncipes Remigius Kanagarajah, do Sri Lanka, e Africa Zulu, da casa real sul-africana Onkweni: foi um convívio atribulado
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Em 2000, juntámos uns 60 homossexuais num dos meus palácios e, na presença de representantes do governo, fundei o Lakshya Trust, a primeira organização de prevenção contra o HIV/sida entre a comunidade gay de Bombaim. Dou a esta instituição, que tem três centros de aconselhamento e tratamento em Gujarat, 65 por cento dos meus rendimentos.
Em 2006, reconhecendo o valor do meu trabalho – também sou director da APCOM, uma coligação da Ásia-Pacífico que lida com a saúde sexual masculina –, as Nações Unidas atribuíram ao Lakshya Trust o Civil Society Award.
O prémio foi entregue pela Fundação Bill e Melinda Gates. O Lakshya Trust tem três centros em Gujarat. O seu trabalho é educar gays e toxicodependentes para prevenirem a propagação do HIV/ sida.
Planeamos também, para breve, a abertura de um hospício para doentes terminais. Temos cerca de 150 funcionários e ajudamos uns 17 mil homens.
A Índia tem 2,5 milhões de infectados – são dados oficiais, mais realistas do que os da ONU (que aponta para 5,7 milhões), porque se baseiam em censos locais, levados a cabo também com a nossa colaboração.
Não deixa de ser trágico, a Índia é segundo país do mundo, depois da África do Sul, mais assolado pelo HIV/sida. O problema é tanto mais grave quanto 80% dos gays são casados – a homossexualidade é um crime ao abrigo do Artigo 377 do Código Penal da Índia, resquício dos tempos coloniais. [Deixou de ser em 2018, numa decisão histórica do Supremo tribunal.]
Uma das nossas acções é distribuir preservativos, alertar para o risco de múltiplos parceiros e promover o sexo seguro.
Em 2006, eu já me sentia mais confiante. Quatro anos antes, tinha sido hospitalizado, com um colapso nervoso, porque a minha mãe insistia em que voltasse a casar-me para me curar do que ela considerava ser “uma doença”. Quando uma jornalista me pediu uma entrevista para falar sobre o meu papel no Lakshya (Alvo), decidi assumir-me, publicamente, como homossexual.
Não esperava o impacto que a notícia teria. Foi uma espécie de terramoto que fechou o país. A entrevista espalhou-se pela Índia. Estava em todos os noticiários, e ninguém falava em mais nada.

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Não foram só os meus pais que me repudiaram por “actividades objectáveis pela sociedade”, os 100 mil habitantes de Rajpipla queimaram as minhas fotos e efígies. Ir ao show da Oprah Winfrey, em 2007, foi como uma revolução nas mentalidades.
As reacções homofóbicas diminuíram, pelo menos em Rajpipla. Muitas pessoas desconheciam o meu activismo no Lakshya e ficaram sensibilizadas.
E as que beneficiavam da minha ajuda – dou aulas de ioga, ensino técnicas de agricultura biológica (tenho a minha própria quinta), faço doações para hospitais e escolas, ofereço oportunidades de emprego – voltaram a tratar-me como um nobre e não como um pária.
Participei depois numa parada gay na Suécia – o melhor lugar do mundo para os homossexuais viverem.
Fiquei impressionado ao ver ministros e deputados a desfilarem pelas ruas sem quaisquer complexos. Também entrei num reality show da BBC 3, Undercover Princes, juntamente com os príncipes Remigius Kanagarajah, do Sri Lanka, e Africa Zulu, da casa real sul-africana Onkweni.
Foram quatro episódios, uma hora cada [o último foi exibido este mês de Fevereiro de 2009], gravados numa casa em Brighton, onde assumíamos falsas identidades, em busca do “amor verdadeiro”.
Para não ser reconhecido, rapei o meu bigode, pela primeira vez. Fingi ser camareiro no New Madeira Hotel, e foi muito duro. Nunca antes tinha ido a um supermercado, e muito menos lavado pratos ou o chão.
Igualmente complicada foi a convivência com o príncipe zulu. Ele ficou escandalizado quando soube que eu era gay. Levou uma Bíblia, e avisou-me que era pecado um homem gostar de outro homem. Eu respondi que, felizmente, era hindu e que o Kama Sutra já existia antes de Jesus Cristo nascer.
Seja como for, encontrei o meu amor. Foi num bar, em Agosto de 2008. Ele chama-se Michael Lower e tem 35 anos. O programa jamais passará na Índia, por causa da criminalização da homossexualidade.
Não há cenas de sexo, mas há muitos abraços, beijos e mãos dadas. Levei-o para Rajpipla, e apresentei-o ao meu pai, que o aceitou – com as câmaras da BBC a gravar este encontro.
Foi uma bonita experiência, mas chegámos à conclusão de que não daria certo. Havia uma grande diferença social entre nós. Ele era empregado de um quiosque de jornais cujo dono é um indiano.
Eu sou um príncipe. Continuamos amigos. Falamos quase todos os dias, por telefone ou e-mail. Ele voltará em Outubro para assistir ao festival de música e belas-artes que eu organizo todos os anos.
Como é tão difícil encontrar um companheiro (há mais homens interessados no meu dinheiro do que em amar-me), decidi que, quando o meu pai morrer e eu subir ao trono, vou adoptar um filho. Será alguém, sensível e inteligente, da minha família alargada.
Não quero que esta linhagem termine comigo, que sou o 39º. Rajpipla era governado pelos Parmar, que não tinham herdeiros masculinos.
Uma princesa deste clã casou-se então com o marajá de Bhavnagar e um dos seus filhos foi adoptado pelos Parmar. Assim nasceu, com uma adopção, a minha dinastia Gohil.
(A partir de uma entrevista telefónica com o príncipe, em Bombaim, e uma troca de ‘e-mails’ com o jornalista Gareth McLean, do diário ‘The Guardian’, em Londres).

Em 2018, o príncipe Manvendra Singh Gohil prometeu abrir o seu palácio à vulnerável comunidade LGBT da Índia, sobretudo os que vivem sem-abrigo
© South China Morning Post
Este artigo, agora actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 22 de Março de 2009 | This article, now updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on March 22, 2009