Ana Hina que dizer, em árabe, “Estou aqui”. E aqui o (talvez) mais perfeito álbum da carreira de uma grande artista. São 12 canções que nos fazem entrar no universo musical dos míticos irmãos Rahbani, de Fairouz e Abdel Halim Hafez. Mas também no Diário, de Frida Kahlo. (Ler mais | Read more…)

© Natacha Atlas
É meio-dia em Paris quando Natacha Atlas atende o telefone. Não podemos ver os seus olhos verdes emoldurados por pestanas postiças. Nem as várias camadas de maquilhagem que tornam mais exótico um rosto de boneca insuflável.
Mas a sua voz soa tão melodiosa como quando (en)cantou em 2006 num concerto único na Casa da Música, no Porto. Parece distraída, mas diz que ainda se lembra da “atmosfera acolhedora” daquela noite de 8 de Novembro.
“Foi a primeira vez que toquei com o meu grupo acústico [Mazeeka Ensemble] e acho que correu muito bem”, disse-nos, num Brit English muito peculiar. “Seria bom voltar de novo, porque gostámos imenso”.
E gostou tanto que uma parte do repertório daquele memorável concerto foi agora incluída no seu novo e nono álbum, Ana Hina – provavelmente o mais perfeito de uma carreira iniciada em 1991 como vocalista e bailarina do grupo electro-étnico Transglobal Underground.
Natacha Atlas, verdadeiro nome de uma convertida ao Islão, filha de um judeu egípcio e de uma católica inglesa, há muito que sonhava gravar um disco com canções dos seus “ídolos de infância”.
E eles aí estão: Fairouz, venerada como “tesouro nacional do Líbano”, e Abdel Halim Hafez (1929-1977), santificado como “o maior astro do Nilo”.
A ideia foi transmitida ao director musical Harvey Brough, pianista e guitarrista, que “fez um trabalho excelente” a partir de velhas e quase indecifráveis gravações.
O maestro Harvey apresentou um projecto com sofisticados arranjos, para Natacha poder reviver as décadas de ouro da música árabe (‘50, ‘60 e ‘70).
As batidas electrónicas que têm sido uma das suas marcas registadas ficaram de fora, mas continua a haver espaço para a raqs sharki, genuína dança do ventre com que começou a ganhar a vida, aos 17 anos, no bairro marroquino de Marolle, em Bruxelas, onde nasceu em 1974, antes de se mudar para Northampton.
O tema de abertura, Ya Laure Habouki (Oh Laure, o meu amor por ti), celebrizado por Fairouz, é desde logo uma homenagem aos irmãos Rahbani (Assi e Mansour), evocados em mais duas faixas: La Shou El Haki (Qual a necessidade de falar?) e La Teetab Alayi (Não me culpem).
““Foram eles os primeiros a mostrar ao mundo que era possível a fusão entre música árabe e música ocidental”, vinca Natacha Atlas. “O que se faz agora, misturar isto com aquilo, não é nada de novo. Já há 50 anos os irmãos Rahbani o faziam.”
O tributo é merecido. No Médio Oriente, e sobretudo no Levante (Líbano e Síria), há um antes e um depois dos irmãos Rahbani. Assi (1923-1986), que haveria de casar com Fairouz, compunha as músicas.
Mansour, agora octogenário, escrevia as letras. Fairouz (ou Turquesa – nome artístico de Nouhad Haddad) imortalizou a obra de ambos, graças à sua voz comparada a uma pedra preciosa.
Natacha, a quem chamam “Rouxinol do Cairo” (cidade que “é o sítio mais parecido com uma casa”, diz ela), tem consciência de que Fairouz permanece inimitável, aos 73 anos.
Achou, porém, que conseguia acompanhar o seu timbre vocal, o que já não aconteceria com Umm Kulthum, a diva egípcia que morreu em 1975 e ainda continua a cativar milhões de árabes, do Mashreq ao Magreb.
“Um Kulthum é de uma geração mais velha [nasceu em 1908] e eu não me sinto equipada para a interpretar”, confessa Natacha.
“Não digo que não venha a estar preparada, mas de momento não estou. E se eu fizer alguma coisa no futuro, quero fazê-la bem para não ficar embaraçada, como ficaria agora se tentasse.”
Ao Egipto, Natacha foi então buscar outra lenda: Abdel Halim Hafez. Uma vida pessoal tão trágica quanto as das telenovela árabes em que foi protagonista. Viveu um amor proibido. Quando finalmente o aceitaram, ela morreu antes do casamento.
Ele não voltou a casar-.se. Morreu antes de completar 48 anos, de uma doença grava causada por um parasita. No dia do seu funeral, quatro mulheres não resistiram ao desgosto e suicidaram-se.
Entre as 260 canções que Abdel Halim gravou, duas foram incluídas em Ana Hina. A primeira, Beny Ou Benak Eih (O que há entre tu e eu? Gostaria que me dissesses), é como se Natacha o convidasse para um tango.
O acordeão de Gamal Al Kordy confere ainda mais autenticidade a este corpo-a-corpo”, ou não tivesse ele, desde os seus 14 anos, acompanhado o próprio Abdel Halim. Na América, seria como ter tocado com Elvis Presley.
O talento de Gamal Al Kordy volta a evidenciar-se em El Assil (Pôr-do-Sol), outro clássico romântico de Abdel Halim em que Harvey Brough faz sobressair o Oriente no riq (pandeiro) de Aly El Minyawi, primo de Natacha, e o Ocidente no chimbau de Roy Dodds.
Será novamente o acordeão de Al Kordy (mas também a ney/flauta de Louai Alhenawi) a imprimir vida a Lammebada, uma das mais tradicionais cantigas árabes, que se estima remontar a 1492.
E, em Hayati Hinta, é uma vez mais Al Korty quem nos balança harmonicamente até ao Norte de África, numa canção de estilo núbio/berbere que Natacha Atlas escreveu para o seu anterior álbum, Mish Maoul.
O acordeonista de Abdel Halim só está ausente da faixa 7, proposta de Clara Sanabras, uma nativa de Barcelona e distinta executante de guitarra barroca, alaúde e ukelele.
Com este “violão” que tem origem no machete e no rajão da ilha da Madeira, comprado por 25 libras no eBay, ela faz um dueto quase operático com Natacha Atlas em La Vida Callada.
Como surgiu esta parceria árabe-latina? É Clara, que participa em quase todo o álbum, nos instrumentos e coros, quem nos explica, por e-mail: “Quando nos conhecemos, por intermédio de amigos comuns, Natacha mostrou-se interessada na música que eu interpretava (medieval, renascentista e barroca).”
“Um dia, decidimos, em conjunto com Harvey Brough, dar um concerto de Natal no nosso clube de jazz, chamado The Vortex. Incluímos aqui canções como Lammebada e outras. Terá sido a primeira versão do ‘grupo acústico’ que depois originou o Mazeeka Ensemble e Ana Hina.”
Foi nesse show natalício que Clara teve “uma conversa sobre mulheres e esperança” com Natacha. “Lembrei-me de um excerto de o Diário, de Frida Kahlo, em que um poema é ilustrado com um dos seus quadros, Árbol de la Esperanza, manténte firme.”
“Ela emocionou-se e eu compus para ela esta canção”, relata. “Pensei que funcionaria bem como dueto, inspirada num outro quadro, As duas Fridas”.
Natacha decidiu mesmo incluir La Vida Callada em Ana Hina, um álbum inteiramente gravado em Londres durante dois dias. A catalã, que tem o seu próprio grupo, Clara Sanabras & The Real Lowdown (nome do primeiro disco), ficou extasiada.
“Trabalhei como melhores músicos e as melhores pessoas que jamais encontrei. Foi um desafio e uma experiência fantásticos.”
Ao telefone, Natacha confirma que o mérito é de Clara, até porque, admite, conhece mal a história da revolucionária pintora mexicana.
“Há muitas artistas que se identificam com Frida Kahlo, porque ela é muito combativa”, diz a cantora cujos projectos futuros passam por criar, no Egipto, um refúgio para “mulheres abandonadas pelos maridos e sujeitas a muitas injustiças.”
Neste álbum, Natacha inseriu ainda um cover de Black is the colour, onde a sua voz e o piano de Harvey quase emulam a famosa versão da americana Nina Simone. Ana Hina, a canção que dá título ao disco, é também uma joint-venture, lírica dela e pautas dele.
Inquirida sobre qual a favorita das 12 faixas, Natacha não vacila (ao contrário do soldado de He Hesitate, o seu manifesto antiguerra, anti-Bush e anti-Blair).
“A que está mais próxima do meu coração é El Nowm [O sono]. É a expressão de mim própria. Tem algo sobre a noite. Fala da relação entre insónia e amor. É suavemente estranha. É a fusão. Um passo no passado e outro no presente. Também gosto muito de Ana Hina, mas El Nowm é como uma bossa-nova árabe. É diferente. É única, acho eu.”
Este artigo, agora revisto e com outro título, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 2008 | This article, now revised and under a different headline, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO in 2008