Formosa: Eles dizem que não querem ser chineses

Durante 50 anos um regime nacionalista incluiu Taiwan numa Grande China, “usurpada” pelos “rebeldes” de Mao Zedong. Agora, uma década após o advento da democracia, a maioria dos habitantes da ilha classifica-se como taiwaneses e não chineses. É uma nova identidade da Ásia. (Ler mais | Read more…)

Mais de 85%  entre os 20 e os 30 anos de idade identificam-se como taiwaneses”, garante o director do Departamento de Assuntos Chineses. E “mais de 60%” da população em geral apoia uma mudança de nome do país, de República da China (ROC) para Taiwan
© Tyrone Siu | Reuters

Perguntem a I-Chung Lai como se define e ele dirá, orgulho indisfarçável e sem hesitações, que a sua “identidade nacional” é taiwanesa.

Já Kuang Chung realça a sua origem chinesa e, com sorriso trocista num rosto sério, critica os que tentam “exacerbar tensões étnicas” na ilha que os portugueses chamaram Formosa.

Um é a favor da independência. O outro é um ardente defensor do statu quo: nem membro pleno da comunidade internacional nem província submissa de Pequim.

Estilo descontraído, pólo e calças de sarja, I-Chung representa uma nova geração. A dos que nasceram em Taiwan e se sentem cidadãos de uma nação independente com a sua própria história e cultura, mistura de influências japonesa, chinesa e ocidental.

Já Kuang, austero no seu fato e gravata, é como se fosse símbolo da “velha guarda”. Os que imigraram da mainland ou China Continental e, bem no fundo, apesar de retórica em contrário, ainda não abandonaram os sonhos de reunificação.

No exíguo escritório de um prédio de Taipé onde, em vários andares, funciona a modesta sede do seu Partido Democrático Progressista (DPP, sigla em inglês), I-Chung cita de cor sondagens que mostram a evolução de opinião entre os 23 milhões de habitantes.

“Mais de 85%  entre os 20 e os 30 anos de idade assumem-se como taiwaneses”, garante o director do Departamento de Assuntos Chineses.

E “mais de 60%” da população em geral apoia uma mudança de nome do país, de República da China (ROC) para Taiwan, de modo a “não haver confusão” com a República Popular da China (RPC).

No mais solene quartel-general do Partido Nacionalista Chinês (Kuomintang ou KMT), que governou sem rivais durante 50 anos, Kuang apresentou estatísticas ligeiramente diferentes: uma maioria de taiwaneses (57% ) não quer mudar o estatuto nem o nome desta “terra de fantasia”, como alguém a designou, preferindo adiar uma definição para mais tarde.

Não há interesse em afrontar a China e os Estados Unidos, hostis a uma alteração do statu quo (“nem guerra, nem independência”), explica.

No entanto, até as sondagens do Kuomintang mostram que só 6% da população se sente “chinesa”, contra 45% que se afirma “taiwanesa” e 44% que se considera “taiwanesa-chinesa”. É uma significativa mudança de mentalidades, em uma década de democracia.

30 de Março de 2014: Centenas de milhares de manifestantes gritam slogans em frente do palácio presidencial em Taipé, num protesto em defesa da democracia e contra um controverso acordo comercial assinado com a China Continental
© Toby Chang | Reuters | Financial Times

Já nenhum professor ensina que Taiwan faz parte da China continental. Das salas de aula desapareceram as fotos do defunto líder nacionalista Chiang Kai-shek que, em 1949, transferiu o governo da ROC para Taiwan quando o “rebelde” Mao Zedong criou a comunista RPC do outro lado do Estreito da Formosa.

O memorial de Chiang ainda é lugar de culto e atracção turística em Taipé, tal como o Grand Hotel, um palácio vermelho de 490 quartos, cada um dos seus oito andares uma reprodução arquitectónica das nove dinastias chinesas, que a sua mulher, Soong May-ling, mandou construir em 1952.

No entanto, a cidade também ergueu um monumento em homenagem às cerca de 20 mil pessoas mortas em 28 de Fevereiro de 1947. Um massacre levado a cabo pelas forças do Kuomintang depois de uma sublevação popular gerada pelo espancamento, por soldados, de uma idosa que vendia tabaco no mercado negro.

Como muitos dos familiares das vítimas do chamado “Incidente de 2/28”, um tabu em extinção mas que ainda divide os taiwaneses, I-Chung guarda mágoas profundas do tempo em que o KMT era o partido único.

“É certo que eles já admitiram os seus erros e até pediram desculpas, mas continuam a recusar abrir registos históricos essenciais à reconciliação”, disse, face crispada.

“Precisamos de saber o que aconteceu. As vítimas querem saber o que aconteceu e quem são os responsáveis. Quem é culpado e quem está inocente no Kuomintang? Saber a verdade é fundamental”.

O KMT, insiste I-Chung, também devia devolver os fundos que adquiriu ilegalmente. “Muitas pessoas viram os seus bens e propriedades confiscados, sem qualquer explicação. Os meus avós e os seus amigos foram expulsos das suas casas e nunca foram compensados.”

16 de Janeiro de 2016: Apoiantes do Partido Democrático Progressista festejam o discurso de vitória da presidente, Tsai Ing-wen
© Ulet Ifansasti | Getty Images

De 1947 a 1997, o Kuomitang, de Chiang Kai-shek, construiu um império, estimado entre 2000 milhões e 10.000 milhões de dólares, que englobava desde bancos a companhias petroquímicas. Chegou a ser considerado o partido político mais rico do mundo.

Kuang Chung defende-se dos ataques do DPP. “Já fizemos a nossa autocrítica e reconhecemos os nossos erros; não vamos estar sempre a pedir desculpas, até porque fomos nós que abrimos o caminho à democracia e ao milagre económico”, frisou este académico e dirigente do KMT, numa ampla sala da nova sede. Um edifício muito menos imponente do que o anterior, entretanto vendido a investidores privados, depois de críticas à riqueza ostensiva e “imoral” do partido.

A questão identitária está no centro da campanha para as presidenciais de 2008, descritas por alguns editorialistas regionais como “as mais importantes eleições da história da ilha”.

Talvez porque assinalam o fim de mandato do chefe de Estado Chen Shui-bian – “uma pedra no sapato” de Pequim pelas suas ideias soberanistas.

Para atrair o maior número de votos, o DPP moderou o seu discurso “pró-independentista” e o KMT, ainda que se tenha aproximado da mainland, deixou de ser considerar “pró-reunificacionista”.

Já nenhum professor ensina que Taiwan faz parte da China Continental. Das salas de aula desapareceram as fotos do defunto líder nacionalista Chiang Kai-shek que, em 1949, transferiu o governo da ROC para Taiwan quando o “rebelde” Mao Zedong criou a comunista RPC do outro lado do Estreito da Formosa.
© EPA

Há prioridades comuns aos dois partidos, como a necessidade de o país aderir à Organização Mundial de Saúde (OMS) e a outras instituições internacionais onde Pequim veta a sua entrada, obrigando a uma ginástica semântica.

Para entrar na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2002, a ilha apresentou-se como “Território Aduaneiro Separado de Taiwan, Penghu [Pescadores], Kinmen e Matsu”.

[Desde 2009, Taiwan é “observador” da OMS, com a designação “Chinese Taipei.]

Para participarem em eventos desportivos internacionais, como os Jogos Olímpicos de Pequim [de 2008], as equipas taiwanesas adoptam o nome “Chinese Taipei” (Taipé Chinesa).

E quando um Estado se prepara para estabelecer laços diplomáticos com Taiwan, corre o risco de ser ameaçado pela China comunista com o corte de relações bilaterais e suspensão da ajuda financeira. [Esta hostilidade diminuiu com a chegada ao poder do Presidente Ma.]

Não obstante estas tensões no Estreito de Taiwan –, agravadas desde que Pequim instalou “mais de mil mísseis” apontados a Taipé –, calcula-se que um milhão de investidores taiwaneses vivam em part-time com as suas famílias na China continental onde montaram mais de 30 mil empresas e criaram mais de três milhões de empregos.

Para alguns analistas a melhoria da situação económica na ilha depende muito da aproximação ao poderoso vizinho, ainda que corra o risco de uma perda de competitividade.

Taiwan permanece o maior fabricante mundial de circuitos integrados. Os seus computadores, televisores, telemóveis e respectivos componentes têm elevada reputação nos mercados internacionais. Em 2007, porém, a marca Made in Taiwan já enfrenta a concorrência da Made in China.

Scott Huang, investigador no Parque de Ciência e Indústria de Hsinchu, também conhecido como “Silicon Valey de Taiwan”, com serviços desde a biotecnologia a programas espaciais, não mostra inquietação, por enquanto.

“Eles [na China continental] têm mão-de-obra barata e uma grande capacidade de produção mas, por enquanto, nós temos os cérebros”, comentou, durante uma visita às instalações do parque, construído em terrenos onde antes se plantava chá.

Hoje, aqui coexistem duas universidades e dezenas de companhias (como os gigantes TSMC e UMC) que competem em bolsa, numa área que se confunde com a da própria cidade de Hsinchu, nos arredores da capital.

É a vontade de ver o seu país recuperar a posição que “perdeu para a Coreia do Sul e Singapura” que leva Lin Tsu Cheng a votar no KMT. “Mais importante do que a independência é o desenvolvimento económico”, diz Lin, 37 anos, um taiwanês a completar em Lisboa o doutoramento em Linguística Aplicada.

Foi um governo do Kuomintang que, em 1999, lhe ofereceu uma bolsa de estudos para “aperfeiçoar o português” e ele mostra-se agradecido. De nada vale evocar a corrupção e opressão que caracterizaram o regime do KMT.

“Já ninguém se imagina a regressar ao passado”, afirma. “A cultura democrática ganhou raízes. É certo que ainda há segredos por revelar, mas as mágoas que possam existir estão a ser manipuladas pelos políticos. O povo só quer olhar em frente. Para o futuro”.

Tsai Ing-wen, do partido independentista DPP, foi eleita Presidente em Janeiro de 2016: a primeira mulher a assumir este cargo em Taiwan. Descreveram-na como “uma das mais poderosas da Ásia” – porque é um espinho no coração de Pequim
© Ashley Pon | Forbes

Lin, que nasceu em Taiwan tal como os pais, não tem dúvidas sobre a sua identidade: “Politicamente, sou taiwanês mas, culturalmente, sou chinês. A cultura chinesa é a nossa base, embora tenhamos desenvolvido uma cultura local, taiwanesa.”

Ou como dizia Kuan Chung, em Taipé, “o DPP tem tentado dividir-nos em diferentes categorias [ilhéus e continentais], mas somos todos imigrantes”.

Uma referência aos que começaram a instalar-se em Taiwan nos séculos XV-XVI-XVII, provenientes da China, e ao fluxo pós-1945, com Chang Kai-shek, que se juntaram às tribos aborígenes (oriundas da Polinésia) há mais de 10 mil anos a viver nesta região.

“Tudo seria diferente se a comunidade internacional nos aceitasse como Estado, mas nem sequer fazemos parte da ONU”, lastima-se Lin.

“Em todo o caso, somos um país independente. O Governo tem o direito de governar, sem pedir autorização à China, aos Estados Unidos ou ao Japão. Somos uma ‘entidade especial’”.

Um país estratégico da Ásia-Pacífico, que venceu o subdesenvolvimento e a dependência agrícola para se tornar num dos mais industrializados (16º no ranking mundial) e que, por se sentir sob constante ameaça, se tornou num dos maiores compradores de armas, sobretudo aos EUA, seu principal fornecedor.

Uma “entidade especial” onde há cerca de 100 partidos políticos (embora só quatro estejam representados na assembleia legislativa), mais de 100 estações de televisão, quase 6000 emissoras de rádio e 2500 jornais, aproximadamente 5000 revistas e 1080 agências noticiosas.

A liberdade de expressão é tão vasta que os deputados, da [anterior] coligação “pan-verde” liderada pelo DPP e da aliança “pan-azul” chefiada pelo KMT, se tornaram conhecidos pelas suas sessões de pancadaria quando querem travar a aprovação de leis. Alguns vão parar ao hospital mas ninguém tem ido para a prisão.

Em Taipé é difícil imaginar a sujeição a uma ditadura comunista como a de Pequim. “Não aceitamos ser subalternizados, não sacrificaremos a democracia, a liberdade de expressão, os direitos humanos”, sublinha Chen-Yuan Tung, vice-presidente do Conselho para os Assuntos Continentais.

“Uma confederação só seria viável se a China se tornasse democrática. (…) Para nós, a concepção de ‘um país, dois sistemas’ é inaceitável”.

Em 2016, num gesto sem precedentes, a recém-eleita presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen (à esq.), pediu desculpa aos povos indígenas do país por “séculos de dor e maus tratos”, e prometeu melhorar as suas vidas
© culturalsurvival.org

A liberdade e criatividade não têm limites. As primeiras páginas dos jornais detalham suspeitas de vários crimes que pairam sobre membros do governo e da oposição, animando a discussão nas ruas, lojas e cafés.

Mais de 70% dos lares estão ligados à Internet [em 2009, dados mais recentes, o número de utilizadores ultrapassava os 16,1 milhões, numa população de 23,3 milhões de habitantes] – uma janela, sem restrições, para o mundo exterior. E o modo como centenas de jovens se vestem ou cortam o cabelo é quase uma declaração política.

Os seus valores de referência não parecem ser os da “China comunista”. Talvez mais próximos do Ocidente, [mas sobretudo reflexo da significativa herança japonesa e de um passado de desenvolvimento político e económico que tem mais a ver com outros países asiáticos, como a Coreia do Sul e, naturalmente, o Japão.]

Em gigantescas artérias, com centenas e centenas de estabelecimentos a funcionar 12 horas ou mais por dia, só o plafond do cartão de crédito poderá limitar uma transacção. Nada falta. Os acessórios da moda europeia e americana mais caros.

Os  objectos do design japonês mais distintos. A tecnologia nacional mais moderna. Qualquer sonho pode ser comprado, porque há preços para todas as bolsas, seja de produtos genuínos ou contrafeitos.

Ao contrário do que acontece na China continental, o culto ao consumo nesta sociedade ultra-capitalista, onde abundam os milionários, alguns deles antigos camponeses convertidos em grandes accionistas, não esmorece o debate político nem a espiritualidade.

Em maio de 2019, o Parlamento de Taiwan tornou-se o primeiro na Ásia a legalizar os casamentos gay, depois de, em 2017, o Tribunal Constitucional da ilha ter reconhecido este direito. os deputados debateram três propostas e aprovaram a mais progressista apresentada pelo governo do Partido Progressista Democrático
© CNN

No coração de Taipé, decorado por uma imensidão de néons em caracteres chineses, lá está o templo de Longshan, imperturbável oásis de tranquilidade apesar dos cinco milhões de carros particulares e 12 milhões de lambretas que aceleram à sua volta, formando nuvens de fumo de que os condutores se protegem usando pequenas máscaras de papel ou tecido.

As máscaras são reminiscência do surto de SARS (síndroma da imunodeficiência respiratória) ou pneumonia atípica que, em 2003, matou dezenas de pessoas em Taiwan.

O vírus atravessou a fronteira, proveniente do Sul da China, onde apareceu em 2002 sem que as autoridades locais emitissem qualquer aviso para prevenir o contágio.

Talvez seja esta vulnerabilidade que leva muitos taiwaneses, de todas as idades, géneros e classes sociais, a colorir o templo de Longshan. Aqui pratica-se, simultaneamente, o taoísmo o confucionismo e o budismo.

Os crentes pedem ou agradecem a sorte – na saúde, no amor, na fertilidade, nos estudos, no emprego. Lançam pedras, lêem oráculos, acendem pauzinhos de incenso e peregrinam por vários altares.

Murmuram preces, fazem vénias e deixam lembranças. Cestos de frutas e vegetais. Caixas de bolos e chocolates. Objectos pessoais.

Em Longshan, como noutros lugares da ilha, onde coexistem 600 mil cristãos com as suas próprias igrejas, o que os taiwaneses querem é que a sua voz seja ouvida. Por enquanto, só 24 países reconhecem a sua voz.

  • [O KMT voltou ao poder em 2008, com a eleição do Presidente Ma Ying-jeou, que derrotou o candidato do DPP, Frank Hsieh. e levou a cabo uma política de aproximação a Pequim. 
  • Em 2009, Chen foi condenado por corrupção (desvio de fundos diplomáticos) a uma multa superior a 10 milhões de dólares e a uma pena de prisão perpétua, posteriormente reduzida a 20 anos.
  • Em 2010, Chen perdeu todos os privilégios concedidos a um presidente, desde um salário anual até à protecção por guarda-costas. Em 2013, tentou suicidar-se. Os seus partidários consideram-no vítima de uma campanha política sem bases jurídicas que justifiquem ao castigo.
  • Em 2016, o independentista DPP retirou ao Kuomintang a maioria no Parlamento em Taipé, e a sua candidata a presidente, Tsai Ing-wen, ganhou com uma esmagadora maioria de votos. É a primeira mulher a ocupar o cargo no país, tornando-se numa das mais poderosas da Ásia.]

Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em Dezembro de 2007 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO in December 2007

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