Mais de 50 anos após a edição original, Portugal recebe Entre os Dois Palácios, primeiro volume da Trilogia do Cairo, que deu aos árabes o seu único Nobel da Literatura. (Ler mais | Read More…)

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Entre os Dois Palácios, o primeiro volume da Trilogia do Cairo, apresentada como obra-prima e a preferida de Naguib Mahfouz, chegou finalmente a Portugal [em Outubro de 2007, Editora Civilização] – mais de cinco décadas depois de ter começado a ser escrita pelo egípcio que (ainda) permanece o único árabe Prémio Nobel da Literatura.
Mahfouz, que morreu em 2006, tinha 45 anos em 1956, quando deu vida a Sayyed (senhor ou patrão) Ahmed Abdel Gawwad, à mulher submissa, Amina, e aos cinco filhos: o idealista Fahmi, o libertino Yassin (fruto de casamento que acabou em divórcio), o miúdo Kamal, a feia mas prendada Khadiga, a bela e sonhadora Aisha.
Bain el-Qasrain (literalmente, Entre os Dois Palácios, segundo informa, em preciosas notas de rodapé, o tradutor Badr Hassanein) é a história de uma família tradicional muçulmana, prisioneira de tradições sociais e religiosas, na grande metrópole do Cairo, nos tempos conturbados da ocupação britânica, após a I Guerra Mundial.
(“Peço-lhe também que os ingleses e os seus lacaios sofram uma derrota tão vergonhosa que dela não mais se ergam! Que Deus os varra a todos! (…) Que Deus os rechace! Que Deus os destrua a todos”. p. 47)
Em mais de 500 páginas (a Trilogia original, incluindo o segundo volume, Qasr al-Shoq, e o terceiro, Sukkariyah, tem cerca de 1600), o leitor pode acompanhar, entre o deleite e a revolta, os dias e as noites do próspero comerciante Gawwad e daqueles sobre quem ele exerce um poder que inspira medo e respeito.
Em particular à sua mulher e às duas filhas, “encerradas” atrás de uma machrabiyya, varanda de madeira com gradeamento por cujos “orifícios circulares” podiam ver sem ser vistas.
Personagens memoráveis: Amina, que foi viver com Gawwad aos 14 anos, “jamais lamentara a escolha que para si fizera de uma existência calma e passiva”, reclusa ao lado de um marido aventureiro e frequentemente ébrio.
A “loira e fulgurante” Aisha, que às vezes arriscava abrir a janela lateral do salão para se deixar seduzir por um jovem oficial.
Khadiga, “tom de pele escuro e traços desconformes”, que nem sequer aspirava a arranjar marido. Fahmi, “cópia perfeita do pai, tirando a magreza”, que é apanhado em manifestações contra os ocupantes – o seu destino, no final, irá marcar a narrativa do segundo volume da Trilogia. Kamal, que estabelece perigosas relações de amizade com os soldados estrangeiros.
Yassin, que apenas procura o divertimento, ficará surpreendido quando souber que o pai é visita assídua de um lugar que nunca recomendaria aos filhos (pp. 253-257).
Quanto ao austero Sayyed, não vê qualquer contradição entre os seus prazeres nocturnos – “onde jorravam as bebidas, os risos, o canto e a paixão” – e o zelo corânico das suas preces e repressão familiar.
Leitor ávido de Dostoiévski, Dickens, Balzac e Zola, o homem de quem se diz “inventou o romance árabe” detalha, em Entre os Dois Palácios, os mais ínfimos pormenores mundanos e grandiosos acontecimentos históricos.
Algumas coisas mudam; outras continuarão imutáveis neste belíssimo livro, aclamado em todo o mundo quando começou a ser traduzido em várias línguas depois de Naguib Mahfouz Abd El-Aziz Ibrahim Ahmed El-Basha ter ganho o Nobel, em 1988.
O confronto de gerações

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Em O Palácio do Desejo, segundo volume da Trilogia do Cairo, a tradição já não é o que era na casa de Sayyed Ahmad Abdel Gawwad. Vale a pena bisbilhotar os seus segredos. (Ler mais | Read more…)
Que se faça a transição Entre os Dois Palácios antes de visitar O Palácio do Desejo, o segundo volume da Trilogia do Cairo, [Editora Civilização, Abril 2008] aclamada como a obra-prima do escritor egípcio Naguib Mahfouz, o único Prémio Nobel árabe da Literatura (1988).
Será difícil entender as vidas do Sayyed (senhor) Ahmad Abdel Gawwad, da sua família e amigos, no Cairo dos anos ’20, se a primeira paragem não foi na machrabiyya (varanda gradeada) de Amina, a mulher reclusa e submissa.
Em Palácio do Desejo voltamos a casa do temido patriarca, mas muita coisa mudou desde o último capítulo de Entre os Dois Palácios, e essa transformação – que reflecte igualmente uma metamorfose no Egipto – não pode passar despercebida ao leitor.
O ritmo é mais lento, mas algumas personagens ganham intensidade, ainda que outras quase se apaguem (como as filhas Khadiga e Aisha – nem damos conta que já estão casadas e com filhos), e que o boémio Sayyed tenha perdido algum do seu vigor físico quase tocando a mortalidade.
Mahfouz é um exímio narrador, bisbilhotando para nós os segredos da alma e os que se escondem por detrás das portas, nos salões e nas alcovas. Num país onde as tradições – sociais, políticas e religiosas – são postas à prova, o lar de Sayyed é também ele um lugar onde se confrontam nova e velha gerações.
Há uma passagem comovente, quando Kamal, o filho mais novo, informa o pai que tenciona seguir a carreira de professor.
Ahmad Abdel Gawwad, habituado a controlar tudo e todos, reage furiosamente quando sente que a sua vontade não será cumprida: “É uma profissão miserável que não goza de qualquer respeito. (…) Conheci notáveis e funcionários respeitáveis que recusaram, de forma categórica, casar as filhas com um professor, independentemente de quão alta fosse a sua posição.”
Não será pela escolha profissional que Kamal irá ser rejeitado por Aida, a “rapariga dos sonhos” de todos os jovens, “majestosa na sua aparência deslumbrante”.
Desgostoso, o “filósofo” Kamal deixar-se-á influenciar pelo libertino meio-irmão Yassin, tão diferente de Fahmi – uma patriótica e inesquecível figura-chave de Entre os Dois Palácios.
Entre copos, Yassin, o rebelde que desafiou as convenções com um casamento inconveniente (uniu-se a Zannouba, a “tocadora de alaúde” e… amante do seu pai), revelará a um incrédulo Kamal a essência de Sayyed Gawwad, “o corifeu da delicadeza e da volúpia. (…) O líder dos folgazões, dos lascivos e dos amantes”.
Somos tentados a detestar o velho Ahmad, mas a sua complexidade não permite que o julguemos como mau (quando humilha a família) ou bom (quando confraterniza com os amigos e as prostitutas que o idolatram).
Quando um artigo de Kamal sobre Darwin, publicado no semanário al-Balagh (órgão do Partido Wafd – como bem informa o tradutor, Badr Hassanien, em úteis notas de rodapé), vai parar às mãos do pai, Mahfouz é brilhante no confronto de ideias.
“Se nos teus estudos te deparares com coisas incompatíveis com a religião, mas que tens de estudar para passar nos exames, não acredites nelas! (…) Diante da ciência deves manter a mesma atitude que assumimos em relação à ocupação inglesa: contestar a sua legitimidade mesmo quando nos é imposta à força!”, recomenda Ahmad Abdel Gawwad.
Antes de ser silenciada pelo marido, Amina, a mãe devota, acrescenta: “E dedica a tua vida a desmascarar mentiras desta ciência e a espalhar a luz de Alá”. O respeito filial mantém-se mas já não a obediência.

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Tal como Fahmi, que arriscou a vida, e Yassin, que “se abeirava cada vez mais do abismo”, também Kamal segue o seu próprio caminho.
É Mahfouz, o porta-voz do seu interior, que nos diz: “Se doravante quisesse escrever, bastar-lhe-ia voltar para a revista O Semanário Político [dos liberais constitucionalistas], que nunca cairia nas mãos do pai, conhecido wafdista. Libertado da religião, estaria mais próximo de Allah do que se estivesse subjugado por esta.”
É extraordinário o modo como o homem que “inventou o romance árabe” nos faz imergir num tempo que ele próprio viveu e que ainda não desapareceu totalmente. Notável, por exemplo, a evocação de Umm Kulthum, a grande diva que os egípcios imortalizaram acorrendo aos milhões ao seu funeral quando morreu, em 1975. Aqui, ela dá os seus primeiros passos.
“A sua voz… Allah é minha testemunha!… é linda. (…) Alguns dizem que substituirá Munira al-Mahdiyya, e há quem afirme que a sua voz é ainda mais espectacular do que a da própria Munira! (…) Na sua voz há alguma coisa que faz lembrar os recitadores do Alcorão! (…)”
A apreciação de Umm Kulthum é feita por Muhammad Iffat mas não é partilhada por Sayyed Ahmad, o que gera uma discussão elucidativa da nova era que o Egipto atravessa – muito graças ao “líder de todo um povo” que deve merecer a nossa atenção: Saad Zaghloul.
“És um reaccionário”, critica Iffat. “Estás sempre preso ao passado! Será que ainda continuas a governar a tua família a ferro e fogo em pleno século da democracia e do Parlamento?”. O Sayyed responde: “A democracia é boa para o povo, não para a família!”
Pensará ele do mesmo modo no terceiro e último volume da Trilogia do Cairo? Uma coisa é certa: a morte paira no ar.
Morte no Cairo
Em O Açucareiro, terceiro e último volume da obra-prima de Naguib Mahfouz, o Egipto é irmão muçulmano, é comunista, é homossexual. É imperdível. (Ler mais | Read more…)
Fomos apresentados a Sayyed Ahmad Abdel Gawwad, Amina, Fahmi, Kamal, Yasin, Aisha e Kadhija Entre os Dois Palácios. Arrastámos as suas dores e amores, segredos e conflitos para O Palácio do Desejo. Agora, em O Açucareiro [Editora Civilização, Agosto 2008] despedimo-nos de uma parte da família.
Uns morrem e outros anseiam morrer. Uns são presos e outros teimam a não se deixar aprisionar. No terceiro e último volume da Trilogia do Cairo, considerada a obra-prima de Naguib Mahfouz, o Egipto entrou na modernidade sem deixar a tradição.
A vida já não gira em torno do austero Sayyed Gawwad e da submissa Amina, os pais, mas voltamos a centrar as nossas atenções nos seus filhos Aisha, Kadhija, Yasin e Kamal (Fahmi já nos deixara no primeiro volume), e sobretudo nos seus netos Ahmad, Abdel Munim e Ridwan.
Através deles, o único Nobel Árabe da Literatura mostra bem como as mudanças, políticas, sociais e religiosas, num país que se libertou do peso colonial inglês entraram quase sem aviso numa casa “pejada de infortúnio e dos indícios percursores do fim.”
Profundo conhecedor da cidade que fez dele “o inventor do romance árabe”, Mahfouz esculpe e pinta na perfeição o filósofo Kamal, que se mantém agarrado ao amor platónico pela inacessível Aida, apenas oferecendo temporariamente o corpo à cortesã Atteya para logo o reaver e mergulhar nos seus livros.
Se Kamal é um personagem marcante (há nele muito de Mahfouz – rejeita todos os totalitarismos e ama a arte), que dizer de Ahmad e Abdel Munim, filhos de Khadija e Ibrahim Shawkat?
O primeiro, um fervoroso comunista que, num ultraje às regras, se casa sem a bênção da mãe com uma rapariga de fraca beleza mas fortes convicções, que trabalha fora de casa e ganha um salário duplamente superior ao do marido.
O segundo, um barbudo militante da Irmandade Muçulmana, que se une à prima Karima (filha de Yasin) depois de ficar viúvo da prima Naima (filha de Aisha) – tudo conforme a família e a religião determinavam.
Os dois, “o crente e o renegado”, como o próprio pai os designa, acabam na prisão. Aqui, Mahfouz oferece ao leitor um dos mais bem-humorados diálogos:
Abdel Munim suspirou de modo a só se fazer ouvir por Ahmad.
– Atiraram-me para um sítio destes por uma única razão: porque adoro Alá!…
E Ahmad, sorrindo, murmurou ao seu ouvido:
– E que culpa tenho eu então, que não O adoro?
A este duo há que juntar Ridwan, filho do boémio e mulherengo Yasin. Só um visionário como Mahfouz teria a ousadia de escrever sobre uma relação homossexual numa sociedade conservadora como o Egipto (outro tabu que ele não hesita em tocar é o da marginalização dos cristãos coptas, mais próximos dos comunistas de Ahmad, para sobreviverem, do que da fraternidade islâmica de Abdel Munim).
O belo Yasin, que confessa olhar para as mulheres como “um ser asqueroso”, chegará aos altos escalões do Estado graças ao afecto que por ele sente o excêntrico Abder Rahim Paxá Isa.
Será um amor correspondido ou interesseiro? Abder Rahim Paxá avisa-o: “O homem pode viver sem uma mulher… mas este é que é o problema. Ainda que não te importes com o que as pessoas pensem… como farás para vencer o que pensas de ti?”
Mahfouz compreendeu bem a sociedade do seu tempo. Exemplo disso são as histórias e a História que nos dá a conhecer nas mais de 1200 páginas da sua Trilogia.
De louvar, nos três volumes”, a tradução competente (a partir da língua árabe) e as valiosas notas de rodapé de Badr Hassanien, da Editora Civilização.

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Estes artigos foram publicados em 2007 e 2008 no jornal PÚBLICO | These articles were published in the Portuguese newspaper PÚBLICO in 2007 and 2008