A revista Glamour distinguiu-a como uma das dez Women of the Year 2008. A menina que comoveu um juiz quando foi a tribunal para se libertar dos abusos do marido viajou de Sanaa, capital do Iémen, até Nova Iorque, por ter aberto o caminho a outras crianças que querem libertar-se de casamentos forçados. [A sua história deu um livro mas é o pai que a ‘vendeu’ quem está a gastar os direitos de autor.]. (Ler mais | Read more…)

O drama de Nujood Ali começou quando o pai, desempregado que recolhia lixo nas ruas, quebrou a promessa de não a retirar da escola para lhe arranjar marido, tal como fizera às outras irmãs. Ela frequentava a 2ª classe e adorava estudar Matemática e o Corão. Ele foi buscá-la para a entregar a um homem de 30 anos, o carteiro Faiz Ali Thamer
© Brian Danton | The New York Times
No dia 10 [de Novembro de 2008], quando pisou o palco do Carnegie Hall, em Nova Iorque, acompanhada da sua advogada Shada Nasser (também ela premiada), Nujood Mohamed Ali al-Ahdal irradiava luz, com uma túnica tradicional violeta e uma bandelette amarela a segurar longos cabelos negros. Impressionou pela timidez e valentia que fizeram dela a mais jovem receptora deste galardão, atribuído desde há mais de duas décadas.
“Mal posso esperar conhecê-la, vai ser muito inspirador falar com ela. Que história incrível”, disse Condoleezza Rice, uma das premiadas. Outra [antiga] secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, também contemplada, exclamou: “Ela é exemplo de coragem. Uma das mulheres mais extraordinárias que eu já conheci.”
Os elogios agradaram a Nujood, mas do que ela mais gostou, segundo o New York Daily News, foi de uma visita ao Museu Americano de de História Natural, de um passeio no Central Park e de um cruzeiro no rio. Tudo tão diferente do bairro com esgotos a céu aberto e do casebre onde viviam o pai, a mãe, a madrasta e 15 irmãos.
O drama de Nujood começou quando o pai, um desempregado que antes recolhia lixo nas ruas, quebrou a promessa de não a retirar da escola para lhe arranjar um marido, como fez a outras irmãs. Ela frequentava a segunda classe e adorava estudar Matemática e o Corão. Ele foi buscá-la para a entregar a um homem de 30 anos, o carteiro Faiz Ali Thamer.

A 12 de Março de 2013, o repórter Joe Sheffer, do diário britânico The Guardian, dava conta de que os direitos de autor do livro I Am Nujood, Age 10 and Divorced, com a história da menina iemenita que deveriam pagar os seus estudos “estão a ser gastos pelo pai [na foto].” Este casou-se novamente e também ‘vendeu’ a irmã mais nova a um homem com o dobro da idade dela, queixou-se Nujood Ali
© Annasofie Flamand
No dia do casamento, confiante num alegado compromisso de que a união não seria consumada antes de ela “ser adulta”, a menina ficou fascinada com o dote: três vestidos, um perfume, duas escovas do cabelo, dois hijab (lenços usados, voluntariamente ou impostos pela família, como sinal de devoção islâmica) e um anel cujo preço equivaleria a cerca de 20 dólares americanos. Este foi logo vendido por Faiz Thamer, que comprou roupas para si. A partir dali, a vida da recém-casada só piorou.
“Eu corria de sala em sala para tentar fugir, mas ele acabava sempre por me apanhar”, revelou Nujood ao jornal Yemen Times. “Chorei tanto, mas ninguém me ouvia. Sempre que eu queria brincar no pátio, ele vinha, batia-me e obrigava-me a ir para o quarto com ele. E se seu pedia misericórdia ainda batia e abusava mais de mim. Eu só queria ter uma vida respeitável. Um dia fugi.”
E esse dia foi 2 de Abril de 2008, dois meses após o casamento. Sob o pretexto de ir visitar a sua irmã favorita, Haifa (que aos 9 anos vendia pastilhas na rua), seguiu o conselho da “tia” (a segunda mulher do pai) e foi procurar justiça. Esta mendiga que ocupa um quarto com os seus cinco filhos foi a única que a tentou ajudar.

Faiz Ali Thamer, o carteiro com quem o pai obrigou Nujood a casar-se e cujos maus tratos ditaram a anulação desta união forçada
© Khaled Fazaa | AFP | Getty Images
Nujood apanhou primeiro um autocarro e depois um táxi e foi até a um tribunal de Sanaa. Era tão pequenina, que quase passou despercebida aos magistrados, aos advogados e a outros funcionários.
À hora de almoço, quando a multidão se dispersava, relatou o diário Los Angeles. Times, “um juiz curioso aproximou-se dela e perguntou-lhe o que fazia sentada num dos bancos”. A resposta foi: “Vim pedir o divórcio.” Mohammed al-Qadhi, o juiz, ficou comovido.
“O tribunal estava quase a fechar, e ele levou-a para casa dele”, contou-nos, por e-mail, a advogada Shada Nasser. “No sábado seguinte, ele mandou deter o marido e o pai. Foi então que eu apareci e me ofereci para a representar.”
Nasser ficou intrigada por Nujood ter recusado ir para um lar de acolhimento e ter preferido voltar à casa paterna, mas nunca mais a abandonou. Quando o veredicto chegou – dissolução do casamento -, a notícia espalhou-se pelo Iémen e pelo resto do mundo.
A CNN incluiu a advogada numa “galeria de heróis”, por ela ter aceitado defender gratuitamente todas as outras (e muitas) meninas que entretanto quiseram seguir o exemplo de Nujood.

Nujood e dois irmãos – à direita, de preto, Haifa Ali, noiva de um homem que nunca viu. “Não me quero casar”; estou muito assustada, mas o dote já foi pago [ao pai] e eu gostava de continuar a estudar”, disse ela ao jornal The Guardian. A menina que, em 2008, conseguiu o divórcio, interrompeu-a para sentenciar: “Não vou permitir que isso aconteça. Vou falar com o maior número possível de jornalistas e advogados – porque isto é ilegal!”
© Annasofie Flamand
No Iémen, segundo um estudo da Universidade de Sanaa, cerca de 52% das raparigas são forçadas a casar-se antes dos 18 anos. “O exemplo de Nujood vai aumentar a pressão para que se defina uma idade mínima para casar”, diz-nos, por telefone, Mohammed al-Kibsi, do jornal Yemen Observer.
“Os islamistas do Comité da Shariah recusam impor limites, mas há um grande movimento da sociedade civil para que o Parlamento aprove uma lei que imponha os 18 anos como idade mínima. Vai haver compromisso, para os 16 anos.”
Al-Kibsi lamenta que nenhum jornal em língua árabe – nem mesmo no Iémen – tenha noticiado o prémio de Nujood e Nasser. “É pena que a maioria das pessoas ignorem o que aconteceu, até porque, para a maioria das tribos, no Norte e no Sul, o casamento forçado é uma vergonha.”

Nujood Ali, que completou já a15 anos (em 2013), não desiste de querer estudar em Inglaterra e ser, um dia, advogada, como Shada Nasser: “A realidade pode ser cruel comparada com os sonhos – mas também pode trazer surpresas boas”
© National Geographic
“A minha vida é doce como um rebuçado”, disse Nujood à Glamour, que a descreve como “a divorciada mais célebre do mundo”. Regressou à escola. Quer ser advogada. “Para proteger outras meninas como eu.”
[A 12 de Março de 2013, num artigo enviado a partir de Sanaa, o repórter Joe Sheffer, do diário britânico ‘The Guardian’, dava conta de que os direitos de autor do livro (“I Am Nujood, Age 10 and Divorced”) com a história da menina iemenita que deveriam pagar os seus estudos “estão a ser gastos pelo pai.”
Este casou-se novamente e também ‘vendeu’ a irmã mais nova a um homem com o dobro da idade dela, queixou-se Nujood. “Ele tem agora quarto mulheres, 14 filhos e não aprendeu nada com a minha experiência. Ele só me dá entre 20 e 30 dólares por mês.”
O livro foi escrito pela jornalista Delphine Minoui, publicado originalmente em França, traduzido para 16 línguas e vendido em 35 países, incluindo Portugal.
A editora Michel Lafon fez um acordo para pagar a Ali Mohammed al-Ahdal, o pai de Nujood, cerca de 1000 dólares mensais até ela completar 18 anos e ser independente. Comprou também uma casa ampla para acomodar toda a família, na capital iemenita, e criou um fundo que deveria pagar directamente à escola a educação de Nujood.
O que Joe Sheffer soube, porém, é que Nujood foi expulsa de casa e não recebeu um tostão da quantia entregue ao pai. O primeiro andar da casa está alugado a outra família, e a nova mulher do pai instalou-se no segundo piso. “Fui obrigada a sair e a viver na casa velha, apinhada com os meus irmãos mais velhos”, irritou-se Nujood.
Enquanto ouvia está denúncia, Joe Sheffer viu que, a um canto, estava Haifa Ali, a irmã mais nova, noiva de um homem que nunca viu. “Não me quero casar”; estou muito assustada, mas o dote já foi pago [ao pai] e eu gostava de continuar os meus estudos.”
O pai recusou falar com o “Guardian”, mas uma porta-voz da editora Michel Lafon prometeu que iria tentar alterar a situação, ressalvando, todavia, que não pode pagar directamente a Nujood; “As leis no Iémen favorecem o pai, e este tem muitos juízes do seu lado, contra Nujood”.
[Em Novembro de 2016, Akbar Shahid Ahmed, do Huffington Post, actualizou a situação de Nujood: “Nunca acabou os estudos. Casou-se em 2014 e tem duas filhas. Em 2015, foi à Arábia Saudita para se tratar de tuberculose. Tinha esperança que Hillary Clinton fosse eleita Presidente dos EUA e acabasse com a guerra no Iémen.]
A missão da advogada Shada Nasser

Shada Nasser, a advogada de Nujood, está envolvida na luta contra as tradições tribais, por uma nova lei de protecção da família e menores, no Iémen
© Delphine Minoui | Los Angeles Times
A 8 de Abril de 2008, Shada Nasser foi a correr para um tribunal em Sanaa, capital do Iémen, assim que soube que Nujood Mohammed Ali al-Ahdal, uma menina de 10 anos (agora tem 15), apareceu sozinha perante um juiz a pedir para se divorciar do marido, que tinha 30.
“Quando o juiz ordenou a detenção do marido e do pai de Nujood, que a obrigara a casar-se, dei-lhe um abraço forte e prometi-lhe que a ajudaria”, contou-nos Shada Nasser, numa entrevista por e-mail, antes de ambas receberem, em Nova Iorque, o prémio Women of the Year 2008 da revista Glamour. “Ela sorriu e eu fiquei confiante que conseguiria vencer este caso.”
Há mais de uma década que a advogada iemenita, [agora com 54 anos], que usa o hijab (lenço) mas não o niqab, que cobre o rosto, quando comparece em tribunal, está envolvida na luta contra as tradições tribais, por uma nova lei de protecção da família e menores.
A militância pelos direitos humanos aprendeu-a com o pai, Mohamed Nasser Mohamed, diplomata e jornalista, que ajudou a fundar um diário incómodo para o poder, Al-Tariq. Igualmente fundamental, para Shada, foi o exemplo da sua mãe, encorajada pelo marido desde que se casaram, a que nunca ocultasse a face, mas que tivesse um emprego e conduzisse o carro de ambos.
Os pais de Shada viviam no Iémen do Sul, marxista e secular, antes da fusão com o Norte, conservador e religioso, em 1990. Ela tinha 9 anos quando Nasser morreu – o avião onde seguiu foi atingido por uma bomba, no que ele suspeita ter sido um atentado visando silenciar uma voz que o regime não suportava. Foi na véspera da unificação que Shada se mudou de Praga, na actual República Checa, onde estudava, para regressar a Sanaa.

Nujood Ali e a sua advogada Shada Nasser
© glamour.com
Não havia advogadas, quando Shada Nasser chegou à capital iemenita, e foi ela quem ajudou a criar o primeiro escritório de advocacia exclusivamente feminino, com o objectivo de defender mulheres.
Antes de Nujood, ela já se tinha envolvido num processo complicado, em 2005: uma rapariga de 16 anos, condenada a ser fuzilada por ter assassinado o marido. Na prisão, a ré foi violada, supostamente, por um guarda, e engravidou. Um decreto presidencial salvou-lhe a vida, in extremis, porque ela era menor e a lei proibia a pena capital nessas circunstâncias.
No caso de Nujood, foi também sob o argumento de que “não foi respeitada a lei” – muto vaga – sobre a “idade ideal” para ter relações sexuais, e deliberando que se tratou de “violação”, que um juiz dissolveu o casamento. Tratou-se de uma medida mais drástica do que o divórcio.
“Eu tinha de apoiar Nujood [e outras crianças que apareceram depois], sem as oportunidades da minha filha, Lamya, 9 anos, e do meu filho, Khalid, de 4, que frequentam a British School, tocam piano e aprendem francês”, disse-nos Shada Nasser.
“Eu e o meu marido estudámos Direito. Ele é doutorado pela Sorbonne, em Paris, e eu mestre pela Universidade Charles Carlove, em Praga – para onde me mudei quando o meu pai foi morto. Somos activistas e queremos mudar o nosso país.”
[Depois do galardão da ‘Glamour’, Shada e Nujood deixaram de ser falar durante algum tempo, segundo vários relatos, quando a menina se queixou de que a advogada se apropriara indevidamente do dinheiro do prémio. Resolveram, entretanto, o diferendo e voltaram a ser amigas, até porque a revista não pagou a nenhuma delas. Contribui apenas para um fundo da organização Vital Voices que ajuda a impedir casamentos forçados de crianças em várias regiões do mundo.]

Novembro de 2008, dia 10: Nujood e Shada Nasser subiram ao palco do Carnegie Hall, em Nova Iorque, para que a menina recebesse o prémio Women of the Year
© Reuters
Este artigo, aqui na versão integral e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 14 de Novembro de 2008 | This article, here in the expanded and updated version, was originally published in the Portuguese daily newspaper PÚBLICO, on November 4, 2008.