Sammy Gitau fez da (má) vida um conto de Natal

Tinha 13 anos quando lhe mataram o pai. Sendo o rapaz mais velho, fizeram dele “chefe de família”. Para alimentar a mãe e 11 irmãos, foi ladrão, membro de gangue e vendedor de droga. Depois de espancado quase até à morte, uma overdose de cocaína deixou-o em coma. Ele firmou, nessa altura, “um pacto com Deus”: iria ser um bom rapaz. Esta é a sua história – uma “viagem miraculosa”. Narrou-a numa conversa telefónica, com voz sorridente. (Ler mais | Read more…)

Sammy Gitau, depois de se formar, com um mestrado, na Universidade de Manchester (na foto), regressou a Nairobi para dirigir um projecto de apoio aos órfãos nos bairros de lata
© manchestereveningnews.co.uk

 

1. INFÂNCIA E MORTE

O meu nome é Sammy Gitau. Nasci há 35 anos, em Mathare, o mais antigo e dos mais populosos bairros de lata [habitado por cerca de 300 mil pessoas] de Nairobi, capital do Quénia. Tenho cinco irmãos e seis irmãs.

Fui o segundo filho a nascer, e sou o mais velho dos rapazes. Hoje, todos estão mais ou menos orientados. Uns casados, outros a viverem com a minha mãe e ainda a frequentar a escola. Continuam a lutar pela sobrevivência, mas nada que se compare com o que eu sofri.

O meu pai tinha vários negócios, mas dedicava-se sobretudo à venda ilegal de bebidas alcoólicas, como whisky. Ele construiu uma casa em propriedades que familiares directos disputavam. Também se envolvia na política local e, por isso, não sabemos muito bem quem o matou, em Fevereiro de 1998.

Temos apenas uma ideia vaga de quem terão sido os assassinos, por um lado políticos e, por outro, alguns parentes que queriam ficar com as suas terras.

Quando me levaram até junto dele, no dia em que o atacaram, o meu pai ainda estava vivo. O seu crânio tinha sido esmagado com um machado. Morreu lentamente nos meus braços. Foi muito traumático, para mim. Eu tinha apenas 13 anos.

Fui forçado, por ser o rapaz mais velho, a tornar-me no chefe da família. A minha comunidade dizia-me: “A partir de agora, tens de trabalhar, para ajudar a tua mãe e os teus irmãos”.

Mas foi muito, muito penoso. Eu era ainda um miúdo, e em nenhum emprego me podiam contratar, além de que eu não aprendera nem sabia fazer nada. A única maneira de conseguir dinheiro e comida foi ir para as ruas.

Eu estava na escola, quando mataram o meu pai, mas as aulas eram frequentemente interrompidas, porque não tínhamos dinheiro para pagar aos professores, ou porque eu fazia os trabalhos de casa no balcão onde vendíamos as bebidas, e havia regularmente brigas entre clientes, o que impedia a concentração. Nem cheguei a completar dois anos de instrução primária.

Kibera, Quénia, o bairro de lata onde Sammy Gitau intervém, é o maior de África, com 600 mil almas, cenário do filme O Fiel Jardineiro, do cineasta Fernando Meirelles
© Brian Otieno | Al Jazeera

 

2. LADRÃO, TRAFICANTE E VICIADO

Após a morte do meu pai, tentei concluir os estudos, mas as pessoas na comunidade não me encorajavam. Só me obrigavam a encontrar alguma coisa que ajudasse a sustentar a minha família. A escola não me iria dar dinheiro, repetiam. A minha frustração aumentou.

Decidi então ir para as ruas, e aqui só temos três opções. Uma é andar pelas lixeiras à procura de alimentos para comer, ou de plástico e metal que vendemos para a reciclagem.

Outra opção é aderir a um gang. E os gangs dedicam-se a roubar nas cidades. Isto era rentável mas muito duro.

Eu roubava, sobretudo, fios de ouro e relógios. Íamos a sítios que compravam o que furtávamos, mas nunca sabíamos o real valor do que tínhamos roubado, nem tínhamos remorsos por isso ser roubado. Aceitávamos o que nos pagavam.

Com o dinheiro que eu obtinha, comprava comida e roupas novas, e levava para casa. Nunca dizia como conseguia isto à minha mãe, que era uma senhora muito cristã. Geralmente, ela só me via uma vez ou duas vezes por mês.

Eu tentava ir a casa quando ela não estava, para não ter de a enfrentar. Voltava depois para dormir nas ruas, ou tentava arranjar hotéis onde pagava para me arranjarem um quartinho.

Pensava que controlava a minha vida, até ser apanhado pela polícia ou por uma turba enfurecida. Passei algumas noites e semanas em esquadras, embora nunca tenha ficado preso. Também fui espancado três vezes, duas delas quase até à morte, por multidões desvairadas.

A terceira opção foi dedicar-me à venda de droga. Depois de ter sido espancado por roubar, pensei que poderia vender sem cair na tentação de consumir.

Mas acabei por me viciar. Aos 19 ou 20 anos, depois de uma overdose de cocaína, fui parar ao hospital. Ora estava em coma, ora consciente. Muitas pessoas me visitaram, amigos e parentes.

Confuso, não sabia onde me encontrava. Foi um grande choque quando me apercebi de como caí bem no fundo. Pensei que a minha vida havia chegado ao fim. Aliás, à minha volta, todos diziam que eu ia morrer.

Foi então que fiz um pacto com Deus: ‘Senhor, dá-me a possibilidade de voltar atrás e emendar os meus erros. Deixa-me encontrar um meio de fazer o bem’. A minha recuperação foi um milagre.

Poluição, falta de infra-estruturas e um sistema degradado de saneamento básico propagam o ciclo de pobreza e desigualdade em Kibera, Quénia
© Brian Otieno | Al Jazeera

 

3. UMA CARTEIRA NA LIXEIRA

Estive no hospital três meses. Nem sei quem pagou a conta desse internamento. Talvez a assistência social. Nunca perguntei à minha mãe.

Quando me deram alta, voltei à minha comunidade. Fui viver para a casa da minha mãe, procurei os meus amigos e comecei a tentar motivá-los a mudar de vida. Mas eles mostravam-se relutantes.

“Por que havíamos de fazer isso? Até parece que foste enfeitiçado!”, desdenhavam. Foi difícil, para eles, compreenderem a minha mensagem, a de que eles acabariam por morrer. A pouco e pouco, os mais jovens foram aderindo.

Começámos a fazer, por exemplo, trabalhos de limpeza nas ruas. E a comunidade apreciava. Nós limpávamos e davam-nos comida, dinheiro ou tarefas para fazer. Criaram-se assim oportunidades de emprego.

Com a nossa obra, chamámos a atenção de algumas organizações não governamentais. Aproveitei a oportunidade de fazer um curso de carpintaria, consegui algumas ferramentas e passei a ensinar outros. Também fiz um curso de electrónica. Esta formação profissional ajudou-me a compensar a falta de estudos e a ajudar os habitantes dos bairros de lata.

O trabalho era feito nas ruas e não agradava a toda a gente. Optámos por voltar à comunidade, e reparámos que havia muita área disponível para as nossas actividades, sobretudo onde as pessoas deitavam lixo.

Limpámos essas zonas e montámos primeiro uma carpintaria. Não foi fácil. Foi então que me lembrei de usar contentores de carga. Se tivesse alguém que os oferecesse poderíamos transformá-los em oficinas, em bibliotecas, em escolas…

Uma organização internacional de mulheres e outras ajudaram-nos e, por esta altura, conhecemos Monica Quince, mulher do representante da União Europeia para a África, Caraíbas [e Pacífico, ACP] em Nairobi, que ficou impressionada com a nossa acção. Isto foi por volta de 1999.

Eu continuava a recrutar jovens para o nosso projecto, e foi nessa altura, tinha 24 ou 25 anos, quando andava por uma lixeira, próximo de um bairro de gente abastada, nas proximidades de Mathare, que encontrei uma carteira novinha. Abri-a e lá dentro estavam quatro prospectos da Universidade de Manchester.

Tentei lê-los, e percebi que um deles, referente ao IDPM (Institute for Development Policy and Management) e com uma menção ao Quénia, estava relacionado com o que eu gostaria mesmo de fazer. Guardei esse prospecto e levei-o para a comunidade.

Disse à minha gente, mas muitas pessoas gozaram comigo. Que era impossível, que eu não tinha sequer educação básica. Mas eu guardei o prospecto. 

Praticamente sem saneamento básico e estradas, a vida e a mobilidade dos residentes de Kibera, Quénia,  são de uma dureza atroz
© Brian Otieno | Al Jazeera

 

4. DUAS BOLSAS E UM VISTO RECUSADO

Um dia, em 2005, recebi a visita de Alex Waldorf, um diplomata da União Europeia, e de Mónica Quince. Depois de ver o nosso projecto comunitário, ele perguntou-me: “O que quer fazer com a sua vida?” Eu nem sabia o que responder. Então disse-lhe: “Olhe, há um curso em Manchester que eu gostava muito de tirar.”

Fomos à procura da brochura. Estava numa prateleira. A informação era pouca, e Alex tentou saber mais através da Internet.

Assim que soube, mandou-me imenso material. Posteriormente, telefonou-me a inquirir sobre se eu já tinha enviado a minha candidatura, mas eu não sabia como candidatar-me.

Ele tranquilizou-me: “OK, vamos candidatar-nos juntos”. Ele telefonou à universidade e perguntou se aceitariam um indivíduo que não tinha concluído o ensino primário para fazer um mestrado [risos]. Eu não tinha sequer feito o liceu.

A universidade aceitou-me, porque viu uma apresentação do meu trabalho diário na comunidade, e acharam que seria benéfico aceitarem-me, não só para mim, mas também para eles, como instituição.

Para poder ingressar, tive de aperfeiçoar o meu inglês. Fiz um curso intensivo, de um mês, no British Council do Quénia.

A nota máxima era nove valores e eu finalizei com sete – o mínimo exigido pela universidade. Fiquei orgulhoso, porque estudei muito arduamente.

Consegui uma bolsa de estudos integral, mas duas semanas antes de eu chegar à universidade foi-me negado um visto de entrada no Reino Unido.

[O Alto Comissariado Britânico em Nairobi, não o considerou “um sério candidato”, devido à sua fraca escolaridade].

Eu voltei para o Quénia e foi muito triste. Fui insultado, quase fisicamente agredido, porque as pessoas na comunidade ficaram muito desiludidas. Sentiram-se enganadas por eu ter dito que ia realizar meu sonho em Inglaterra.

Foi nessa altura que o meu amigo Alex Waldorf recorreu aos tribunais. [Ao fim de sete meses de batalha legal, um juiz ligado aos serviços de imigração revogou a decisão de recusa do visto como “insatisfatória e insustentável”].

Quando chegou o veredicto, porém, a minha bolsa tinha expirado e tive de me candidatar de novo, sempre com a ajuda e a recomendação de Alex. Foi quase um ano perdido.

A segunda bolsa já não foi integral. Servia só para estudar e tive de procurar donativos que pagassem o meu alojamento e alimentação. Beneficiei da generosidade de muitas pessoas que conheciam o meu projecto no Quénia.

Os mais pobres moradores em Kibera, Quénia, são obrigados a erguer as suas casas nas margens do rio. Quando vêm as época das chuvas, o impacto é gravíssimo: muitas pessoas morrem e muitos lares são destruídos
© Brian Otieno | Al Jazeera

 

5. O CAMPUS E O MESTRADO

Em Setembro de 2006, entrei finalmente na universidade. Deparei com muitas dificuldades, mas também fui muito ajudado por toda a gente, colegas e professores, que foram muito compreensivos. Basta dizer que eu nunca tinha consultado um livro numa biblioteca, nunca tinha apresentado um trabalho escrito.

[Em várias entrevistas, Pete Mann, o director de curso de Sammy Gitau, reconheceu que Manchester abriu uma excepção, mas destaca a determinação do aluno queniano. “É certo que ele teve mais de um orientador, mas a sua tese (de um total 32 mil palavras, segundo a imprensa britânica,) foi submetida a um examinador externo que não sabia quem ele era, por isso, não beneficiou de qualquer favorecimento”].

Eu estudava de manhã até à noite, dias úteis e fins-de-semana. Estava no paraíso, tinha um quarto só para mim, com casa de banho privativa, e toda a tranquilidade para me dedicar à minha formação. Que mais poderia eu pedir?

[No seu site, a Universidade de Manchester qualificou o percurso de Sammy Gitau de “viagem miraculosa”]. 

 

Um grupo de mulheres limpa esgotos a céu aberto em Kibera, Quénia, para impedir que a água das chuvas e os detritos que elas transportam entrem para dentro da suas casas
© Brian Otieno | Al Jazeera

6. O FUTURO

Agora, que tenho o mestrado [o diploma de Gestão e Política de Desenvolvimento foi entregue no dia 13 de Dezembro de 2007, numa cerimónia de formatura no campus da universidade], tenciono regressar ao Quénia, em Janeiro de 2008.

Neste momento, com cerca de 100 dólares por mês, às vezes até menos, estamos a ajudar mais de 20 mil pessoas, a saber usar o seu talento e os seus recursos [em áreas como alfaiataria, fabrico de sabão ou reparações eléctricas e informáticas, mas atraindo também serviços médicos], em cinco centros instalados em quatro bairros de lata.

[Um destes ‘slums’ onde Sammy Gitau intervém é Kibera, o maior de África, com 600 mil almas, cenário do filme ‘O Fiel Jardineiro’, do cineasta Fernando Meirelles.

De um total de 2,3 milhões de habitantes do Quénia, 60 por cento (sobre)vive neste tipo de comunidades, onde os gangs traficam não só drogas mas também água e electricidade, desviada das redes públicas e vendida a um preço seis vezes superior ao que pagam os bairros dos ricos.]

Eu quero alargar o meu programa de assistência, investir não só nas áreas urbanas mas também nas zonas rurais. Não temos nenhum edifício. Continuamos a trabalhar em contentores.

Sou uma pessoa de fé, embora não daquelas de ir à igreja. Leio muito a Bíblia que me dá muita esperança. Depois de Manchester, quero ser um modelo de inspiração para os meus três filhos.

Sammy Gitau, em Nairobi, com crianças e jovens que beneficiam do seu projecto de desenvolvimento humano. Tem enfrentando ameaças de prisão por ajudar os órfãos dos bairros de lata da capital queniana
© manchestereveningnews.co.uk

Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 24 de Dezembro de 2007 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on December 24, 2007

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