No reino da segregação, quatro mulheres puseram em marcha um movimento pelo direito a conduzirem nas estradas – nos céus já podem pilotar aviões. Uma das fundadoras deu-nos uma entrevista e mostrou-se confiante. (Ler mais | Read more…)

Wajeha al-Huwaider foi incluída pela revista Arabian Business na sua lista das “100 mulheres árabes mais poderosas”
© acelebrationofwomen.org
Wajeha al-Huwaider e outras três amigas pegaram nos telemóveis e nos computadores e enviaram incontáveis SMS e e-mails “para todos os cantos” da Arábia Saudita. Percorreram “vários centros comerciais, health clubs e salões de cabeleireiro”. Ao fim de alguns meses recolheram mais de 1000 assinaturas e enviaram uma petição ao rei Abdullah.
As mulheres querem ver “restituído o direito de conduzir” no único país do mundo onde estão proibidas de o fazer –até recentemente, não podiam sequer guiar bicicletas –, mas onde são proprietárias de 40% dos veículos que diariamente matam uma média de 13 pessoas nas estradas nacionais.
“Chegou a hora de dar às mulheres (…) um direito negado por motivos puramente sociais e injustificados”, refere a petição, entregue a 23 de Setembro [de 2007].
E a realidade é que a proibição de conduzir não é estipulada por nenhuma lei e sim por uma fatwa (édito) do Conselho dos Grande Ulama, a mais alta autoridade religiosa do país. Foram estes “sábios” que impuseram a restrição em 1990, depois de 47 mulheres terem circulado ao volante de 15 veículos pelas ruas de Riad, a capital, num “protesto cultural”.
[Em 2011 Wajeha al-Huwaider e outra activista pelos direitos humanos, Fawzia Al-Oyouni, foram “acusadas de rapto e tentativa de ajudar Nathalie Morin a fugir do marido que a violentava, para se poder refugiar na Embaixada do Canadá em Riad.
As acusações foram retiradas após a ‘intercessão de um político influente’, não identificado. Um ano depois, Wajeha e Fawzia voltaram a ser acusadas do crime de takhbib – incitar à separação de um casal. A 15 de Junho de 2013, foram ambas condenadas a 10 meses de prisão. Foram também proibidas de saírem da Arábia Saudita durante dois anos.” ]
Em 1990, o ano em que o Iraque invadiu o Kuwait e tropas dos Estados Unidos entraram na Arábia Saudita, as mulheres do reino sentiram que não podiam ser menos do que as jovens americanas que passeavam de jipe (para não falar de calções) pelas bases no deserto do Sudeste da Ásia.
Pagaram um preço elevado pela ousadia. O Comité para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício (a temível polícia de costumes) puniu-as severamente.

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Para os teólogos wahhabitas, tão extremistas quanto os Taliban afegãos, uma mulher ao volante contribuirá para a “corrupção moral” e a “erosão dos valores tradicionais”. Porque, alegam, “irão contactar com homens estranhos, como polícias de trânsito ou mecânicos”.
A estes argumentos, as peticionárias contrapõem que as mulheres já são forçadas a conviver com estranhos ao terem de contratar motoristas (geralmente filipinos, indianos e paquistaneses), se não têm boleia de familiares.
Isso não está isento de “riscos de assédio sexual”, afirmam, além de que o pagamento de um salário de cerca de 500 dólares mensais a um chauffeur particular é um luxo que as menos abastadas não podem suportar.
Wajeha al-Huwaider assume que está cansada de lutar contra o que considera “gente ignorante”, mas é com voz sorridente que atende o telefone na sua casa em Dhahran, na costa oriental da Arábia Saudita.
“Esta campanha está a correr muito bem”, diz-me. “Depois que entregámos a petição, mais pessoas se juntaram a nós, e já somos umas 15 mil, a maioria mulheres, talvez 80% – mas também homens. Há uma década que tentávamos organizar-nos e finalmente conseguimos”.
Além de Wajeha al-Huwaider, 45 anos, divorciada e mãe de dois adolescentes, o “núcleo duro” da nova Associação para a Protecção e Defesa dos Direitos das Mulheres na Arábia Saudita é composto por Fawzia al-Ayouni, Ebithal Mubarak e Haifa Usra, provenientes das duas cidades mais “liberais” da Casa de Saud: Dhahran e Jidá.
Aqui, notam visitantes, as mulheres já deixam deslizar o hijab (lenço) pela cabeça, usam roupas mais justas, com os distintos padrões da Burberry ou da Gucci, não desviam o olhar e estendem a mão a homens fora do seu círculo familiar.

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No “grupo das quatro” todas têm formação universitária, três delas nos Estados Unidos. Inquirida sobre se não se arriscam a ser vistas menos como vanguarda e mais como movimento de uma elite ocidentalizada sem ligação às menos cultas e resignadas, Wajeha responde:
– “Não se trata de um capricho, porque a nossa petição também foi assinada por donas de casa, operárias e desempregadas. Além disso, nas zonas e aldeias mais remotas as mulheres já conduzem, desafiando a proibição, porque sabem que não são perseguidas como as mulheres nas cidades”.
Fluentes em inglês, Wajeha e Fawzia têm sido os principais rostos desta iniciativa, que media e blogues, do Egipto ao Golfo Pérsico, não hesitaram em qualificar de “corajosa”. Dão entrevistas e aceitam ser fotografadas sem a obrigatória abaya, a longa túnica negra que as tapa, da cabeça aos pés.
A primeira é escritora (galardoada em 2004 com o prémio PEN de livre expressão), jornalista (banida pelas autoridades dos diários Al Watan e Arab News onde colaborava) e quadro superior da Aramco, a maior companhia petrolífera do mundo (com capitais sauditas e norte-americanos). A segunda foi directora de uma escola, e é casada com o poeta e activista pró-democracia Ali Domaini.
“Podemos ser presas, perder os nossos empregos, ser impedidas de viajar [e renegadas por familiares, como aconteceu em 1990], mas se conseguirmos o direito de conduzir terá valido a pena”, afirmou Fawzia ao jornal The Washington Post.
“É uma necessidade, um direito básico”, sublinhou, recordando o dia em o seu bebé adoeceu, o marido estava na cadeia, e ela teve de ir para à rua, às duas horas da madrugada, à procura de alguém que a levasse ao hospital. Por acaso, um cunhado apareceu e a criança salvou-se.

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Wajeha sabe o que é ser detida. Foi o que lhe aconteceu no Verão de 2006, em plena guerra do Líbano, quando foi para a ponte que liga o Bahrain à Arábia Saudita erguer uma faixa com uma mensagem dirigida ao rei Abdullah [1924-2015]: “Dê às sauditas os seus direitos!”
Interrogada pela Polícia e forçada a assinar um documento em que se comprometia a não participar em mais manifestações, “a parte mais humilhante” aconteceu quando teve de esperar que o seu irmão, “muitos anos mais novo”, chegasse para que fosse libertada.
Numa sociedade patriarcal como a Arábia Saudita, as mulheres “precisam” de um mahram (Guardião), seja ele pai, marido, filho ou outro parente masculino, sem a licença do qual não podem fazer rigorosamente nada. Se quiser voltar a casar, por exemplo, Wajeha diz que precisa da “autorização dos filhos”, que têm 17 e 15 anos.
Apesar do incidente de 2006, Wajeha está confiante de que Abdullah, com reputação de reformador (quando só era herdeiro do trono organizou a primeira conferência sobre direitos das mulheres – e recentemente mandou erguer uma universidade com o seu nome onde não há segregação de sexos), não vai ignorar a petição.
“Ele é um rei moderado e quer deixar a sua marca na história saudita, como o irmão Faisal, que abriu as primeiras escolas para mulheres [em 1956] “apesar da oposição interna”.

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Para sermos justos, o mérito é de Iffat al-Thunayan, a terceira e favorita mulher de Faisal que o encorajou a desafiar tribos e imãs para introduzir no país uma educação secular, da primária à universidade. Em 1963, o monarca chegou a mobilizar as forças de segurança para reprimir uma revolta de beduínos que recusavam enviar as suas filhas para a escola.
Hoje, segundo estatísticas da UNESCO, são mulheres 70% dos alunos inscritos nas universidades sauditas, 56% dos licenciados e 40% dos que concluem o doutoramento. No mercado de trabalho, porém, elas representam apenas 5% da força activa – a maioria continua confinada ao lar –, ainda que cerca de 20 mil empresas privadas pertençam a mulheres.
A diferença entre Faisal e Abdullah é que este tem um reino dividido e a sua margem de manobra, constatam diplomatas estrangeiros, é limitada. Por exemplo, o antigo ministro do Interior príncipe Nayef [que morreu em Junho de 2012] era um ultraconservador com grande base de apoio entre o establishment religioso.
Valorizava sobretudo “a honra” das mulheres, porque “conduzir é uma questão secundária e não prioritária” com que os sauditas se devem preocupar. [Nayef foi o segundo príncipe herdeiro de Abdullah a morrer de doença. Foi substituído, como herdeiro aparente do rei, pelo príncipe Salman, ministro da Defesa, considerado “um reformista cauteloso”.]

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Durante a entrevista, Wajeha sublinhou que não perde a esperança. “A nossa situação, única no mundo árabe e muçulmano, embaraça as autoridades. O rei prometeu que iria reflectir e admite que este é um problema social. Nada no Corão ou nos hadith [tradições do tempo de Maomé, o profeta do Islão] nos priva da liberdade.”
“Creio que será apenas uma questão de tempo até haver uma decisão, talvez um ano, ou menos. Os religiosos aqui sempre foram um obstáculo. Também não aceitavam a educação das mulheres, nem a rádio, nem a televisão, nem os telemóveis. E tiveram de ceder. E nós não podemos recuar.”
Depois de se instalar de novo em Dhahran – antes vivia no Bahrain, deslocando-se todas as noites da sede da Aramco até casa – Wajeha nota que algumas mudanças vêm sendo introduzidas. Sobretudo desde que o país, em choque ao descobrir que eram sauditas 15 dos 19 terroristas dos ataques de 11 de Setembro de 2001 nos Estados Unidos, teve de repensar a interpretação wahabita da doutrina islâmica.
Exemplos: as mulheres já têm bilhete de identidade. Antes só existiam nos documentos do pai ou do marido. Os casamentos forçados são agora um crime. Em 2005, uma mulher recebeu pela primeira vez o brevet de piloto de aviação – até então reservado exclusivamente aos homens. Em 2006, duas mulheres entraram para a administração da Câmara de Comércio, um reduto masculino.
A temível polícia religiosa também viu limitados alguns dos seus poderes, depois uma tragédia em Março de 2002: um incêndio numa escola em Meca resultou na morte de 15 meninas, porque o “Comité da Virtude” impediu que os bombeiros entrassem no edifício.
Seria “um pecado” se vissem os rostos das alunas e professoras sem o hijab. As críticas foram tantas, dentro e fora do país, que os agentes não mais poderão interferir no trabalho das equipas de socorro.

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É certo que, em 2005, as mulheres foram impedidas de votar e de se candidatarem às eleições municipais – as primeiras desde a fundação do Estado em 1932 – mas isso não desencorajou Wajeha, alvo de “várias ameaças, de pessoas fracas e fanáticas”, e cujos filhos “vivem aterrorizados” por terem uma mãe militante.
“Depois da petição para conduzir, vamos levantar outras questões, como a violência doméstica”, assevera Wajeha. “Não vamos parar. Só abrimos uma porta”.
E há muitas injustiças para reparar. Como o testemunho de uma mulher em tribunal valer metade do que vale o de um homem. Ou as mulheres terem de viajar sempre nos bancos traseiros dos autocarros, mesmo que estejam vazios.
“Quando não temos nada, nada temos a perder”, frisa Wajeha, já no final da entrevista. “As mulheres neste país não têm nada. A nossa campanha chegou a muita gente através da Internet.”
“As autoridades não podem negar ou distorcer a realidade. Hoje sabe-se tudo o que se passa, mesmo nos lugares mais distantes. Olhem para as imagens do que está a acontecer na Birmânia. O mundo tornou-se uma aldeia”.
[Em 24 de Junho de 2018, entrou finalmente em vigor na Arábia Saudita uma lei que permite às mulheres conduzirem. No dia 5, foram simbolicamente entregues cartas de condução a dez mulheres. As celebrações ficaram manchadas pela detenção de várias activistas que muito lutaram por este direito, entre elas Loujain al-Hathloul, Eman Al Nafjan, Aziza al-Yousef, Aisha Almane e Hatoon al-Fassi, acusadas de “traição”.
Em 2019, foi reconhecido às mulheres sauditas o direito de requerer passaportes, viajar e registar casamentos e divórcios, sem permissão de um guardião masculino – pais, marido ou filho.
São reformas da iniciativa de Mohammed Bin Salman (MBS), o príncipe herdeiro do novo rei que sucedeu a Abdullah (falecido em 2005) que impede as activistas sauditas de reivindicarem vitória pelas liberdades devolvidas.]

Wajeha al-Huwaider
© rasheedsworld.com
Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 2007 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO in 2007