Robert Fisk não gosta que lhe chamem “repórter de guerra”, mas escreveu A Grande Guerra pela Civilização, livro repleto de batalhas e massacres. (Ler mais | Read more…)

A Grande Guerra pela Civilização, de Robert Fisk, é um livro de história, uma autobiografia, um manual de jornalismo e também tributo ao pai do autor, soldado na I Guerra Mundial – a que marcou as fronteiras de regiões onde, nos últimos 30 anos, “Bob” tem testemunhado “crimes contra a humanidade”
© New World Notes
Robert Fisk diz-nos que está sentado no seu apartamento, com uma magnífica varanda com vista para o Mediterrâneo, em Beirute, na mesma rua onde viu o amigo Rafiq Hariri, ex-primeiro-ministro libanês, “a arder” depois da explosão de um carro armadilhado que o matou em 2005.
O contacto foi estabelecido por SMS – Fisk diz que não usa Internet nem e-mail. A conversa, por telefone fixo, durou duas horas.
A voz é segura e sonora, talvez reflexo de 25 por cento de surdez causada pelos canhões disparados durante a guerra Irão-Iraque de 1980-1988.
Fala com sabedoria, palavras e frases cuidadas, como se estivesse a ler um artigo recém-escrito para o seu The Independent – o diário que o acolheu em 1989, depois de terminar 18 anos de “colaboração leal” com The Times.
Abandonou este jornal, que o enviou para Portugal em 1976, quando começou a ver os seus artigos “censurados politicamente” pelo novo proprietário, o magnata Rupert Murdoch.
Não perdoa ao Sindicato dos Tipógrafos “socialista” ter inviabilizado a reestruturação tecnológica que o anterior dono, “o filantrópico Lord [Roy] Thomson”, queria introduzir para evitar a falência.
A demissão não foi o fim de carreira do jornalista polémico que já havia escrito uma obra monumental, Pity the Nation – Lebanon at War (1990), antes de, em 2005, se lançar na Grande Guerra pela Civilização – A Conquista do Médio Oriente, agora na versão portuguesa das Edições 70.
Este é um livro de História, uma autobiografia, um manual de jornalismo e um tributo ao pai, soldado na I Guerra Mundial – a que marcou as fronteiras das regiões onde nos últimos 30 anos “Mr. Robert”, “Bob” ou “Fisky” tem testemunhado muitos crimes contra a humanidade.
Ganhou sete vezes o prémio International Reporter of the Year, dois British Press Award, e duas vezes o mais distinto prémio do jornalismo britânico – Journalist of the Year. Tem 61 anos e não se arrepende de ter escolhido uma profissão onde “é preciso sobreviver para contar a história”. Dia 9 [de Dezembro de 2008] está em Lisboa, para falar do seu livro na Universidade Nova.

“Depois do que fizemos no Médio Oriente nos últimos 100 anos, ninguém se deveria surpreender por tanta gente nos odiar”, diz Robert Fisk. “[No livro] tentei explicar isto com o que vi: guerra, tortura, traição, violações, todo o tipo de atrocidades” (Na foto, protestos de palestinianos, em Jerusalém, contra a política americana que apenas protege os interesses de Israel)
© Getty Images | Newsweek
Ainda sabe falar e ler português?
Posso ler português facilmente, porque fiz o meu primeiro curso em latim e linguística. Quando estive no Brasil, o ano passado, achei muito fácil a leitura do jornal ‘A Folha de São Paulo’. Posso entender muito bem a língua portuguesa – falada não, mas escrita. Também consigo ler esse magnífico poeta que vocês têm, Pessoa, apenas porque sei latim.
Tem livros de Fernando Pessoa?
Sim…
Quais?
Não os tenho aqui em Beirute, mas na Irlanda. Agora, não me lembro dos títulos. São colectâneas de poemas. Quando estava na Irlanda do Norte [a fazer a cobertura dos Troubles, o conflito entre republicanos e leais à Coroa britânica], fui enviado para Portugal, para fazer reportagens sobre o pós-revolução de Abril.
Quando abria os jornais da manhã – oh, e naquela altura havia tantos jornais da manhã! -, eu conseguia lê-los sem grande dificuldade, embora com a ajuda de um dicionário. Muito pouco tempo depois, fui enviado para o Médio Oriente. Acabei por ficar em Portugal apenas três meses como correspondente.
Chegou em 1976?
Sim, no início de 1976, e parti na Primavera [Abril] para o Líbano, onde estou agora e continua a ser a minha base desde há mais de 30 anos.
Em A Grande Guerra pela Civilização, refere uma conversa com um conselheiro político do Ministério Iraniano dos Negócios Estrangeiros em que menciona a revolução portuguesa de 1974 como um bom exemplo – “não teve pelotões de fuzilamento” -, embora, posteriormente, refira que os portugueses se “cansaram da fase cordata e burguesa” da sua revolução. Que memórias tem desse tempo?
Bem, vou tentar lembrar-me de algo que aconteceu há mais de um quarto de século. A minha memória já não é o que era, mas lembro-me que o problema em cobrir a revolução portuguesa continua a ser o problema de cobrir o Médio Oriente.
Os repórteres andavam atrás de uma narrativa que foi delineada pela embaixada dos Estados Unidos, pelo Governo americano, pelo Governo britânico…, em vez de investigarem o que realmente estava a acontecer.
Fiquei muito impressionado com o facto de ser quase o único jornalista ocidental em Beja a ver os comunistas apoderarem-se dos latifúndios no Alentejo. Os outros estavam em Lisboa a noticiar o que as embaixadas diziam.
Uma das coisas que a revolução portuguesa me ensinou foi a de que não basta só falar com primeiros-ministros e presidentes. Fiz uma longa entrevista a [Mário] Soares e foi muito aborrecido. Não fiquei a perceber nada de Portugal nessa conversa.
Não porque ele estivesse a tentar ensinar-me alguma coisa de Portugal, mas porque aprendi muito mais indo para o país real. Naqueles tempos, o mais importante foi tomar consciência de que aquilo que as pessoas diziam não era o que vinha escrito nos jornais.

“Cobrir a revolução portuguesa [em 1974] continua a ser o problema de cobrir o Médio Oriente”, diz Robert Fisk. “Os repórteres andavam atrás de uma narrativa que foi delineada pela embaixada dos Estados Unidos, pelo Governo britânico…, em vez de investigarem o que realmente estava a acontecer. (…) Naqueles tempos, o mais importante foi tomar consciência de que aquilo que as pessoas diziam não era o que vinha escrito nos jornais”.
© Alfredo Cunha
No seu livro diz que tinha 29 anos, estava de férias em Porto Covo, quando recebeu o convite do Times para ser correspondente no Médio Oriente, e viu-se como Faisal quando lhe ofereceram o Iraque. Pode explicar este sentimento?
Repare, aos 29 anos estava a ser-me oferecido o melhor emprego do jornal. A carta, que ainda guardo, do meu antigo editor da secção Internacional, dizia-me que [ir para o Médio Oriente] seria uma grande aventura numa terra com muito sol.
Ele estava certo no que diz respeito ao sol. Claro, para mim, aos 29 anos, era uma extraordinária oportunidade de ir para um dos lugares mais excitantes do mundo, onde a História estava a acontecer. E eu sei o que isso significava.
O meu pai foi um soldado na I Guerra Mundial. Eu sabia a importância que a História tem. Para mim, isto era algo que nunca imaginara. [Receber este convite] aos 40, 50 anos, talvez, mas nunca aos 29 anos. E foi assim que parti para o Médio Oriente – e foi muito duro. Não imaginava que iria passar aqui mais de metade da minha vida.
Tem dito e escreveu que Correspondente Internacional (1940), de Alfred Hitchcock, que viu aos 12 anos, foi uma das razões que o levou a ser jornalista. O senhor diz que queria ser como o protagonista, “um dos soldados da imprensa”, mas não gosta que lhe chamem “repórter de guerra”. Por outro lado, este seu livro é, também, um relato de várias guerras. Como explica isso?
Eu faço a cobertura do mundo muçulmano. Se aceitasse que me chamassem “correspondente de guerra”, isso significaria que o mundo muçulmano é a guerra. Mas não é: é cultura, é teatro, é música, é comida, é povo, é geografia, é história. Quando se aplica a etiqueta de “correspondente de guerra”, estamos a fazer com que um povo seja olhado como violento. Parece que gosto da guerra.
Eu odeio a guerra! Ainda na semana passada, quando estive no Afeganistão, a minha reportagem foi sobre a realização de um filme afegão. Se me assumisse como “correspondente de guerra”, diria que estas pessoas não são seres humanos como nós.
Os correspondentes de guerra procuram a guerra. Eu não procuro a guerra. Eu sou correspondente no Médio Oriente.

Fisk: “Eu faço a cobertura do mundo muçulmano. Se aceitasse que me chamassem ‘correspondente de guerra’, isso significaria que o mundo muçulmano é a guerra.” (Na foto, bombardeamentos israelitas na Faixa de Gaza, Palestina)
© The Wall Street Journal
Como descreveria então este livro?
Tudo começou quando me propus escrever um livro em que tentaria descrever o que é dizer a verdade sobre o Médio Oriente. A certa altura apercebi-me que deveria ser como entender o Médio Oriente, dar a conhecer a dor e o sofrimento a que esta região tem sido sujeita.
Decidi, por isso, que não seria um livro sobre mim, embora, obviamente, fale de mim. Não seria sequer cronológico – começa com [Osama] Bin Laden, segue para os russos, a revolução islâmica [de 1979 no Irão], o meu pai, o genocídio arménio.
Termina, claro, com a ocupação do Afeganistão e do Iraque. Tentei dizer que, depois do que fizemos no Médio Oriente nos últimos 100 anos, ninguém se deveria surpreender por tanta gente nos odiar.
Tentei explicar isto com o que vi: guerra, tortura, traição, violações, todo o tipo de atrocidades. Uma das coisas que mais me tocou, enquanto remexia nos meus documentos, centenas de milhares deles, remonta a um dia 12 de Dezembro, depois de uma guerra, quando estava a preparar-me para ir de férias.
Quando me lembro destas férias, reparo que as pessoas nesta região vivem em guerra permanente – não têm férias. Isto é muito deprimente. Foi muito perturbador escrever este livro.
Quanto tempo demorou a escrevê-lo?
Uns 17 meses para o escrever, mas cerca de 20 anos a recolher informação.
Ainda mantém um olhar fresco ou, para si, já nada é novo no Médio Oriente?
O que acabamos por relatar é sempre a loucura humana. Há três anos, quando saíram as edições francesa e holandesa deste livro, passei duas semanas em Paris e em Amesterdão. Vi famílias a passear em jardins e ao longo dos canais. Pareciam pessoas felizes.
Eu vivo em Beirute e quando voltei ao Líbano sentei-me na minha varanda – tenho uma bela casa de onde posso ver palmeiras e o Mediterrâneo, a poucos metros da minha janela.
Olhei para o mar e perguntei-me: “Será que, na altura em que recebi aquela carta em Portugal oferecendo-me o Médio Oriente, se eu soubesse o que sei agora, passaria mais de metade da minha vida a ver massacres e mortes? Será que aceitaria esta missão?”
E qual foi a resposta?
A resposta foi: “Sim, teria aceitado!” Porque às vezes, sentado na cama à noite com uma caneca de chocolate quente ou de café, a ler um grande livro sobre a trágica história do Médio Oriente, dei por mim a passar de capítulo em capítulo, até a madrugada espreitar pelas cortinas.
E porque estive eu a ler toda a noite? Porque quis saber o que iria acontecer a seguir. É por isso que ainda aqui estou: porque quero saber o próximo acontecimento.

“Quando me perguntam se reconheço o direito de Israel existir, respondo: ‘Mostrem-me onde fica a fronteira1″, diz Robert Fisk. “Inclui ou não Jerusalém? É com o ‘muro’, a que nós, jornalistas, cobardemente, chamamos ‘vedação’ ou ‘barreira de segurança’? Eu digo [aos israelitas]: ‘Quando souberem quais são as fronteiras do vosso Estado, perguntem-me se ele tem direito de existir’”
(Na foto, uma família palestiniana depois de a sua casa ter sido destruída por Israel na aldeia de Aqraba, em Nablus, Cisjordânia ocupada, perto do colonato judaico de Itamar)
© voanews.com
E o que vai acontecer, por exemplo, na Palestina?
Não vejo qualquer futuro. [Benjamin] Netanyahu [líder do partido de direita Likud] será, provavelmente, o próximo primeiro-ministro de Israel nas eleições de 2009. Acho que [Barack] Obama não irá enfrentar Netanyahu – embora não tenha ficado com muito boa impressão deste quando o conheceu.
Não?
Foi um primeiro encontro muito mau, é só o que lhe digo.
Há alguma possibilidade de mudança com Hillary Clinton como secretária de Estado?
Não! Não fará qualquer diferença. A política externa americana para o Médio Oriente é cimento armado – apoio total e incondicional a Israel. Talvez vejamos algumas críticas, mas não mudará nada.
Continuará este conflito num beco sem saída?
Repare, eu ainda acredito na Resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU, que exige a retirada das tropas israelitas dos territórios ocupados na guerra de 1967, em troca da segurança de todos os Estados da região. É o único postulado para a paz. Mas Israel continua intransigente.
No dia em que Obama deixou Israel, no final de uma viagem pelo Médio Oriente, foram anunciadas novas construções nos colonatos judaicos na Cisjordânia. Não vejo aqui nenhum futuro.
Os colonos já não atacam só palestinianos. Atacam também intelectuais, soldados. É um novo fenómeno?
Não, não creio que isto seja novo.
Mas será que, com estes actos, a sociedade não toma consciência de que os colonos extremistas se tornaram num perigo para Israel?
Não, não creio! Quando nós, ocidentais, vamos a Israel, e eu vou muito a Israel, gostamos de falar com pessoas do centro e da esquerda, pessoas do [partido] Meretz, pessoas como [o pacifista] Uri Avnery ou [a jornalista] Amira Hass.
Gostamos de os ouvir falar do Israel em que queremos acreditar, compassivo e aberto ao compromisso. Mas, quando apanhamos o autocarro de Telavive para Jerusalém e falamos com os colonos, esse não é o Israel em que queremos acreditar. Temos de ser rigorosos e avisar que os políticos do centro e da esquerda não representam o Estado de Israel.
A solução de dois Estados ainda é viável?
Nunca haverá uma solução de um só Estado! Por duas razões: a primeira é que a população judaica ficaria em minoria, e Israel tornar-se-ia num Estado árabe – nenhum israelita quer que isso aconteça. Em segundo lugar, evocar a solução de um só Estado será cruel para os palestinianos que ainda acreditam nisso.
É mais um sonho falso que não se concretizará! A Palestina foi dividida [em 1947] pelas Nações Unidas – uma parte árabe e outra judaica. A questão é saber onde fica a fronteira.
Quando me perguntam se reconheço o direito de Israel existir, respondo: “Mostrem-me onde fica a fronteira.” Inclui ou não Jerusalém? É com o “muro”, a que nós, jornalistas, cobardemente, chamamos “vedação” ou “barreira de segurança”?
Eu digo [aos israelitas]: “Quando souberem quais são as fronteiras do vosso Estado, então perguntem-me se ele tem o direito de existir.”

Fisk: Os britânicos perderam a guerra no Afeganistão em 1842; os russos perderam-na em 1978. Que obsessão esta, a de ganhar guerras no Afeganistão!” (Na foto, soldados americanos em treinos na província de Kandahar, no sul do Afeganistão)
© Baz Ratner | Reuters | NBC News
Avancemos agora para o Afeganistão. Qual é a situação actual?
Basicamente, o Ocidente já perdeu uma parte do Afeganistão. Estive em Kandahar. Fui ao hospital de Meir Wais – podem ler o meu artigo no Independent. Está na Internet. Eu não uso a Internet, nem o e-mail, mas podem encontrá-lo lá…
Por que não usa Internet nem e-mail?
Muito simples: tenho milhares de livros que são muito mais úteis. E não uso e-mail, porque recebo umas 250 cartas em papel por semana e já não preciso de mais, sobretudo porque vejo que os mails recebidos pelos meus colegas estão cheios de erros gramaticais.
Como envia então os seus artigos para o Independent?
Tenho um computador portátil. Basta premir um botão e o texto segue. Não tenho de fazer mais nada. Graças a Deus! Bem, entrei no principal hospital de Kandahar e estava lá uma rapariga a quem lançaram ácido sobre o rosto, porque ela ia para a escola.
Havia outra rapariga, um pouco mais velha, a quem foi amputada a perna direita. Vivia numa aldeia que foi bombardeada pelos americanos. Ela disse-me: “Olhei para baixo e vi os meus pés em pedaços.” Imagens horríveis! Sabe que todas as ONG deixaram Kandahar, excepto uma?
A Cruz Vermelha Internacional tem 11 médicos e enfermeiros ainda a trabalhar ali – são da Austrália, da França, da Nova Zelândia, da Suíça, da Costa do Marfim… Tentam ajudar os médicos afegãos a enfrentar isto.
Saí de Kandahar e escrevi para o meu jornal o seguinte: Obama quer mandar mais 7000 soldados para Kandahar, mas o que ele precisa de mandar é mais 7000 médicos e não fucking soldiers, desculpe a expressão!
Há crianças a morrer de fome, mas vão mandar mais soldados porque é preciso ganhar a guerra. Que ridículo! Os britânicos perderam a guerra no Afeganistão em 1842; os russos perderam-na em 1978. Que obsessão esta, a de ganhar guerras no Afeganistão!
No Afeganistão, para inverter o rumo da guerra, está agora a verificar-se uma mudança, que é a de distinguir entre os Taliban e a Al-Qaeda.
Sempre houve uma diferença entre eles. Porque a Al-Qaeda é, essencialmente, uma organização árabe.
O problema é que se nós, nós, o Ocidente, continuarmos a olhar o mundo muçulmano como alvo, haverá cada vez menos diferenças entre os Taliban, a Al-Qaeda, o Hamas, o Hezbollah, a Jihad Islâmica. Nós é que estamos a fazer deles um só. Eles não são um único grupo.
No Iraque, estamos a comprar uns para combater outros. Não é assim que se vencem guerras. Depois de 32 anos aqui, estou convencido de que temos de deixar de enviar soldados para o mundo muçulmano.
Há agora 22 vezes mais forças ocidentais no mundo islâmico do que os Cruzados tinham no século XII.
Temos soldados no Paquistão, no Afeganistão, no Iraque, na Turquia, na Jordânia, no Kuwait, na Arábia Saudita, no Qatar – onde está a maior base aérea americana – no Bahrain, no Iémen.
Até na Argélia temos forças especiais americanas. O que estamos a fazer nestes países? Estamos a construir uma cortina de ferro e ainda perguntamos por que nos odeiam.

Dos primeiros jornalistas a encontrar-se com Osama Bin Laden, que o qualificou de “repórter neutral”, Fisk desabafa o desgosto: “Vai ser como um albatroz que me perseguirá o resto da minha vida.. (…) Ele criou a al-Qaeda para ele – não para nós. Foi um sucesso pessoal. Ela existe. Podemos compará-la à criação da bomba atómica” (Na foto, o artigo que “Mr Robert” publicou no diário britânico ‘The Independent ‘depois de falar com o chefe da Al-Qaeda, em 1993)
© Twitter
Foi para obter respostas que se encontrou com Osama bin Laden?
Bin Laden vai ser como um albatroz que me perseguirá durante o resto da minha vida. Mas deixe-me dizer que Bin Laden já se tornou irrelevante.
Porquê?
Ele criou a al-Qaeda. Para ele – não para nós -, foi um sucesso pessoal. A al-Qaeda existe. Podemos compará-la à criação da bomba atómica. Se prendermos todos os cientistas nucleares de nada vale, porque a bomba já existe. O monstro nasceu. Podemos perseguir todos os que a criaram, mas ela permanece.
O mesmo com Bin Laden. Não interessa se ele morrer, porque cai numa ravina, tem uma paragem renal, é envenenado ou é abatido pelos americanos. Tornou-se irrelevante.
[Osama bin Laden foi morto durante uma operação de forças especiais dos EUA, no interior de um complexo residencial em Abbottabad, no Paquistão, em 2 de Maio de 2011. A ordem para o matar foi dada pelo Presidente Barak Obama.]
Quem é Bin Laden?
A primeira vez que o conheci foi no Sudão em 1993. Ele pensava que eu ia fazer-lhe perguntas sobre terror, terror, terror. Mas preferi perguntar como foi combater os russos [no Afeganistão].
Eu queria saber como tinha sido essa experiência. E ele contou-me uma história de como ele e os seus combatentes foram atacados por uma posição de artilharia russa, perto de Jalalabad, na província de Nangarhar. Uma granada de morteiro caiu aos pés dele. Esperou que ela explodisse.
Muitas pessoas gostariam que tivesse explodido (risos). Mas ele permaneceu calmo. Nessa altura, compreendeu que a morte não era uma coisa má.
Foi ele que pediu para me ver. Nunca pedi para o ver! Quando eu recebia mensagens, respondia sempre: “Liguem-me daqui a três semanas, estou muito ocupado.” Não queria que ele pensasse que podia estalar os dedos e chamar o Sr. Robert. E não podia.
A segunda e a terceira vez que me encontrei com ele foi no Afeganistão, em 1996 e 1997. Não me pareceu uma pessoa que estivesse a par das notícias…
… sim, neste livro, conta que ele lhe pediu os jornais que levava consigo.
Outra coisa que me impressionou foi que ele pensava muito nas perguntas. Não respondia de imediato. Foi o primeiro árabe que conheci que não disparou a primeira palavra que lhe veio à cabeça. De modo geral, os árabes não gostam que pensem que são estúpidos e respondem logo.
Ele não se importava de parecer estúpido. Queria deixar claro que dizia o que que queria dizer. Enquanto pensava o que iria responder, ia limpando os dentes com um palito. Jantei com ele, sentados fora de uma tenda. Iogurte, queijo, pão, chá com menta.
À nossa volta havia vários combatentes com armas. Ele estava obcecado com a corrupção da família real saudita, mais do que com qualquer outra coisa.
Em 1997, na última entrevista – ele ainda pediu para me ver depois do 11 de Setembro de 2001, e eu tentei chegar até ele, mas a aldeia onde eu o deveria encontrar tinha sido destruída pela força aérea americana, e os Taliban que me acompanhavam recusaram continuar a viagem.
Porque não queriam morrer, o que é interessante, porque, supostamente, os Taliban não deviam ter medo de morrer (risos) -, ele disse-me: “Senhor Robert, desta montanha onde estamos sentados, destruímos o exército britânico e ajudámos a destruir a União Soviética.” Era um exagero com uma ponta de verdade.
E depois disse: “Rezo a Deus para tornar a América numa sombra de si própria.” Eu escrevi no meu livro de apontamentos: “Retórica? Ponto de interrogação?”

“Amira Hass, brilhante jornalista do [diário israelita] Ha’aretz, ensinou-me o que um correspondente internacional deve fazer: vigiar os centros de poder”, diz Robert Fisk
© Green Lefty Weekly
Foi nesse encontro que ele o tentou recrutar?
Bem, creio que sim. Exprimiu satisfação por me voltar e ver e disse que um dos seus homens tinha tido um sonho. “Você apareceu vestido como um imã, e isso significa que você é um verdadeiro muçulmano.” Pensei imediatamente que ele estava a tentar recrutar-me.
Olhei para os tipos da al-Qaeda por todo o lado, a mexer nas armas e a ouvirem Bin Laden como se ele fosse um mahdi [messias].
Sentiu medo?
Não, não (risos). Eu sabia o que se estava a passar. Já tinha falado antes com Bin Laden. Sempre tinha sido educado e cortês comigo, mas eu queria ter a certeza de que a minha resposta não seria mal interpretada.
O que lhe disse foi: “Xeque Osama, eu não sou muçulmano, sou jornalista e a minha obrigação é dizer a verdade”, o que lhe deu a oportunidade de retorquir. “Mas isso é o mesmo que ser muçulmano.”
Foi nessa altura que ele o considerou “o único jornalista neutral no Médio Oriente”?
Não. Ele gravou uma cassete, num período de eleições intercalares na América, em 2004. Nessa altura, disse: “Se a Casa Branca quiser saber o que pensa a al-Qaeda, deve perguntar a Robert Fisk, que é um jornalista neutral.” Eu dispensava esse elogio.
Isto conduz a outra pergunta. Quando o inquiriram sobre se alguma vez entrevistara o Presidente dos EUA, George W. Bush, o senhor respondeu que não estava interessado, porque “ele é um mentiroso”. No entanto, viajou quilómetros para ouvir Bin Laden, Yasser Arafat, Saddam Hussein, Khomeini, líderes que cometeram tantas atrocidades. Por que não Bush?
Desculpe, desculpe, o jornalista era da Folha de São Paulo e a entrevista que ele me fez foi muito cortada. Eu disse várias coisas antes de chamar mentiroso a Bush. Ele é mentiroso, tal como Tony Blair! Mas, ao retirarem o que eu disse antes de “Não falo com Bush porque ele é mentiroso”, deixaram uma impressão enganadora.
Então, o que é que disse antes?
Bem, não me lembro das palavras exactas naquele momento. O que eu digo é que pessoas como Bush e Blair falam inúmeras vezes em conferências de imprensa. Sabemos o que eles pensam. Não dizem nada de novo. Eu prefiro falar com pessoas que não falam habitualmente a jornalistas.
Prefiro pessoas doentes, pessoas em fuga, pessoas moribundas… Pessoas cujas palavras raramente são noticiadas. Escrevo artigos em que cito Bush. Mas não preciso de o ver ou de falar com ele para saber o que pensa, porque ele aparece na televisão todas as noites.

Mohammad Khatami, antigo Presidente do Irão, é “o único líder do Médio Oriente” por quem Robert Fisk diz ter “enorme respeito”
© Radio Farda
Mas Arafat, por exemplo, também adorava falar aos jornalistas e o senhor entrevistou-o.
Quando falei com ele, ele não gostava de falar com jornalistas. Mais tarde, quando ele adorava falar com jornalistas, eu já não me esforçava por ir ao seu encontro.
Se reparar nas duas entrevistas que lhe fiz, uma foi em Beirute, em 1978, e a outra foi no Líbano, mas não em Beirute, em 1983. Depois disso, já não falei mais com ele, porque ele nunca mais se calou.
Se eu me limitar a entrevistar Ehud Barak, o rei da Jordânia ou Bashar al-Assad – e falei com todos -, não vou explicar nada, porque podemos ler o que eles dizem no ‘Herald Tribune’ ou no ‘New York Times’.
No entanto, quando Bin Laden fala comigo, é o tipo de coisas que não se vê noutros jornais. Tive entrevistas com feridos de guerra no Líbano mais longas do que as que fiz a Osama bin Laden. E esses indivíduos foram mais importantes, para mim, do que Bin Laden.
Numa altura em que a narrativa no Médio Oriente é definida por generais, primeiros-ministros e presidentes, eu acho que é preciso oferecer outra narrativa ao mundo. Amira Hass, brilhante jornalista do [diário israelita] Ha’aretz, ensinou-me o que um correspondente internacional deve fazer: vigiar os centros de poder.
Devemos sempre desafiar a autoridade, sobretudo quando somos conduzidos com mentiras para a guerra. Se não o fizermos, podemos ir conduzir autocarros ou trabalhar num banco.
Sempre tão crítico do poder, há algum líder no Médio Oriente pelo qual sinta respeito?
Sim! O ex-Presidente Mohammad Khatami, do Irão. Ele queria desenvolver uma sociedade civil e estendeu a mão ao Ocidente, à América. Bush preferiu inclui-lo num eixo do mal.
Khatami foi derrotado e tivemos [Mahmoud] Ahmadinejad, que é um lunático. Muito obrigado, Presidente Bush! Escrevi um artigo há mais de um ano em que perguntava: “O que aconteceu aos titãs do mundo actual? Onde estão os novos Roosevelt, Churchill, De Gaulle?”
E só encontrei um que fosse comparável: Khatami. Foi Presidente, eleito democraticamente. É um homem decente e honrado.
Defende o restabelecimento de laços com os EUA. É imensamente inteligente. É um líder religioso sério. Tem um pensamento corajoso. É o único líder no mundo muçulmano e no Médio Oriente por quem tenho enorme respeito!

Robert Fisk diz que o seu o artigo mais difícil foi sobre os massacres cometidos, por milicianos cristãos, nos campos de refugiados palestinianos de Sabra e Shatila, durante a invasão israelita de Beirute, em 1982: “Comecei a escrever quando já tinha contado uns cem cadáveres”
© Alain Mingam | Gamma-Rapho via Getty Images | The New York Review of Books
Depois de tantos anos no Médio Oriente, mantém a “inocência” dos seus 29 anos e que, neste livro, diz ser parte da “integridade do jornalista”?
Não, não. Eu mudei. Um dia estava na minha casa em Dublin e pus-me a pensar que tudo o que tenho visto é crueldade, barbárie, valas comuns. Uma amiga disse-me: Ah! That is the end of sweet stories! [É o fim das histórias felizes] Percebi que tenho noticiado o pior da humanidade.
Tem pesadelos?
Não! Tive só um, talvez. Foi depois dos massacres de palestinianos nos campos de Sabra e Shatila pelos milicianos falangistas aliados de Israel. Nesse pesadelo via cadáveres despejados sobre a minha cama. Eu tinha passado o dia a pisar corpos de pessoas mortas.
Ainda cheirava a morte, quando a minha empregada de limpeza chegou na manhã seguinte e me aconselhou a queimar as roupas. Foi um pesadelo resultante de uma experiência física directa.
Depois disso, nunca mais tive pesadelos. Testemunho cenas terríveis, mas continuo a jantar à noite sem problemas. Temos de ser muito fortes e duros para trabalhar no Médio Oriente.
Se não formos, é melhor irmos para casa. Temos de nos manter vivos e ter orgulho em ser testemunha, por muito horrível que seja aquilo a que estamos a assistir.
O mais difícil é sobreviver?
A nossa obrigação quando vamos em reportagem é relatar e não morrer. Os jornalistas dão pobres mártires. E há demasiados jornalistas mortos. Temos de aprender a sobreviver e escrever sobre as atrocidades que vimos.
Qual foi o artigo mais difícil que teve de escrever?
(Longa pausa) Uff! [A matança em] Sabra e Shatila foi muito difícil. Comecei a escrever quando já tinha contado cem cadáveres. Outro difícil foi sobre o massacre de Qana [cidade libanesa] em 1996.
O senhor foi o primeiro a dar a notícia.
Sim, eu estava em Qana. Era um quartel da Força das Nações Unidas no Sul do Líbano [UNIFIL] que os israelitas bombardearam e onde mataram 106 civis libaneses, mais de metade deles, crianças.
Eu vi bebés a arder. Parecia uma cena bíblica. Fiquei muito furioso! Lembro-me de ter desabafado com um amigo e de ele me ter dito: “Contém-te. Tens de noticiar isto. Isto é um crime de guerra.”
Um médico quando está a operar um doente com cancro não pode chorar. Tem de se concentrar em salvar o paciente. Nós, jornalistas, não podemos salvar ninguém.

“A nossa obrigação quando vamos em reportagem é relatar e não morrer”, diz Robert Fisk. “Os jornalistas dão pobres mártires. E há demasiados jornalistas mortos. Temos de aprender a sobreviver e escrever sobre as atrocidades que vimos”
© BBC Radio4
Os massacres a que se referiu foram cometidos no Líbano. Por que é que continua a viver em Beirute?
É uma grande interrogação, não é? Bem, eu quero continuar a cobrir o Médio Oriente e quero continuar a contar a verdade. Se vivesse em Damasco, que é uma bela cidade, assim que eu criticasse o presidente, alguém iria mexer os cordelinhos. Se eu vivesse no Iraque, corria o risco de morrer todos os dias.
Se vivesse no Afeganistão, não saberia o que se passa no Médio Oriente. Se vivesse em Chipre, é a terra dos rumores. Se vivesse no Cairo, não saberia o que estava acontecer do outro lado do rio Nilo.
O Líbano é o lugar do mundo que melhor conheço. É uma sociedade cosmopolita e os libaneses são um povo de grande talento. Além disso, aqui posso apanhar um avião 20 minutos antes de descolar.
Quando não está em reportagem, disse que gosta de ler poesia, sobretudo a de W. H. Auden. E mais?
Estou a ter lições de violino, que eu tocava muito bem. Vou a concertos. Vou ao cinema. Saio com os meus amigos. Falamos de música, de livros e de arte. Viajo muito, para dar palestras. Acabei de regressar de Bolonha. Onde quer que vá, gosto de ver pintura.
Tenho uma coluna onde posso escrever sobre tudo, e muitas vezes nem sequer é sobre o Médio Oriente. Agora estou a escrever sobre [o grande poeta irlandês] Yeats.
É feliz?
Não!
Porquê?
Creio que sou um repórter realizado, mas não sou um homem feliz.
Tem mais amigos que inimigos?
Tenho muito mais amigos. Os inimigos serão uns três jornalistas e dois leitores. Todas as semanas recebo umas 250 cartas. Uma ou duas são críticas e ofensivas, mas quando lhes respondo, a explicar o meu ponto de vista, é habitual receber de volta pedidos de desculpa.
O QUE DIZEM OUTROS REPÓRTERES
Phil Reeves, Jornalista neozelandês
Correspondente da National Public Radio (NPR). Foi correspondente do “Independent” e da BBC. Reportagens: Índia, Sri Lanka, Paquistão, Afeganistão, Tchetchénia, Iraque, Israel, Irlanda do Norte
A base de Philip (Phil) Reeves é Nova Deli, onde é correspondente da National Public Radio (NPR) para a Ásia do Sul e Central desde 2004, mas é em Islamabad que atende o telemóvel, para nos dizer que não sabe por que Robert Fisk o incluiu na lista de agradecimentos do seu livro A Grande Guerra pela Civilização.
“Terá sido porque, há uns cinco ou seis anos, ele ficou no meu apartamento em Jerusalém, quando éramos colegas no Independent?. Essa pode ser uma razão, ou então o facto de termos trabalhado juntos no Médio Oriente e de termos sido bons companheiros. Conhecemo-nos desde 1999. Encontrámo-nos em Bagdad.”
Autor de reportagens especiais em vários lugares do mundo, desde o julgamento de Mike Tyson nos EUA aos últimos anos de Boris Ieltsin na Rússia, Reeves é um jornalista experiente, formado em Literatura Inglesa na Universidade de Cambridge.
Sobre Fisk diz: “É enérgico, entusiasta e admiravelmente bem informado do ponto de vista histórico. Está certo ao recusar que lhe chamem ‘repórter de guerra’, porque ele é um perito em Médio Oriente. Escreve sobre muito mais do que guerras.”
O que Fisk faz, elogia, “já não é, infelizmente, muito comum entre os jornalistas actuais. Ele vê e descreve o que se passa à sua volta, enquadrando tudo num profundo e vasto contexto histórico. Não se pode entender o Médio Oriente de outro modo, e ele faz isso muito bem.”
Quanto às críticas de que Fisk “não é imparcial”, Reeves enerva-se: “Isso é um longo e complexo debate. O melhor é ir à procura das respostas ao livro Point of Departure, de James Cameron. É uma questão quase filosófica que não estou preparado para responder agora.”
Famoso pela sua cobertura da guerra do Vietname, Cameron deixou escrito: “Posso não ter sido satisfatoriamente equilibrado, mas sempre argumentei que a objectividade é menos importante do que a verdade.” Conclui Reeves: “A tarefa de um jornalista é denunciar actos repreensíveis e aqueles que os cometeram.”
David Hirst, Jornalista inglês
Foi correspondente no Médio Oriente do “Guardian” e escreveu para outras publicações como “The Christian Science Monitor” ou “Al-Ahram”. Autor de três livros, a sua obra-prima é “The Gun and the Olive Branch”. Reportagens: Eritreia, Egipto, Síria, Arábia Saudita, Iraque, Líbano
À primeira vista, nada separa David Hirst e Robert Fisk, correspondentes veteranos no Médio Oriente, ambos com “sede em Beirute” e muito críticos das políticas do Ocidente e de Israel em relação aos árabes, em geral, e aos palestinianos, em particular.
No entanto, quando telefonámos a Hirst para lhe pedir um depoimento sobre A Grande Guerra da Civilização, vincou: “Posso falar consigo sobre tudo, menos sobre Robert Fisk.”
Não explicou as razões, mas muitos colegas insinuam que o Médio Oriente se tornou demasiado pequeno para duas “estrelas”: Hirst, ex-aluno da Universidade de Oxford que trabalhou para o Guardian de 1963 até 2001 (ainda colabora esporadicamente), e Fisk, actual correspondente do Independent.
Rival ou não, certo é que Hirst é elogiado por Fisk no seu livro “como o jornalista que tão acertadamente escreveu” sobre Arafat.
Refugiado na sua segunda casa, em Chipre, a escrever desde há dois anos uma história do Líbano (o título é uma citação do anarquista russo Mikhail Bakunin: Beware of Small States [Lebanon, Battleground of the Middle East, Faber & Faber, 2010] não quis falar de Fisk, mas aceitou falar de jornalismo no Médio Oriente.
“Antigamente, tínhamos imenso espaço – umas 8000 palavras para um artigo. Tudo isso mudou, radicalmente, a partir do final dos anos 1990. Hoje, os jornalistas na região já não têm o impacto de outrora, porque não podem fazer trabalhos profundos.”
Um dos últimos “trabalhos profundos” de Hirst foi o obituário de George Habache, o líder da FPLP, publicado pelo Guardian em Janeiro deste ano [2008]. Foi também ele que “enterrou” Saddam e Arafat – textos que “estavam escritos há 15-20 anos e só tiveram de ser actualizados”.
A frustração de Hirst é grande: “Não sei se voltarei a ser jornalista depois de escrever este livro.” Se desistir, não será por ter sido raptado duas vezes (“Senti-me desesperadamente com medo quando, em 1988, me apontaram uma arma à cabeça e ameaçaram executar-me”) e proibido de entrar em seis países árabes, mas porque o Médio Oriente já não o surpreende. “É uma região muito deprimente, em constante degradação.”
Patrick Cockburn, Jornalista irlandês
Correspondente no Médio Oriente desde 1979, primeiro no “Financial Times” e agora no “Independent”. Autor de quatro livros, entre eles, “Saddam Hussein: An American Obsession” Reportagens: Iraque, Irão, Afeganistão, Paquistão, Israel, Palestina
Um dos raros jornalistas a permanecer em Bagdad durante a guerra do Golfo de 1991 que obrigou o Iraque a retirar-se do Kuwait, Patrick Cockburn é também um dos raros colegas elogiados por Robert Fisk em A Grande Guerra pela Civilização.
A admiração é mútua. “Cobrimos os mesmos conflitos e as mesmas histórias”, diz Cockburn, por telefone, a partir de Londres, recém-regressado do Afeganistão. “Sempre o achei um extraordinário correspondente.”
“Também controverso, claro!”, reconhece. “Mas se fazemos algo sério, muitas pessoas, sobretudo as que estão no poder, não vão gostar. Se gostam, é porque há qualquer coisa de errado com o nosso jornalismo. Todos os jornalistas dizem que buscam a verdade, mas nem todos se esforçam arduamente para a conseguir.”
“Há um velho ditado jornalístico inglês [atribuído ao seu pai, “patriarca” de uma família de jornalistas, Francis Claud] que nos aconselha a não acreditar em nada até ser oficialmente desmentido.”
Cockburn acha que muitos jornalistas “não passam de mensageiros de governos, sem interesse em apurar o que se passa”. E, tal como Fisk, também ele recusa que o classifiquem como repórter de guerra.
“Essa expressão tem uma certa conotação machista, que é desagradável. Até parece que gostamos de guerras, que as achamos excitantes, o que não é verdade. E nem sempre as crises e o sofrimento das pessoas envolvem guerras.”
Sobre a afirmação de Fisk de que não se limita a escrever notícias mas também livros de História Cockburn concorda: “O jornalista não só pode como deve ser um historiador, porque estamos a ver a História a acontecer.”
Além disso, o facto de Fisk trabalhar a partir de Beirute, “onde o governo é muito fraco, permite-lhe manter-se mais independente do que se estivesse a escrever de Washington, Londres ou Paris”.
“O jornalismo”, frisa, “sempre inclui um ponto de vista, que pode estar declarado ou ser subliminar – mas está sempre lá”. Por isso, aconselha: “Declarem logo de início qual é o nosso ponto de vista.”
Adelino Gomes, Jornalista português
Timor-Leste, Angola, Israel, Iraque, Afeganistão, Haiti, El Salvador, Nicarágua, Guatemala
Os caminhos profissionais de Adelino Gomes cruzaram-se com os de Robert Fisk numa reportagem sobre a Legião Estrangeira, em pleno deserto saudita, a poucos quilómetros das fronteiras com o Iraque e com o Kuwait, em 1990, e nas cidades paquistanesas de Quetta e de Chaman (fronteira com o Afeganistão), em 2001.
“Do breve contacto, retive a imagem de um repórter excepcionalmente culto e que alardeava uma tendência lamentável, muito anglo-saxónica, para mergulhar nos conflitos, armado de doses cavalares de cinismo”, diz-me o antigo redactor principal do diário PÚBLICO, enviado especial a vários cenários de guerra, galardoado com “15 a 20 prémios”, [antigo] provedor do ouvinte da rádio pública.
“Percebi agora que, se tal aconteceu, Fisk o lamenta”, acrescenta Adelino Gomes, citando o prefácio de A Grande Guerra pela Civilização, onde o autor escreve: “A inocência, se a pudermos manter, protege a integridade do jornalista”.
A obra de Fisk impressionou Adelino Gomes: “Há excelentes livros que se impõem no primeiro capítulo. Outros, também bons, precisam de mais tempo para se afirmarem.
Este ganha-nos logo nos Agradecimentos – uma lista de nomes que é uma verdadeira antologia para quem queira compreender a dimensão extraordinária que as fontes adquirem no exercício do jornalismo.”
“Independentemente da qualidade dos seus textos e do impacto das suas reportagens, Fisk começa por se afirmar através do que são as suas fontes – monumental”, sublinha Adelino Gomes.
“Do soldado iraniano Shojae Ahmmadavnde a Shapour Bakhtiar, último primeiro-ministro do Xá do Irão; do soldado Andrew Shewmaker, da 24ª Divisão de Infantaria Mecanizada, dos EUA, na guerra do Golfo de 1991, ao ex-segundo comandante da força aérea do Iraque, a Mikail Kalashnikov (sim, o inventor da AK-47), a Hassan Nasrallah (líder do Hezbollah), a Yasser Arafat, a Osama bin Laden (a quem entrevistou três vezes, mais vezes ele sozinho do que todos nós juntos, repórteres do resto do mundo ocidental).”
Seja lá o que se pense dele, Robert Fisk é um desses cada vez mais raros repórteres do pequeno exército de narradores do quotidiano que estão a escrever um borrão da história ‘à boca dos canhões’ e adoram o que fazem.”
Este livro, adianta, “reveste-se de uma enorme utilidade para os leitores de imprensa a quem falta um outro olhar (e tantas e tão extraordinárias histórias do lado geralmente esquecido) sobre os grandes conflitos do nosso tempo, e em particular sobre o Médio Oriente. É, claro, obrigatório para jornalistas e candidatos a jornalista.”
Sobre a recusa de Fisk em ser catalogado como “repórter de guerra”, Adelino Gomes remete-nos para a última página do livro do polémico jornalista britânico onde lembra que, no Médio Oriente, os povos vivem a sua história passada continuamente, quotidianamente.
Por isso, comenta o jornalista português, “o lugar de excepção” que Fisk ocupa no jornalismo actual “releva de uma mesma forma de praticar a profissão – continuamente, quotidianamente, desde meados da década de 1970 do século passado.”
Quanto à afirmação de que a tarefa do jornalista é “vigiar os centros de poder”, não duvida que é isso que Fisk “faz, sem cessar, ao longo das 1230 páginas deste livro monumental”.
Mais: “Penso que também tem razão ao escrever que os jornalistas devem tentar ser as primeiras testemunhas imparciais da História e sobre elas escreverem ‘primeiras páginas’ (a que prefiro chamar ‘borrões’).
Devem ter a consciência, porém, de que escrevem num mar de paixões, quando se ouvem ainda os gritos de dor ou os brados de vitória. Faltam à sua, as perspectivas da distância e do tempo, que ajudam a melhor entender o quadro geral.”
E deve um jornalista dar “mais espaço à vítima do que ao opressor”, como exige Fisk a si próprio? “A questão coloca-se, sempre, nos momentos kairos dos grandes acontecimentos”, responde Adelino Gomes.
“Pessoalmente, vivi-os no 25 de Abril, no 11 de Março, em Julho de 1975, em Angola, em Outubro do mesmo ano, em Timor e nos anos que se seguiram até ao referendo de 1999, para falar apenas das mais impressivas neste plano.”
“Sempre me coloquei a mim próprio a questão, no plano teórico. Mas nunca encontrei outra resposta plausível que não a que Fisk dá: é ridícula a ideia de que se pode equilibrar um artigo dando igual espaço aos opressores e às vítimas.”
“O que não quer dizer (de modo algum) que não se ouçam os opressores. Tratando os seus pontos de vista com o mesmo rigor que se deve dar a todos os outros.”

“Se nós, nós, o Ocidente, continuarmos a olhar o mundo muçulmano como alvo, haverá cada vez menos diferenças entre os Taliban, a Al-Qaeda, o Hamas, o Hezbollah, a Jihad Islâmica”, avisa Robert Fisk. “Nós é que estamos a fazer deles um só. Eles não são um único grupo”
© i.ytimg.com
Esta entrevista, agora actualizada, e os testemunhos de outros repórteres foram publicados originalmente no jornal PÚBLICO, em 5 de Dezembro de 2008 | This interview, now updated, and the testimonies of other reporters were originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on December 5, 2008