Professora universitária, colunista dos mais influentes jornais económicos da Arábia Saudita, Reem Asaad liderou, entre 2008 e 2009, uma campanha original no Facebook [que foi bem sucedida em 2012]. Objectivo: proibir os homens de vender lingerie às mulheres no reino onde este emprego era, até então, exclusivamente masculino, apesar da extrema segregação dos sexos. (Ler mais | Read more…)

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A mulher foi feita da costela do homem. Não dos pés para ser pisada, nem da cabeça para ser superior, mas sim do lado para ser igual. Debaixo do braço para ser protegida e do lado do coração para ser amada
(Maomé, profeta do Islão)
Eman al-Nafjan não sabe precisar o ano em que deixou de comprar lingerie na Arábia Saudita. Mas lembra-se do “humilhante” momento. “Foi quando entrei numa loja para comprar um soutien e o empregado, olhando para mim, tapada com a minha abaya [túnica negra] da cabeça aos pés, exclamou: ‘Acredite em mim, sei melhor do que a senhora qual o seu número!’”
“Que presunção”, irritou-se Eman, autora de SaudiWomen Weblog, um dos mais populares blogues do reino, numa conversa telefónica. “E que paradoxo, num país onde vigora a segregação dos sexos, uma mulher ter de se sujeitar a regatear o tamanho da sua roupa interior com homens estranhos”!
Para evitar situações como esta, e como a que envolveu a sua irmã, “que ficou traumatizada, quando o empregado quase a expulsou gritando-lhe que não tinha nada para gordas”, a professora de Inglês Eman juntou-se à professora de Economia Reem Asaad numa campanha lançada no Facebook “BAN MEN FROM SELLING LINGERIE IN KSA” (Proíbam os homens de vender lingerie no Reino da Arábia Saudita).
O apelo ao boicote “não é um capricho de alguém que não tem nada para fazer”, sublinhou Hirah Azhar, na Saudi Gazette. Reem Asaad, a “mãe” desta campanha, é uma cidadã saudita nascida no Cairo em 1971.
Licenciada em Finanças e Investimento na Universidade Rei Abdulaziz, em Jidá, fez depois um mestrado na Northeastern University em Boston, nos Estados Unidos. Casada e com dois filhos, lecciona na Faculdade de Dar Al-Hekma, uma escola feminina privada para elites.
É também colunista do Al-Eqtesadiah, considerado o Financial Times saudita, e da Tadawul, revista mensal supervisionada pela Autoridade dos Mercados de Capitais, lida por todos os banqueiros e empresários do reino.
“A reacção do público tem sido muito positiva e refrescante”, exulta Reem Asaad, numa entrevista por e-mail. “Temos recebido apoio dentro e fora da Arábia Saudita. Os mais jovens são os mais entusiastas enquanto os mais velhos fazem mais perguntas. Não conseguimos ainda aquilatar o impacto que a campanha está a ter nas vendas mas, a avaliar pelas manifestações verbais de apoio, é grande o nosso sucesso.”
“Muitos dos retalhistas são franchises ou distribuidores locais de marcas internacionais [como La Senza, Mothercare, Womens’ Secret e Marks & Spencer] e é impossível controlar a sua contabilidade. Por outro lado, felizmente que é muito fácil tomar o pulso ao mercado fazendo perguntas às clientes. Sabemos, por isso, que estão a ser procuradas alternativas, como a Internet, as vendas em casa ou as compras no estrangeiro.”
Eman foi uma das que passou a comprar online ou nas viagens que efectua uma vez por ano. “Não suportava mais obrigar o meu marido a ir devolver as minhas peças íntimas para não sofrer novo embaraço”, justifica.
“Nas lojas não há provadores, excepto se forem women only [só para mulheres]. Se quisermos comprar, pagamos primeiro e depois vamos experimentar os artigos a uma casa de banho pública ou a casa. E às vezes nem sequer há possibilidade de troca, se excedermos o limite de 24 horas”, queixou-se Reem.

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Nas raras lojas de lingerie onde as mulheres estão atrás do balcão, “os mutawwin [agentes da Comissão de Promoção da Virtude e Prevenção do Vício] ordenaram que as montras fossem tapadas e que, à porta, fossem colocados guardas para impedir a entrada de homens”, acrescentou Eman, “uma liberal” de 30 anos e mãe de três filhos.
Ainda que revoltada, é às gargalhadas que ela desdenha das regras impostas pela polícia religiosa. “Invocam-se hadith [tradição oral do tempo do profeta Maomé] para dizer que as mulheres não devem trabalhar fora de casa, e muito menos nos shoppings, porque estes são o centro de todo o mal. E se forem, para fazer compras, devem ir acompanhadas de um guardião masculino que falará por elas – ouvir a voz feminina, dizem os teólogos, é como ver um corpo nu.”
Reem Asaad não quer entrar em polémica com o poderoso establishment religioso e fez da sua campanha uma luta contra a indústria retalhista.
“Eu defendo os direitos das mulheres consumidoras à sua privacidade”, frisa. “Não pretendo contornar o governo até porque o governo já aprovou uma lei, em 2006, que vai ao encontro das nossas reivindicações. O problema é que essa legislação jamais foi aplicada.”
Eman acredita que a lei não entra em vigor devido às pressões dos eruditos wahabitas, que fazem uma interpretação misógina dos textos islâmicos. Reem admite que o desemprego entre os homens possa também ser um factor para impedir que as mulheres trabalhem nas lojas de lingerie.
Nota, porém, que “este sector não atrai sequer muitos homens sauditas [Eman identifica-os como “egípcios, sírios e indianos, na sua maioria”] e, por isso, não afecta as oportunidades de emprego dos homens”.

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Num artigo publicado na edição electrónica do jornal saudita Arab News, Najah Alosaimi chamou a atenção para outro factor que estará a inviabilizar a aplicação da lei de 2006. Como todos os locais de trabalho no reino têm de ter espaços separados para mulheres e homens, alguns patrões não conseguem duplicar a área e temem ser perseguidos pelos implacáveis mutawwin.
Mais: a dependência em relação à mão-de-obra estrangeira, sobretudo nos serviços, faz com que seja difícil até para os homens sauditas competirem com os baixos salários pagos aos trabalhadores que vêm de fora.
“Isto significa que uma mulher saudita é, frequentemente, o menos atractivo e o mais problemático dos empregados que uma pequena empresa pode contratar”, observou Alosaimi. “Muitos [proprietários de lojas] optam por evitar o investimento adicional e o escrutínio social que isso acarretaria.”
Inquirida sobre se não é também discriminação laboral exigir que “só mulheres” possam trabalhar nas lojas de lingerie quando ela própria considera “inaceitável num mundo moderno” que só os homens o possam fazer, Reem Asaad responde: “Exigir que as mulheres sejam responsáveis pelas vendas e pelo serviço de clientes não impede que os homens entrem nas lojas.”
“Se compramos lingerie, é mais lógico comprar a uma loja com empregadas do que com empregados. Em sociedades ultraconservadoras temos de aceitar que as mudanças [como o fim da segregação dos sexos] virão gradualmente. Por agora, pedimos apenas uma prática que é habitual noutros países.”

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Analistas como Abeer Mishkhas, do Arab News, comentaram que a campanha no Facebook, não obstante esta ser uma das comunidades da web que mais têm crescido nos últimos anos, poderá terminar sem resultados porque “não está a desafiar uma lei ou um organismo concretos”.
A professora que atraiu homens e mulheres para a sua luta e tem no marido o seu “maior apoiante”, replica: “Estou optimista. Não preciso de me colocar contra instituições governamentais para mudar a lei. Acredito no poder do dinheiro, na consciencialização e no poder da razão.”
Reem Asaad evitou relacionar a sua campanha com mudanças anunciadas pelo rei Abdullah (1924-2015), designadamente, a nomeação da primeira mulher para o governo (ministra-adjunta da Educação de raparigas), Norah Al Fayez. Eman, por seu turno, acha que nenhuma lei conseguirá mudar a sociedade enquanto a sociedade não se mudar a si própria.
“Qualquer mudança será superficial. A população é, predominantemente, conservadora, e este é um movimento elitista que não tem muito eco”, lamentou. “A natureza familiar e tribal da Arábia Saudita faz de nós um país muito fechado.”
“Neste momento”, exemplifica Eman, “estou aqui no meu carro a olhar para outra mulher que não se consegue mexer para ajudar os filhos porque está totalmente coberta. Nem lhe vejo os olhos.”
“Eu só tapo o rosto quando saio com o meu marido – não é que ele exija, mas a família dele acha que outros homens não podem olhar para a minha cara quando estou com ele. Que absurdo, não é? Criam-se situações caricatas, pois não sabemos se o marido está a passear a mulher ou uma amante”.
Em 14 de Fevereiro, o Dia dos Namorados cuja celebração continua a ser proibida na Arábia Saudita, o rei não se limitou ao simbolismo de fazer entrar Norah Al Fayez na história de um país nascido apenas em 1932, o maior produtor mundial de petróleo e berço de Osama bin Laden.
Nomeou também o príncipe Faisal, seu cunhado, como ministro da Educação – um sector dominado pelos fundamentalistas; demitiu o chefe da polícia religiosa e o juiz presidente do principal tribunal do reino, ambos conhecidos pela sua crueldade e fanatismo; e fez representar no Grande Conselho dos Ulema, a principal autoridade religiosa nacional, as quatro escolas de pensamento ortodoxo sunita e não apenas a rígida hanbalita.
As outras são a hanafita, a shafita e a malikita – todas devendo o nome aos seus fundadores, juristas escolhidos pelos primeiros imperadores abássidas para clarificar o fiqh ou direito canónico islâmico.
A hanbalita foi fundada por Ahmed ibn Hanbal e mostrou-se, desde o início, hostil a qualquer inovação, não admitindo qualquer fonte de lei que não fossem o Corão e a Suna.
A hanafita, pelo contrário, é a menos rígida e a mais antiga. Criada pelo persa Abu al-Hanaf, foi o sistema adoptado pelos turcos otomanos, incapazes de provar legitimidade como descendentes, mesmo que remotos, de Maomé. Foi a escola que o Ocidente melhor acolheu durante o período colonial.

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Alguns jornais cunharam a expressão “Primavera saudita” para classificar as medidas de Abdullah mas F. Gregory Gause, um dos maiores especialistas na região, autor de Oil Monarchies: Domestic and Security Challenges in the Arab Gulf States, pede cautela.
“Não tenho a certeza de que possamos falar em ‘reformas’, pelo menos, não ainda”, afirmou, numa entrevista que me deu, por e-mail. “Tratou-se de nomeações e não de políticas. Temos de esperar para ver quais políticas que os recém-nomeados vão adoptar. O caminho é claro, em direcção ao que caracterizamos como visões mais ‘liberais’ de educação e tolerância religiosa, mas temos de aguardar mudanças no terreno.”
Doutorado em Política Internacional pela Universidade de Harvard, antigo investigador da Rand Corporation e da Brookings Institution, agora professor na Universidade de Vermont, Gause concorda com os que vêm nas decisões recentes do rei o desígnio de manter a Casa de Saud no poder.
No entanto, constata que, para Abdullah, a garantia de sobrevivência e estabilidade não estará em manter posições conservadoras, mas em enveredar por “um rumo mais liberal (até que ponto, permanece uma questão em aberto).”
Significa isto que a Casa de Saud está fracturada entre “reformistas” e “fundamentalistas”? “Creio que é um erro ver uma divisão fundamental e insuperável na família real”, respondeu Gause. “Isso seria demasiado simplista. Todos os príncipes mais velhos querem que a família permaneça no poder e preserve a estabilidade e paz social.”
“Duvido que o rei pudesse ter efectuado todas estas nomeações [de 14 de Fevereiro] sem o apoio substancial dos principais membros da família. Poderá haver alguns príncipes ressentidos, mas não há qual sinal de cisão depois” do decreto de Abdullah.
Para Gause, “mais interessantes” do que as nomeações para o Conselho Consultivo foram as nomeações para o Conselho dos Ulema. “Nomear um xiita teria sido um grande passo, mas ao escolher outras escolas sunitas já quebrou o monopólio hanbalita/wahabita e foi uma mudança curiosa.”

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Sobre Norah Al Fayez, o académico americano não quis especular. “Gostava de ter uma previsão confiante sobre o que ela vai fazer ou sobre o futuro das mulheres no reino, mas não tenho. É uma questão muito sensível e controversa entre muitas circunscrições. Temos de esperar.”
“O que sei é que as mudanças no sistema educativo (alguns textos escolares têm estado a ser revistos) são, em parte, uma resposta aos ataques de 11 de Setembro [de 2001 nos EUA] e à emergência de um movimento de oposição salafista fabricado na Península Arábica. São também uma resposta às transformações económicas no reino e no mundo.”
“Para a maioria dos sauditas”, conclui Gause, “os factores económicos foram mais determinantes. Com uma maior independência do sector privado surgiu a necessidade de preparar melhor os cidadãos para os empregos nessa área, de outro modo o número de trabalhadores estrangeiros não deixaria de crescer.”
“É a demografia, o facto de haver uma grande fatia de população jovem e a necessidade de lhes arranjar postos de trabalho, que gerou, em grande parte, a reforma educativa.”
[Em 2012, o rei Abdullah decretou que todos os funcionários das lojas de lingerie e cosméticos para mulheres deveriam ser substituídos por empregadas. Em declarações à AFP, Reem Asaad exultou: “Esta era uma campanha para despertar a consciência social e dar mais visibilidade à força activa feminina. Conseguimos atingir os nossos objectivos”.
No mesmo ano, a “Arabian Business Magazine” colocou Reem Asaad no terceiro lugar da lista de “50 mulheres mais influentes do mundo árabe”.]

A Business Arab Magazine colocou, em 2012, Reem Asaad em terceiro lugar na sua lista das “50 mulheres mais poderosas” do Médio Oriente
© Reem Asaad
Este artigo, agora actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO, em 22 de Março de 2009 | This article, now updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on March 2, 2009