Khamenei: Só ele pode abrir a porta do Irão à América

Nem ditador nem democrata, como escreveu o analista Karim Sadjadpour, o Supremo Líder consolidou, desde 1989, quando sucedeu a Khomeini, o papel de “fiel da balança”, que mantém o equilíbrio entre conservadores e reformistas. A prioridade número um é garantir que o regime sobreviverá à sua morte. (Ler mais | Read more…)

Todos os poderes na República Islâmica do Irão – político, militar e judicial – estão nas mãos do Ayatollah Ali Khamenei, o sucessor de Khomeini
© CNN

Em Junho de 1989, os iranianos foram buscar uma Prova do Islão (hojjat ol-Islam) para suceder a um Sinal de Deus (Ayatollah al-Ozma ou Grande Ayatollah) como Supremo Líder (Vali-e Faqih). Vinte anos depois, Ali Khamenei, o herdeiro de Ruhollah Khomeini, controla todos os centros de poder – político, religioso, militar e judicial. A eventual normalização de laços com os Estados Unidos dependerá dele – porque é uma questão de vida ou morte do regime.

Para entender o homem que não desperta paixões na República Islâmica, o analista Karim Sadjadpour, analista do Carnegie Endowment for International Peace, em Washington, tentou descodificar os seus discursos proferidos nas últimas duas décadas.

A conclusão a que chegou foi: “Nem ditador nem democrata – mas com traços de ambos – Khamenei é o mais poderoso indivíduo de um regime faccionado e autocrático. Embora não tome decisões nacionais de sua iniciativa, também nenhuma decisão pode ser tomada sem o seu consentimento.”

Ainda que as vozes mais audíveis no exterior sejam as dos antigos presidentes da República – Ali Akbar Hashemi Rafsanjani (1989-1997), Mohammad Khatami (1997-2005) e Mahmoud Ahmadinejad –, a verdadeira força por detrás de todos eles tem sido o sucessor de Khomeini.

“Ele resistiu ao desejo de Rafsanjani de chegar a um modus vivendi com Washington; à aspiração de Khatami de um Estado mais democrático e ao impulso de Ahmadinejad de permanente confronto”, apesar de favorecer sempre os conservadores em detrimento dos reformistas, escreveu Sadjadpour em Reading Khamenei: The World View of Iran’s Most Powerful Leader.

O homem de turbante negro e barba branca é o único que poderá abrir o punho para aceitar a mão estendida de Barack Obama.

[Um acordo histórico sobre o controverso programa nuclear com os cinco Estados membros do Conselho de Segurança da ONU mais a Alemanha (P5+1) foi concluído a 14 de Julho de 2015, resultado de intensas negociações conduzidas por dois chefes de diplomacia incansáveis: John Kerry, de Washinton, e Mohammad Javad Zarif, de Teerão. O acordo seria depois renegado por Donald Trump.]

Khamenei nasceu em 1939, em Mashad, no Nordeste do Irão. Oriundo de uma família pobre (não raras vezes as refeições eram “pão com sementes”), é o segundo de oito filhos de um teólogo de origem azeri.

Aos 5 anos, iniciou os estudos religiosos no modesto hawza (seminário) local. Em 1957, ingressou no grande centro teológico de Najaf, no Iraque, e no ano seguinte foi para Qom – cidade santa xiita iraniana, púlpito de onde Khomeini atacava o Xá Mohammad Reza Pahlavi.

Khamenei deu “carta branca” ao Presidente eleito em 2013, Hassan Rouhani, para negociar com os EUA de Barak Obama
© Wall Street Journal

O pensamento político de Khamenei começou por ser influenciado pelo pregador radical Navab Safavi. Dos primeiros a advogar uma Revolução Islâmica, foi executado pelo imperador, em 1955, sob a acusação de envolvimento no assassínio de vários intelectuais e membros do governo.

Posteriormente, em 1964, quando o Xá forçou Khomeini a exilar-se em Najaf, Khamenei tornou-se num dos seus mais leais discípulos, propagando o conceito de velayat-e faqhi (governo do jurista) que, rompendo com a tradição xiita, daria poder temporal aos religiosos.

Devido às suas actividades subversivas, Khamenei foi preso pela SAVAK, pelo menos seis vezes, nos anos 1960 e 1970. Torturado e mantido em isolamento nos longos períodos que passou na cadeia, aqui reforçou o ódio aos EUA e a Israel, porque a CIA e a Mossad treinaram a polícia secreta do último Xá Pahlavi.

Estava Khamenei desterrado numa área remota do Sistão-Baluchistão quando Khomeini regressou, triunfante, do seu último exílio, em França, em 1979.

Por ter sido fiel ao mentor, foi recompensado com vários cargos importantes no novo regime: ministro da Defesa, supervisor dos Pasdaran, ou Guardas da Revolução, e líder das orações de sexta-feira em Teerão.

Em Junho de 1981, durante uma conferência de imprensa, uma bomba escondida num gravador explodiu próximo de Khamenei, causando-lhe ferimentos graves. Nunca mais conseguiu mexer o braço direito.

O atentado foi reivindicado pelos Mujahedin-e Khalq (MEK, Combatentes do Povo), grupo de resistência armada, que ajudou Khomeini a derrubar o Xá mas depois foi marginalizado, tal como os comunistas, os sociais-democratas e os nacionalistas, que lutavam por uma democracia.

O MEK tornar-se-ia um grupo odiado pela maioria dos iranianos por se ter aliado a Saddam Hussein na sangrenta guerra que o Irão e o Iraque travaram entre 1980-1988.

Khamenei com Rafsanjani, que fez dele Supremo Líder e se tornou depois um dos seus maiores adversários políticos
© iranthisway.com

Khamenei vingou-se: entre Agosto de 1988 e Fevereiro de 1989, seguindo uma fatwa (édito) de Khomeini, mandou executar uns 10 mil opositores. Alguns tinham 15-16 anos e outros estavam prestes a concluir as sentenças. Foram enterrados em valas comuns em Khavaran – este ano [de 2009], os memoriais erguidos por familiares começaram a ser destruídos por bulldozers, para apagar o passado de vergonha.

Em Outubro de 1981, os MKO voltariam a atacar, quase decapitando a liderança do, entretanto dissolvido, Partido Revolucionário Islâmico (PRI): mais de cem dirigentes foram mortos, entre eles, o Presidente da República, Mohammed Ali Rajaii.

Aos 42 anos, um relutante Khamenei foi escolhido para suceder a Rajaii. Venceu duas eleições, com o apoio de Khomeini, e exerceu o cargo até 1989, ano em que o voltaram a chamar para ocupar o lugar de outro.

Khomeini tinha um sucessor designado, o Ayatollah Hussein-Ali Montazeri, mas este tornou-se demasiado crítico do rumo que o país levava, e caiu em desgraça.

Como a Constituição da República Islâmica exigia que o Supremo Líder fosse um Grande Ayatollah, Khomeini ordenou uma revisão do texto, em Abril de 1989, três meses antes de morrer, definindo para o seu herdeiro o único requisito de ter “competências políticas e de gestão adequadas”.

Quem muito contribuiu para a ascensão de Khamenei foi Rafsanjani, então presidente do Majlis (Parlamento) que, em Junho, convenceu a Assembleia de Peritos a aprovar – 60 votos a favor e 14 contra – a escolha de Khamenei.

Apesar de as elites religiosas em Qom se terem sentido ultrajadas com a repentina promoção de Khamenei de hojatoleslam a ayatollah, ele contou com o apoio das elites políticas, incluindo Ahmad, o filho de Khomeini, em tempos considerado potencial sucessor.

“Uma vez ao leme da mais importante instituição iraniana, Khamenei começou, lenta e metodicamente, a consolidar o seu poder”, explica-me Mohsen Milani, autor do livro The Making of Iran’s Islamic Revolution: From Monarchy to Islamic Republic.

“Ele domina tudo, desde os Pasdaran aos serviços secretos, das Bonyads [fundações de “caridade” que gerem milhões de dólares] aos imãs das orações de sexta-feira, da milícia Basij aos tribunais.”

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Khamenei com Mohammad Khatami, o Presidente que o Supremo Líder boicotou, impedindo que as suas políticas reformistas fossem aplicadas
© Direitos Reservados | All Rights Reserved

Khamenei tornou-se intocável – é o único líder que não pode ser criticado. Fazê-lo é quase certeza de pena de prisão. Nem familiares estão isentos de castigo. Um dos seus irmãos foi brutalmente espancado por milicianos por constatado que “o Guia tem demasiado poder”.

Com eleições presidenciais marcadas para 12 de Junho [de 2009], a influência que o Supremo Líder poderia ter no resultado voltou a ser mencionada. Mohsen Milani, um dos mais proeminentes académicos iranianos, a residir desde 1966 nos EUA, onde lecciona na University of South Florida, acha(va) que Khamenei se (iria) “manter afastado publicamente – embora em privado, (pudesse) apoiar Ahmadinejad” contra Khatami.

Os dois mandatos de Khatami foram marcados por um mau relacionamento com Khamenei. “Creio que a raiz da tensão era a percepção, em alguns círculos, de que a ênfase do Presidente em reformas democráticas pudesse abrir uma caixa de Pandora com imprevisíveis consequências para a República Islâmica”, afirmou Milani, numa entrevista por telefone.

“A tarefa de Khamenei era manter o equilíbrio e havia o receio de que as políticas seguidas por Khatami pudessem abalar a integridade do sistema.”

Alex Vatanka, analista do Centro de Estudos de Estratégia Janes’s Information Group, em Washington e um dos maiores especialistas em Irão, lembra que, em 2005, Khamenei aconselhou Rafsanjani a não se candidatar contra Ahmadinejad.

No entanto, o Conselho dos Guardiões, que decide quem pode ou não concorrer, aceitou o nome do ex-Presidente “porque ele representa a República Islâmica e desqualificá-lo provocaria uma cisão na hierarquia religiosa”, diz-nos, por telefone.

Ali Khamenei com Guardas da Revolução, um pilar da sua omnipotência
© Associated Press | The New York Times

O facto de Rafsanjani ter sido derrotado nas urnas expôs bem a influência de Khamenei. Vatanka não excluiu que os 12 membros do Conselho de Guardiões pudessem chumbar Khatami – “não é tão poderoso quanto Rafsanjani” – mas acredita(va) que o Supremo Líder não estaria interessado em hostilizar o campo reformista.

“Khatami pode ser diferente de Ahmadinejad, mas é leal à República Islâmica e apenas a pretende reformar; não é um liberal como alguns no Ocidente julgam. Khamenei tem de ser muito cuidadoso. Preocupa-se com o que vai acontecer depois dele. Não pode arriscar um conflito interno que faça cair o regime.”

Vatanka também estava convencido de que Khamenei quer normalizar os laços com os EUA, cortados há (mais de) 30 anos. “Em 2000, quando Madeleine Albright, no seu famoso discurso, na Asia Society, disse que ‘o Irão era governado por dois tipos de Mullahs: os bons, como Khatami, e os maus, como Khamenei’, este afastou-se, assim que foi incluído na categoria dos maus.

No entanto, se Barack Obama garantir que não vai interferir nos assuntos internos do Irão, que apenas quer cooperar em questões como o Iraque, o Afeganistão, o nuclear e o petróleo, o jogo muda.”

A atitude de Khamenei tem sido a de “gerir as expectativas”, observou Vatanka. “Quer ver se Obama muda apenas de táctica ou de estratégia. O ayatollah reconhece que não pode travar um combate com o mundo inteiro. Sabe que não pode contar com a China e a Rússia para sempre. Estas relações são apenas casamentos de conveniência que podem acabar da noite para o dia.”

Khamenei, frisa Vatanka, “é a voz mais poderosa no Irão, mas não é um Saddam Hussein, um Kim Jong-il e nem sequer um Fidel Castro. É a voz mais influente devido à estrutura institucional no país. É ele que mantém a paz. Sem Khamenei, o fiel da balança, o regime já se teria partido. Ele permite que o regime flutue, dando um pouco à esquerda e um pouco à direita.

“Mas, o regime parece estar a viver um dia de cada vez, e o povo iraniano não pode suportar, pelo menos a nível económico, um regime que só esteja empenhado em sobreviver politicamente. Khamenei sabe disso. Se sentir que a pressão diminui, que os EUA desistiram de uma acção militar, ele facilitará maior participação política – e Khatami poderá beneficiar.”

Se a sobrevivência do regime é um fardo nas costas de Khamenei, o que acontecerá se ele morrer? Médicos e conselheiros têm admitido em privado, segundo o biógrafo Karim Sadjadpour, que o ayatollah “tem crises de depressão, o que justifica a incapacidade de tomar decisões difíceis e a preferência em manter statu quo” – nem acomodar nem confrontar o Ocidente. Também se especula que sofre de cancro na próstata.

Para suceder ao fundador da República Islâmica, em 1989, Khamenei teve de ser “promovido à pressa” de hojatoleslam a ayatollah, o que gerou controvérsia nos centros teológicos xiitas
© Associated Press

Mohsen Milani alerta: “Não temos fontes fiáveis para avaliar a situação. A sucessão é um assunto muito sensível.”

Vatanka assegura: “Khamenei é idoso, tem 79 anos, mas não está doente nem fragilizado. Não mexe um braço e tem dores desde o atentado dos MEK, mas poderá viver mais una 20 anos. Não devemos pôr muita ênfase na sua saúde.

“Os teólogos xiitas costumam ter vida longa. O regime enfrenta grandes desafios, mas não está à beira do colapso. A questão é saber se vai enfrentar os desafios numa base diária ou com um plano a longo prazo. Se achar que tem uma arma apontada à cabeça, a sobrevivência estará sempre em primeiro lugar.”

Para Sadjadpour, o candidato “mais óbvio” a futuro Supremo Líder é Rafsanjani, mas há alguns impedimentos, um deles a idade (cinco anos mais velho que Khamenei), ser imberbe e usar turbante branco e não negro – sinal de descendência do profeta Maomé.

O problema maior, porém, é a reputação de “homem mais rico do Irão”, o que atiça inveja, e a de “secretamente planear um acordo com os EUA”, o que faz com que o establishment conservador o acuse de “corrupção e laxismo social”.

Outro potencial sucessor seria o Ayatollah Mahmoud Hashemi Shahroudi, chefe dos juízes. Com credenciais religiosas e experiência política, agrada a moderados e duros, mas o seu insuperável “defeito” é ter nascido e sido criado no Iraque, falar persa com sotaque árabe – difícil de aceitar por uma população profundamente nacionalista.

Assim, não havendo herdeiros óbvios, Sadjadpour admite que o velayat-e faqhi seja entregue a um Shura (conselho) de religiosos. Mas quem seriam eles? A escolha cabe aos 86 teólogos da Assembleia de Peritos, presidida por Rafsanjani.

Os reformadores gostariam de um triunvirato Rafsanjani-Khatami-Mehdi Karroubi (antigo presidente do parlamento que também concorre às eleições de Junho). Os fundamentalistas preferem os ayatollahs Mohammad-Taqi Mesbah-Yazdi (conselheiro espiritual de Ahmadinejad), Mahmoud Hashemi Shahroudi e Ahmad Jannati Massah (presidente do Conselho dos Guardiões).

Concluiu Sadjadpour: “A fraqueza de Khamenei tem sido, ironicamente, a força do Irão; se o seu ‘reinado’ provou alguma coisa foi a de que a estabilidade da República Islâmica não depende de um líder popular e carismático”.

Alex Vatanka

Mohsen Milani

Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 15 de Fevereiro de 2009 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on February 15, 2009

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