Em 1507, Portugal chegou à Pérsia quando os safávidas impunham a religião xiita que domina o actual Irão. Até 1622, competiram como ideologias rivais pelo controlo de Ormuz. Olharam-se com desconfiança e fascinação. Mudaram a Eurásia e celebram agora 500 anos de relações. (Ler mais | Read more...)

Portugueses saboreando uma refeição no Golfo Pérsico – dentro de água, devido ao calor intenso na região
© defense.info
Ao olhar para uma representação da Pérsia e de Ormuz, num atlas de Teixeira de Albernaz do século XVII, que abre a exposição dos 500 anos de relações entre Portugal e o Irão, na Torre do Tombo, em Lisboa, o embaixador Rasool Mohajer deixou-se maravilhar.
Afinal, a imagem moderna do golfo por onde hoje passa 20 a 25% do petróleo que o mundo consome deve muito a essa primeira cartografia.
Vindo de um país onde muitos documentos históricos se perderam devido a invasões, pilhagens ou desastres naturais, o diplomata recém-chegado a Lisboa ouviu atentamente a descrição empolgada que o comissário científico João Teles e Cunha ia fazendo de algumas das 42 peças expostas – mapas, cartas, crónicas, tratados, contratos, discursos.
Minutos antes, ao inaugurar a exposição (quatro vezes adiada), Mohajer já havia enaltecido a “ambição e a coragem dos portugueses que, para controlar os mares, percorreram oceanos e continentes, em barcos artesanais, descobrindo países antes desconhecidos”.
Realçou o simbolismo de “o primeiro embaixador estrangeiro na Pérsia” (em 1513) ter sido um português e de os portugueses terem chegado à região no momento em que os safávidas unificavam o país com uma religião única – o Islão xiita duodecimal (que crê em 12 imãs ou líderes espirituais).
É esse Islão xiita que impediu o embaixador de apertar a mão à secretária de Estado da Cultura e às outras mulheres (por serem estranhas e não familiares) presentes na exposição, embora os safávidas da corte do Xá Ismael I fossem muito mais liberais do que os actuais iranianos.
“Até bebiam vinho, o que escandalizou os portugueses”, quando chegaram em 1507, diz-me João Teles e Cunha.
Se causou choque, também encantou, porque João de Barros, o cronista do império marítimo lusitano, que ordenou a tradução do primeiro texto literário persa para uma língua europeia (o português), se deixou deslumbrar por uma doutrina muito mais parecida com o Cristianismo (crença numa divindade oculta) do que com o Islão sunita.

O forte português de Nossa Senhora da Conceição, na ilha de Ormuz (Irão)
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“O xiismo só começa verdadeiramente a ser conhecido em 1503-1504”, explica-me, numa entrevista por e-mail, Dejanirah Couto, a historiadora portuguesa que herdou, na École Pratique des Hautes Études, de Paris, a cátedra de Jean Aubin, provavelmente o maior estudioso do Golfo Pérsico, que morreu em 1998.
“Os costumes sociais não eram os mesmos [dos mais conhecidos muçulmanos do Norte de África] – os persas do Xá Ismael da altura tinha uma cultura de herança chamanista/turcomana/nómada/das estepes da Ásia Central desconhecida dos portugueses.”
Assim, quando Afonso de Albuquerque chegou com a sua armada em 1507 e depois em 1515, portugueses e persas olharam-se “com desconfiança, mas também fascinação”, acrescenta Dejanirah Couto, autora com Rui Manuel Loureiro de Revisiting Hormuz: Portuguese Interactions in the Persian Gulf Region in the Early Modern Period.
“O lado ‘belicoso’ dos portugueses era apreciado na Pérsia [sobretudo a técnica, armas e navios dos farang ou infiéis, “povo de ladrões que vivia no mar”]. O poder e a riqueza do Xá também impressionavam os portugueses.”
No entanto, as relações eram “tensas”, acrescenta. “Ormuz pagava um tributo aos persas (ao Xá Ismael desde 1504) e Albuquerque pretendeu confiscar em seu favor esse tributo. Os persas nunca apreciaram, e só não invadiram Ormuz porque havia uma longa tradição de independência do reino (e além disso o Xá estava ocupado com os otomanos).”
A aliança com os safávidas é atribuída por Teles e Cunha à necessidade de os portugueses “neutralizarem os mamelucos do Egipto, que dominavam o Norte do Iraque, Síria e Líbano (…), e bloquearem todas as rotas alternativas das especiarias”.
Dejanirah Couto acentua que os portugueses “queriam salvaguardar os domínios da Índia ameaçados pelo Sultanato de Bijapur“, xiita e aliado dos persas. “Fazendo aliança com os persas, salvaguardava-se a Índia (sobretudo Goa).”

Castelo português em Qeshm (antiga Queixume)
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Teles e Cunha destacou um pacto que Albuquerque e Ismael fizeram, caso derrotassem os mamelucos: o Rei D. Manuel I ficaria com Jerusalém e o Xeque persa com Meca e Medina – ambos concretizariam “sonhos messiânicos de conquista mundial, com o objectivo de salvação e redenção, a fim de instaurar um governo justo”.
Dejanirah Couto confirma, mas ironiza: “Era um bluff de Albuquerque, apoiado nas ideias messiânicas de D. Manuel. Nem o Xá nem Albuquerque tinham forças para atacar Meca. Nesse bluff, Albuquerque até ‘vendeu’ o Gujarat ao Xá que, no entanto, não lhe pertencia. Era uma maneira de negociar politicamente.”
Mas que impacto teria uma eventual vitória? “Ah! Teria desestruturado o ‘bloco islâmico’ com consequências incalculáveis para o Império Otomano que conquista o Egipto em 1517.”
A exposição na Torre do Tombo centra-se sobretudo em objectos políticos e o seu comissário científico destaca que as relações entre um “império marítimo” (Portugal) e uma “potência terrestre orgulhosa da sua tradição cultural milenar” (Pérsia) foram sobretudo políticas.
Dejanirah Couto corrobora, dizendo que “os primeiros contactos artísticos, pelo menos para a primeira metade do século XVI, foram poucos”. Porque os portugueses “estão confinados a Ormuz, têm pouco contacto com a Pérsia continental”.

Castelo português construído no século XVI na ilha de Ormuz
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“O contencioso político, e também económico, a propósito de Ormuz, e a questão da rivalidade, a propósito da Índia, dificultaram uma maior cooperação cultural, artística, literária e linguística”, adianta.”A Índia está sempre presente em filigrana; a tensão só vai diminuindo no final do século XVI, mas acende-se de novo com o Xá Abbas I (que não renunciou a Ormuz).”
O rei que subiu ao poder aos 16 anos e se proclamava “sombra de Deus na Terra” expulsou os portugueses, em 1622.
Para Dejanirah Couto, “sem dúvida que Albuquerque e o Xá Ismael” são as figuras mais determinantes do período em que os portugueses – testemunhas da ascensão e declínio dos safávidas – permaneceram no Golfo.
“É um grande duelo de negociação diplomática, embora por intermédio de personagens da corte persa, muito importantes para a gestão do reino, como Mirza Xá Hossein Esfahani. E mais tarde, com Ruy Freire de Andrade/Xá Abbas I, o duelo é quase o mesmo a um século de distância: ou seja, também para Abbas, em 1608 e em 1613, era importante o pagamento do tributo.”
Hoje, o conhecimento mútuo é desequilibrado. Diz Dejanirah Couto: “O problema é a falta de especialistas em Portugal que dominem as línguas da região”, sobretudo o árabe, o farsi e o turco.
Ao resumir os préstimos nas respectivas línguas, o comissário Teles e Cunha lamenta: só umas 13 palavras portuguesas coexistem com o farsi/persa (língua franca que influenciou mais o português). Exemplos: tabáku (tabaco), ânânâs (ananás), miz (mesa) e talvez arghanun (órgão), que os persas desconheciam antes de Albuquerque chegar.

Outro ângulo do forte português em Ormuz
© Hamed Saber | colonialvoyage.com
Este artigo foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 20 de Junho de 2008 | This article was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on June 20, 2008