Consultor nos filmes Três Reis e Syriana, Jack Shaheen lamenta que, na América, não haja uma frente unida contra os estereótipos racistas. (Ler mais | Read more…)

Sobre “Aladino”, uma das mais lucrativas produções da Disney em 1992, Jack Shaheen interroga-se sobre como é que um filme para crianças pode abrir com esta canção: Oh, eu venho de uma terra/ de um lugar longínquo/onde vagueiam caravanas de camelos/onde vos cortam os narizes/ se não gostam da vossa cara/ é bárbaro, sim, mas é a nossa casa
Há dias em que Jack G. Shahen talvez gostasse de ser índio, negro, judeu, gay, hispânico, irlandês ou italiano. É que pertencer a um destes grupos na América significa que já não será sempre “o mau da fita”.
O contrário dos árabes, como ele, que “continuam a ser desumanizados por Hollywood”, como “bilionários, bombistas e bellydancers”.
Nos últimos 30 anos, este professor emérito da Universidade de Southern Illinois, especialista em Media, analisou “mais de mil” filmes (começou com curtas mudas de 1896) e séries de televisão.
Viu-os na sua própria casa, na Biblioteca do Congresso em Washington e em escolas de cinema de Nova Iorque à Califórnia. Contactou argumentistas, realizadores, actores, produtores e magnatas da indústria.
Ouviu e leu historiadores e críticos. Também viajou pelo mundo árabe e muçulmano, para aferir se os estereótipos que o ofendem correspondiam à realidade.
Deste esforço resultaram dois livros Reel Bad Arabs: How Hollywood Vilifies a People (2003, que também é um documentário) e Guilty, Hollywood’s Verdict on Arabs after 9/11 (2008), além de centenas de palestras em todos os 50 estados dos EUA e quatro continentes.

Em Reel Bad Arabs e Guilty, Hollywood’s Verdict on Arabs after 9/11, Jack Shaheen dá nota negativa a mais de 900 filmes e faz recair a maior infâmia sobre Delta Force (1986), com Lee Marvin e Chuck Norris (na foto)
O impacto foi tão grande que Shaheen, em tempos ignorado pelos seus patrões da CBS, é hoje consultor da DreamWorks, da Warner Brothers, da Showtime e da Hanna-Barbera Productions, além de convidado frequente de programas como Nightline, Good Morning America e The Today Show.
E se os filmes “Three Kings” (Três Reis, 1999) e “Syriana” (2005), ambos com George Clooney, apresentaram os árabes como “personagens multidimensionais” – vilões mas também heróis –, em muito se deve à orientação deste eloquente académico, determinado a quebrar “o velho ‘cliché’ de ‘viste um [árabe] viste todos’”.
Nascido em Clairton, pequena cidade metalúrgica perto de Pittsburg, Jack Shaheen descende de libaneses cristãos que emigraram para a Pensilvânia em 1920, logo após a I Guerra Mundial.
“Desde criança que fui sempre sensível ao modo como os afro-americanos eram representados no nosso país”, conta-nos numa entrevista, por telefone. “A minha escola era integrada, mas a cidade era segregada.
Os negros viviam de um lado e os brancos do outro. A nossa família era muito aberta. Nunca julgámos ninguém pela cor da sua pele ou como rezavam – se iam à igreja, à sinagoga ou à mesquita.”
O “momento da verdade” para Shaheen aconteceu em meados dos anos 1970, quando ganhou uma bolsa Fulbright para dar aulas na Universidade Americana de Beirute. “A partir do Líbano tive oportunidade de visitar não só este país mas também de viajar pela Arábia Saudita, Jordânia, Egipto e outros países árabes”, relata.
“Descobri o que muitos já haviam descoberto: que as pessoas são amigas e hospitaleiras”, acrescentou.
“Em 1975, quando regressei aos EUA, onde ninguém fala, por exemplo, do sofrimento dos palestinianos nos campos de refugiados, escrevi um artigo chamado Arab Images from American Television, e fiquei escandalizado porque ninguém o quis publicar, o que nunca antes me acontecera.”
Houve quem justificasse a recusa, alegando que o artigo “estava demasiado bem escrito”. O agente de Shaheen confessou-lhe que jamais na sua carreira testemunhara “tanto preconceito”.
Foram precisos três anos para que o artigo fosse publicado, em 1978, pelo Center for the Study of Popular Culture da Bowling Green State University. Em 1984, o artigo evoluiu para um primeiro livro chamado Arab TV.

Igualmente fustigada por Jack Shaeen é a série 24, com Kiefer Sutherland no papel de Jack Bauer. [Na altura desta entrevista, em 2008, estava no ar há seis anos e, em três das seis temporadas, os vilões foram árabes ou árabes-americanos muçulmanos”]
Perante as dezenas de recusas, Shaheen ainda se interrogou sobre se seria melhor desistir e escrever apenas sobre “temas seguros”.
Mas ninguém mais abordava “a imagem dos árabes na cultura popular americana” e ele não deixou que os preconceitos o impedissem de continuar a investigar. “Quanto mais aprofundava a questão, mais perturbado eu ficava, porque mais e mais estereótipos apareciam.”.
“As pessoas gostam de ver os maus a levar porrada. Vejam ‘Delta Force’. Começamos por fazer explodir toda a gente. É a vingança à boa maneira americana”
Para escrever Reel Bad Arabs (RBA), Shaheen fez buscas na Internet. “Coloquei palavras-chave como ‘árabe’ ou ‘camelo’. Esta foi uma de várias maneiras de encontrar muitos filmes”, refere Shaheen, que contou com a preciosa ajuda da sua mulher.
“Via um filme por dia, em média, e tirava notas. A seguir, revia estas notas e voltava ao filme, para ter a certeza que as notas estavam correctas. Eram cinco a seis horas para analisar cada filme.”
Em RBA e Guilty, Shaheen dá nota negativa a mais de 900 filmes e faz recair a maior infâmia sobre “Delta Force”/Força Delta (1986)”, com Lee Marvin e Chuck Norris; “Aladino” (1992), animação a que Robin Williams deu voz; e “Rules of Engagement”/Compromisso de Honra (2000), com Samuel L. Jackson e Tommy Lee Jones.
“Delta Force”, por exemplo, saiu dos estúdios da Cannon Films, propriedade de dois israelitas, Menachem Golan e Yoram Globus, que produziram mais de “duas dezenas de filmes anti-árabes” desde 1985.
Em Delta Force, sequestradores libaneses e palestinianos tentam desviar um avião para Beirute e uma unidade de elite americana oblitera-os. Shaheen cita o crítico Tom Hundley: “A maior parte do filme foi rodada em Israel; as cenas do aeroporto de Beirute passam-se no aeroporto [israelita] de Ben Gurion, as ruas são um bairro de judeus próximo de Telavive; os [caças] F-16 usados no combate aéreo foram fornecidos pelo Exército israelita, embora Israel não seja mencionado nos créditos.”

Na categoria dos bons filmes sem estereótipos, Jack Shaheen coloca “Paradise Now” / O Paraíso Agora, a história de dois amigos de infância palestinianos recrutados para cometerem atentados bombistas em Telavive
Shaheen também se revolta com a colaboração do Departamento de Defesa, do Exército, dos Marines, da Marinha e da Guarda Nacional dos EUA em filmes onde os árabes são sempre “terroristas incompetentes” ou uma ameaça económica. “Rules of Engagement”/Compromisso de Honra, que ele descreve como “dos mais racistas”, tem argumento do antigo secretário da Marinha James Webb.
A história desenrola-se no Iémen, um país real e não ficcional. Há manifestações violentas junto à Embaixada dos EUA e os marines (liderados por S.L. Jackson) são chamados a intervir.
Abrem fogo sobre uma multidão, incluindo mulheres e crianças. O espectador é levado a simpatizar com uma menina mutilada, só com uma perna, até chegar um advogado (Tommy Lee Jones) que prova terem sido os civis a provocar o massacre. No final, a menina não é inocente.
Quanto a “Aladino”, uma das mais lucrativas produções da Disney, Shaheen interroga-se sobre como é que um filme para crianças pode abrir com esta canção: Oh, eu venho de uma terra/ de um lugar longínquo/onde vagueiam caravanas de camelos/onde vos cortam os narizes/ se não gostam da vossa cara/ é bárbaro, sim, mas é a nossa casa.
Foram muitos os protestos e a Disney retirou do posterior vídeo dois versos (onde vos cortam os narizes/ se não gostam da vossa cara).
Para Shaheen, isso em nada alterou a imagem transmitida para milhões de pessoas em todo o mundo: “os árabes como caricaturas brutais e incivilizadas”, com “narizes inchados e olhos sinistros”.

Quanto a séries televisivas, uma das mais criticadas por Shaheen é NCSIS (que passa em Portugal nos canais AXN , FOX e SIC – e cujo elenco, na versão Los Angeles, conta com a actriz portuguesa Daniela Ruah, na foto). Em NCSI, uma “bela agente da Mossad” é convidada a ajudar colegas -americanos a perseguir terroristas palestinianos
Quanto a séries televisivas, uma das mais criticadas por Shaheen é NCSIS (que passa no canal AXN e cujo elenco, na versão centrada em Los Angeles, passou a contar com a actriz portuguesa Daniela Ruah), onde uma “bela agente da Mossad” aparece como convidada a ajudar colegas americanos a perseguir terroristas palestinianos.
Igualmente fustigada é 24, com Kiefer Sutherland no papel de Jack Bauer. “Já está no ar há seis anos e, em três das seis temporadas, os vilões foram árabes ou árabes-americanos muçulmanos”.
[A última temporada de “24”, número 8, foi exibida, nos EUA, em Maio de 2010 e centra-se nos esforços da CTU, unidade de contra-terrorismo, para eliminar as ameaças feitas durante uma conferencia de paz entre os ficcionais Presidentes Allison Taylor, dos EUA, e Omar Hassan, de uma inventada República Islâmica do Kasmistão, IRK].
Nesta entrevista, Shaheen diz que não contesta a existência de vilões árabes nos filmes. “O problema é que Hollywood só nos selecciona como vilões. Nunca vimos a humanidade dos árabes. Vemos mafiosos italianos, mas também vemos pais e mães decentes.”
“As famílias árabes são invisíveis. As mulheres são submissas ou estão em haréns. A Arábia e o deserto são sempre lugares de medo. Também não vemos árabes-americanos cristãos”, embora sejam a maioria da comunidade nos EUA.

“Three Kings”/Três Reis (1999) e “Syriana” (2005), ambos com George Clooney (aqui, ao centro, numa cena do primeiro filme), apresentam os árabes como “personagens multidimensionais” – vilões mas também heróis, saúda Jack Shaheen, determinado a quebrar “o velho cliché de ‘viste um [árabe] viste todos’”
O professor reconhece que muitos actores árabes não podem, excepto se já forem já famosos, rejeitar papéis de terrorista porque precisam de assegurar o seu sustento. Se não aceitarem, os produtores e realizadores vão buscar “actores com fisionomia árabe” para os substituir.
Shaheen também admite que, ao contrário dos afro-americanos, por exemplo, os árabes e muçulmanos não têm apresentado uma frente unida para pôr fim aos estereótipos que perduram em Hollywood e que ele atribui a três factores: o conflito com Israel, o boicote petrolífero nos anos 1970 e a Revolução Islâmica de Khomeini no Irão.
A sua esperança para combater o que chama de novo anti-semitismo (“respeito pelos sentimentos de um grupo semita, os judeus, mas não pelos de outro, os árabes”) está agora na “co-produção israelo-palestiniana”, que permitiu filmes como “Paradise Now”/ O Paraíso Agora, do palestiniano Hanny Abu- Assad, 2005) ou “The Syrian Bride” /A Noiva Síria, do israelita Eran Riklis, 2004).
[Os produtores de Paradise Now explicaram que apenas quiseram oferecer “uma perspectiva pessoal sobre as motivações, o factor humano, por detrás de crimes hediondos, sem ter de tomar partido pelo campo dos palestinianos ou dos israelitas”. Desenvolvido no Sundance Screenwriting Lab, o filme ganhou o Blue Angel Award do Festival de Cinema de Berlim em 2005.]
Shaheen também tem fé no “bom senso” de realizadores como Steven Spielberg, e Ridley Scott, que mostram, em seu entender, “mais equilíbrio nas personagens”, respectivamente, em “Munich”/ Munique (do que em “Indiana Jones and the Last Crusade” / Indiana Jones e a Última Cruzada, 1989) e em “Kingdom of Heaven”/ Reino dos Céus, 2005) do que em “Black Hawk Down” / “Cercados”, 2001, curiosamente, também dirigido por Ridley Scott).
Ao descrever, no diário britânico The Independent, o impacto que Reino dos Céus teve num cinema em Beirute, o jornalista Robert Fisk notou que, na derradeira cena, quando a figura de Saladino entra em Jerusalém, depois de derrotar os cruzados, e levanta um crucifixo caído do altar de uma igreja, havia lágrimas nos rostos de alguns espectadores – cristãos e muçulmanos.
O herói árabe foi aplaudido de pé pelo seu “gesto de honra”, mostrando “um Islão forte mas compassivo”.
Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente pelo jornal PÚBLICO em 2008. | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, in 2008