Hand in Hand: Onde a guerra de 1948 tem duas narrativas

Israelitas e palestinianos reúnem-se em Annapolis, nos EUA, para discutir a paz. Os prognósticos talvez não fossem tão pessimistas se todos tivessem feito estágio numa escola de judeus e árabes Hand in Hand, onde se pode coexistir e discordar. (Ler mais | Read more…)

@Hand in Hand

© Hand in Hand

Durante a segunda Intifada, em 2000, depois de um ataque palestiniano na cidade israelita de Netanya, o economista David Mingelgreen foi mobilizado como reservista para ir com a sua unidade reocupar Belém, cidade da Cisjordânia onde trabalhava o pai da melhor amiga da sua filha, Shira.

A amiga, uma menina palestiniana, ficou assustada e perguntou à família se David “era um homem mau”. Responderam-lhe que “em Israel há judeus bons e judeus maus, e que é importante bons judeus, como o pai de Shira, servirem no exército para não fazerem mal aos árabes”.

O próprio David lembra-se que Shira, na altura com sete anos, lhe disse que, “em Belém, há árabes bons e árabes maus” e que, “em circunstância alguma, ele deveria disparar contra os árabes bons”.

Esta história é contada por Miriam, mãe de Shira Mingelgreen, num pequeno livro, Jews and Arab Families in Israel, publicado pela associação Hand in Hand: Center for Jewish-Arab Education in Israel (Yad B’Yad) – galardoada em Julho [de 2007] com o primeiro prémio internacional da Fundação Calouste Gulbenkian, no valor de 100 mil euros.

Objectivo: mostrar como a escola da sua filha se tornou num dos mais bem sucedidos projectos de “coexistência e multiculturalismo”, capaz de mudar mentalidades.

A escola que Shira frequenta e tem o nome do filantropo britânico Max Rayne situa-se em Jerusalém, entre o bairro judeu de Pat, no sector ocidental, e o bairro árabe de Beit Safafa, no oriental, ocupado e anexado após a guerra israelo-árabe de 1967.

Hand in Hand é, também, conhecida como “escola bilingue”, e é a única com estas características na cidade, embora tenha mais três estabelecimentos de “duas línguas e três religiões” (judeus, cristãos e muçulmanos) em Israel.

Na Galileia (a primeira a ser criada, em 1997, tem 230 crianças das regiões de Misgav, Sha’ab e Sakhnin), em Wadi Hara (existe há três anos e conta com 200 alunos). e em Beersheba (60 meninos distribuídos por dois jardins de infância).

Aberta a mais de 400 alunos, a escola Max Rayne ganhou, em Outubro [de 2007], um novo edifício, com uma área total de mais de 10 mil metros quadrados, num projecto avaliado em 11 milhões de dólares e financiado por vários contribuintes, em Israel e no estrangeiro.

Apesar das modernas instalações, “continua a haver uma longa lista de espera, porque tentamos contratar os melhores profissionais e os pais procuram a excelência para os seus filhos”, diz-me, por telefone, Benjamin Oron, avô de Shira, membro do conselho de administração e antigo embaixador em Lisboa.

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O sistema educativo Hand in Hand, reconhecido pelo Ministério da Educação (que paga os salários de metade dos professores), é único. Nasceu em 1997, numa iniciativa do judeu Lee Gordon e do árabe Amin Khalaf.

As escolas têm dois directores, um árabe e um judeu. Em Jerusalém eles são Ala Khatib, um biólogo da aldeia de Tira, a Norte de Telavive, e Dalia Peretz, de Sderot, irmã do ex-líder trabalhista e antigo ministro da Defesa israelita Amir Peretz – ambos têm os filhos a estudar no lugar onde trabalham.

Cada turma nas escolas mistas está dividida equitativamente: 50% de crianças judias e 50% árabes. Em todas as aulas há dois professores, um árabe e um judeu. As aulas começam em hebraico, que “a maioria das crianças árabes fala fluentemente”, reconhece Oron, e depois passa para o árabe, língua em que “os meninos judeus se sentem menos à vontade”.

Tudo começou com um jardim infantil e agora já vai no oitavo ano do ensino básico. A próxima etapa, para a qual ainda não há autorização – “mas está praticamente garantida”, confia o administrador e diplomata – é prosseguir os estudos até ao liceu.

“O que é bom nestas escolas”, exultou o co-director Khatib numa entrevista, “é que nós não temos de concordar”. E isso é tanto mais evidente quando chega a hora de assinalar, por exemplo, a guerra de 1948.

Para os judeus, é a festa da “independência”. Para os árabes, é a Naqba, ou “Catástrofe”, o ano em que Israel ganhou um Estado e os palestinianos perderam o seu.

“Cada um festeja ou chora a data, geralmente separadamente, embora todos aprendam que há duas narrativas diferentes – o que não acontece nas escolas só para judeus ou só para árabes.

Às vezes, há visitas de estudo em conjunto para perceber melhor “o outro”, e há também uma efeméride unanimemente respeitada: a evocação dos mortos da Shoah.

“Lembro-me da minha primeira experiência do Dia da Nakba”, relata, no livrinho do Hand in Hand, o judeu israelita Bar-Giora, pai de Nimrod, um dos alunos da escola de Jerusalém.

“Foi a primeira vez que ouvi falar em tal conceito. Nesse dia fomos visitar Walajeh, uma aldeia que foi abandonada em 1948. Foi um ponto de viragem na minha vida. (…) Não tenho sentimentos de culpa ou de remorso. “

“Fico feliz por o Estado de Israel ter sido criado. A minha mãe é uma sobrevivente do Holocausto, e temos de lutar para preservar a existência de Israel. No entanto, hoje, eu entendo que há uma nação que pagou um preço de elevado sofrimento, e temos de fazer tudo para encontrar um compromisso honroso que arranje lugar para todos.”

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O palestiniano de cidadania israelita Hatem Matar, nascido em 1964 em Aylabun, escolheu uma escola bilingue para as duas filhas, Amal e Malak, porque lhes quer ensinar “a harmonia entre judeus e árabes”, e pretende “mudar as posições racistas entre alguns judeus que não conhecem os árabes”.

Confia ainda em que elas “exijam os seus direitos e andem sempre de cabeça erguida”, sem estarem sujeitas à discriminação que ele sente, em particular nos empregos que tem exercido ou lhe têm sido recusados.

Voltemos a Shira Mingelgreen, agora com 13 anos. Quando lhe perguntam se não gostaria mais de frequentar outro tipo de escola, ela responde:

– “Se eu andasse numa escola só com judeus, será que só ouviria falar das vítimas judias? E isso seria mais fácil para mim? Rapidamente, chego à conclusão de que é melhor andar numa escola onde tomamos conhecimento do sofrimento dos dois lados.”

Benjamin Oron, o avô de Shira, faz questão de sublinhar que as melhores amigas da sua neta são “as coleguinhas árabes” Hanim e Suhara.

“Elas vão a casa umas das outras, para brincar ou fazer os deveres da escola, passam férias juntas. E não são só elas, mas também os seus pais. Há um grande convívio social. Nada disso impede, é claro, que ela tenha a visão da sua história judaica, ao mesmo tempo que compreende a outra parte”.

O ex-embaixador, que se exprime num perfeito português do Brasil, brinca quando caracteriza os “conflitos” infantis: “É mais de género que de nacionalidade – meninos contra meninas e vice-versa; não se trata de judeus contra árabes ou de árabes contra judeus, isso não!”

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E por que motivo é que Miriam, a sua filha mais velha, química numa companhia de alta tecnologia ligada à Universidade Hebraica de Jerusalém, inscreveu Shira numa escola mista?

“Creio que foi uma questão ideológica, de activismo político, porque este é mais do que um projecto bilingue, é quase binacional”, justifica Oron.

“Shira já vinha do YMCA, um jardim infantil com judeus e árabes, num prédio muito lindo em Jerusalém. Foi natural, ela continuar numa escolinha semelhante.”

Miriam, por seu lado, está orgulhosa da opção que fez: “Quando chegamos à escola, num dia em que houve um assassínio selectivo nos territórios [palestinianos ocupados] ou um ataque calamitoso em Israel, e vemos as crianças árabes e judias a brincarem juntas da maneira mais inocente, isso deixa-nos uma sensação muito boa. É uma verdadeira terapia!”

Em jeito de conclusão, o pai de Miriam define assim o projecto Hand in Hand: “Queremos fomentar uma integração em que cada um mantenha a sua identidade. Não é preciso estar de acordo, mas sim respeitar a posição do outro”.

É um bom conselho para os israelitas, palestinianos, sauditas, sírios e outros, que amanhã  [27 de Novembro de 2007] se encontram na Academia Naval de Annapolis, no estado americano de Maryland, para discutir a melhor maneira de pôr fim a seis décadas de ódio e guerras.

Se fracassarem, em vez de recorrerem à violência, que tal passarem pela escolas Hand in Hand?

Dalia Peretz (L) the Israeli Jewish principal and Alla Khatib, the Israeli Arab principal of the Max Rayne School - A Hand in Hand School for Bilingual Education in Jerusalem during an interview with Sascha Zastiral of Der Spiegel at their school’s office, Sep. 04, 2006. @ photo: Amit Shabi

A israelita Dalia Peretz  e o palestiniano Ala Khatib, antigos directores da Escola Hand in Hand (2006) 
© Amit Shabi | Der Spiegel

 
Este artigo, com novo título, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 26 de Novembro de 2007 | This article, under a new title, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO on November 26, 2007

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