Salónica: A cidade onde tudo foi possível

Um dos maiores historiadores dos Balcãs, Mark Mazower, escreveu a “história da história” dos judeus, cristãos e muçulmanos num lugar único. O seu livro é uma obra-prima. (Ler mais | Read more…)

La Rotonde de Galère / Saint-Georges, transformée en mosquée, à Thessalonique. @DR (D

A Rotunda de São Jorge, transformada em mesquita, em Salónica

Foi há mais de 20 anos que Mark Mazower visitou pela primeira vez Salónica, um lugar que alguém designou de “único na história da Europa e da humanidade”. Chegou de comboio, de mochila às costas e saiu da estação em busca do centro da cidade. Rapidamente se apercebeu que “fora transportado para outro mundo”.

Foi dessa viagem e de posteriores visitas que resultou Salónica, Cidade de Fantasmas – Cristãos, Muçulmanos e Judeus de 1430 a 1950 (Ed. Pedra da Lua, 2008), um livro de 574 páginas, onde um dos maiores historiadores dos Balcãs nos apresenta “uma narrativa não apenas de suaves transições e adaptações, mas também de violentos desfechos e novos começos”.

Descodifiquemos primeiro o significado etimológico de Salónica – que Mazower ironiza ser um “pesadelo para os organizadores de índices e um deleite para os linguistas”.

A cidade tem o mesmo nome de Tessalónica (Thessaloniki, em grego), filha de Filipe da Macedónia, que assim celebrou o seu triunfo (niki) sobre a Tessália quando expandia o seu domínio pela Grécia.

Para nos oferecer a “história da história” de Salónica, Mazower mergulhou em inesgotáveis fontes e é com notável erudição que nos guia desde 1430, quando a cidade que “já gozara 1700 anos de vida como metrópole helénica, romana e bizantina” caiu em poder do sultão otomano Murad II, até 1950.

Depois de décadas de singular coexistência multiétnica, multiconfessional e multilinguística (mas não “multicultural” – um “conceito moderno” que envolve política de massas no sentido convencional, como Mazower tem frisado em entrevistas), os muçulmanos tornaram-se turcos e os cristãos passaram a gregos, devido a transferências forçadas de populações.

Os judeus, para quem Salónica tinha sido refúgio e libertação, que rezavam em sinagogas com nomes como Lizbon, Evora ou Portukal, que comiam “pastel de kweso” e “fijones kon karne”, não voltaram para Sefarad (Península Ibérica), de onde muitos haviam sido expulsos no século XV.

Deportados pelos alemães (45 mil em menos de seis semanas), a maioria foi exterminada nas câmaras de gás de Auschwitz, durante o Holocausto.

etail, from Vlatadon Monastery). Thessaloniki , with a history dating back to 315 BC @

Vista do Mosteiro de Vlatadon, em Salónica – a sua história remonta a 315 a.C.

Professor na Universidade de Columbia, nos EUA, o britânico Mazower é brilhante no modo como relata o passado de Salónica recorrendo a uma multiplicidade de citações contemporâneas.

O seu estilo “é seco, por vezes académico mas nunca sem compaixão”, notou Robert Kaplan, no jornal The New York Times: “Ele faz-nos ver coisas pelos olhos de um grego numa página, de um judeu ou de um turco noutras.”

“Pode dizer-se que este é o triunfo do livro: quando o leitor está prestes a simpatizar com o sofrimento de um grupo, Mazower avança a narrativa para o ponto de vista de outro.”

Esse meticuloso esforço de equilibrar emoções é palpável num dos capítulos mais tocantes do livro, o do genocídio (pp. 417-438).

Depois de termos acompanhado a incrível vida dos judeus de Salónica – um grupo tão numeroso e excepcional que teve conselheiros na corte e operários socialistas, conciliou o Talmude com a Sharia (lei islâmica) e encontrou um “messias” num convertido ao Islão – a descrição das acções das tropas nazis, de Abril de 1941 a Outubro de 1944, é tão brutal que quase nos faz esquecer os restantes habitantes da cidade.

Quase.

Estamos nós petrificados a “testemunhar” a humilhação pública (incluindo a privação de alimentos e depois a pilhagem e destruição de propriedades) de “todos os judeus do sexo masculino, com idades compreendidas entre os 18 e os 45 anos”, no dia 8 de Julho de 1942, por ordem do comandante da Wehrmacht em Salónica, e logo a seguir Mazower iliba de culpa os cristãos da cidade, ainda hoje suspeitos de anti-semitismo.

Lembra-nos que alguns deles colocaram as suas vidas em perigo, oferecendo casas ou vagões para acolher os perseguidos.

Leia-se a transcrição que o autor fez de uma conversa à beira-mar do judeu Jacques Stroumsa que sobreviveu a Auschwitz, onde os pais e a mulher grávida foram mortos, e voltou à sua cidade para uma breve passagem.

“Fumava cigarro atrás de cigarro, com medo que as lágrimas saltassem. Um amigo meu, ortodoxo grego, encontrou-me sozinho por volta da meia-noite, e disse-me: ‘Compreendo-te Jacques. Já não sabes bem onde ir em Salónica, a cidade onde, em tempos, conhecias as pedras uma a uma’.” (p. 457)

The Arch of Galerius in the Ottoman period @DR

O Arco de Galério, no período otomano, nas proximidades de Salónica

Também para com os Otomanos, Mazower é compassivo – reconhece-lhes tolerância e um poder sofisticado – e lamenta que os gregos, mais predispostos agora a honrar a memória judaica, ainda não se tenham reconciliado com o legado turco, quase apagado.

Assim, quem nunca visitou ou já visitou a cidade que judeus, cristãos e muçulmanos consideravam uma dádiva divina (“E não se costuma dizer que onde está Deus tudo é possível?”, pergunta Mazower) irá olhá-la, seguramente, de uma outra forma depois de ler este livro, com fotos e ilustrações dos velhos tempos, bem traduzido e com um belíssimo grafismo.

Pacheco Pereira, no seu blogue, Abrupto, deixou uma promessa: “Se lá voltar, não tornarei a pisar o chão da universidade de Salónica, construída por cima do vasto cemitério judeu, vandalizado e pilhado, sem me lembrar de que muitos dos mortos que lá ainda continuam por debaixo do betão, devem ter tido nomes portugueses.”

Nuno Guerreiro, autor de outro blogue, Rua da Judiaria, deixou-nos para reflectir um poema de um escritor “que se considerava a si próprio um descendente de judeus portugueses fugidos da Inquisição”, Jorge Luís Borges (A Chave em Salónica).

Está lá também uma canção, Morenica, cantada por Savina Yannatou, do álbum Primavera en Salonico.

Mark Mazower, o autor deSalónica, Cidade de Fantasmas - Cristãos, Muçulmanos e Judeus de 1430 a 1950 @DR

Mark Mazower, o autor de Salónica, Cidade de Fantasmas – Cristãos, Muçulmanos e Judeus de 1430 a 1950, livro sobre “um lugar único na história da Europa e da Humanidade”

Este artigo foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO, em 19 de Dezembro de 2008 | This article was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on December 19, 2008

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