Fairouz foi cantar à Síria e o Líbano ficou em estado de choque

A diva do Levante aceitou um convite para actuar nos festejos de Damasco Capital Árabe da Cultura 2008. Os críticos não lhe perdoam, ainda que interprete uma opereta que troça de um governante opressor. (Ler mais | Read more…)

Fayrouz durante a sua actuação em Damasco, na opereta Sah al-Nom (ou Sah Annom)
© Ramzi Haidar | The New York Times

Aos 73 anos, venerada como um tesouro do Líbano, a cantora Fairouz fez rolar lágrimas ao voltar à Síria, pela primeira vez nas últimas duas décadas, para oito dias de concertos, inseridos nos festejos de Damasco, capital árabe da cultura 2008.

Lágrimas de libaneses, amargurados por verem a sua “embaixadora das estrelas” em território “inimigo”. Lágrimas de sírios, emocionados com a voz muk hmali (de veludo) da celebridade que não tem rival no mundo árabe desde que morreu a egípcia Umm Kulthoum, em 1975.

Para os sírios, aliás, esta visita é muito natural. Dizem que foi a Rádio de Damasco que apresentou ao mundo Fairouz e as suas melodias.

Dizem que as emissões matinais das brigadas do exército sírio ainda começam com os hinos patrióticos que ela imortalizou. E dizem que o defunto Presidente Hafez al-Assad se manteve sempre em contacto pessoal com a cantora, tendo pago os tratamentos do seu falecido marido.

No entanto, na conjuntura actual no Levante, em que a Síria é suspeita de envolvimento numa série de assassínios de políticos, militares e intelectuais em Beirute, a presença de Fairouz em Damasco, mesmo a cantar em playback, causou perplexidade e choque.

Alguns lembram-se de que esta mulher nascida Nouhad (Esplendor) Haddad recusou dar um espectáculo em privado ao Presidente argelino Houari Boumediène, em 1969 (a sua música banida das rádios por seis meses).

E muitos também se recordam que, durante a guerra civil libanesa (1979-1990), a diva de longos cabelos ruivos manteve um silêncio de luto, para não tomar o partido de nenhum dos beligerantes.

Quando regressou ao Festival de Baalbeck, em 1998, actuando para uma audiência emocionada de milhares de cristãos (como ela) e muçulmanos, o jornal anglófono Daily Star descreveu a sua actuação como “catarse a nível nacional”.

Fairouz ­– nome artístico equivalente a “turquesa”, a pedra preciosa – deixou de ser intocável. O líder druso Walid Jumblatt disse que ela se tornou num “instrumento nas mãos dos serviços secretos” de Damasco.

Outro membro do Parlamento, Akram Shehayeb, pediu-lhe que não cantasse para os “carcereiros do Líbano”, alusão aos vizinhos que, de 1976 a 2005, mantiveram 40 mil soldados e espiões no “País do Cedro”.

Na Síria, também um grupo de activistas apelou a Fairouz para boicotar as festividades na cidade premiada pela UNESCO, lembrando que está em marcha uma ofensiva contra dissidentes.

Um deles, Riad Seif, terá sido detido apenas uma hora antes de a ilustre visitante subir ao palco, na segunda-feira. Neste dia de estreia, outros dez opositores foram acusados de “conspirar contra o Estado”, enfrentando longas penas de prisão, noticiou a Reuters.

Se as críticas foram várias, Fairouz contou também com o apoio de muitos dos seus numerosos fãs.

A defesa mais acérrima foi feita por Elias Harchoufe, no diário Al-Ayat, de Londres, sublinhando a mensagem da opereta Sah al-Nom ou Sah Annom (“Dormiste bem?”), libelo contra um governante opressor e corrupto, que ela escolheu interpretar [desempenhando o papel de uma mulher que obriga o ditador a enfrentar a verdade e  a aceitar reformas] “mais eloquente do que milhares de artigos e discursos políticos”.

A “rapariga da montanha”, como Fairouz era conhecida no início da carreira, permaneceu silenciosa face às críticas e aos elogios.

Da família, falou apenas o compositor Mansour Rahbani, irmão do seu defunto marido, Assi, garantindo que a actuação da cunhada era uma mensagem “de amizade à Síria, não de subserviência”. Deixou um apelo: “Por favor, abstenham-se de lançar o nosso nome na lama política.”

Estas palavras têm peso, porque a associação dos irmãos Rahbani (Mansour escrevia as letras e Assi a música) com Fairouz foi inscrita na história musical árabe como “um dos maiores fenómenos culturais do século XX”.

[Em 2013, Fairouz, uma cristã de rito ortodoxo siríaco, voltou a causar polémica quando exprimiu a sua admiração pelo xeque Hassan Nasrallah, líder do movimento xiita Hezbolhah. 

Ziad Rahbani, filho da cantora e também ele compositor, disse a um website libanês que a sua mãe “ama muito o ‘sayyid'”, numa referência ao título do chefe do Partido de Deus, milícia e partido com representação no Parlamento de Beirute.]

Fairouz actuando em Damasco, em 2008
© Reuters

Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado no jornal PÚBLICO, em 27 de Janeiro de 2008 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on January 27, 2008

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