Stephen Kinzer, autor de Os Homens do Xá, lamenta que a CIA tenha impedido, há 50 anos, a emergência de uma “democracia islâmica” no Médio Oriente que teria mudado a História. No entanto, por muito trágica que tenha sido a Operação Ajax, crê que Teerão e Washington “não estão predestinados a ser inimigos”. (Ler mais | Read more…)

Mohammad Mossadegh, derrubado por um golpe da CIA, designado por Operação Ajax, em 1953, depois de pressões de Churchill. O Xá Mohammad Reza Pahlavi nunca permitiu que ele tivesse um funeral digno
Jornalista do diário The New York Times, Stephen Kinzer tem no seu currículo reportagens em mais de 50 países, no Médio Oriente, América Latina e antiga União Soviética.
É autor de Crescent and Star: Turkey Between Two Worlds, Bitter Fruit: The Story of the American Coup in Guatemala [e mais recentemente, Reset Middle East: Old Friends and New Alliances – Saudi Arabia, Israel, Turkey, Iran e The Brothers: John Foster Dulles, Allen Dulles, and Their Secret World War.]
O livro que a Tinta da China editou em Portugal, Os Homens do Xá – O golpe no Irão e as raízes do terrorismo no Médio Oriente, foi publicado originalmente em 2003, quando se completou meio século da conspiração anglo-americana que derrubou, em 1953, o regime democrático de Mohammad Mossadegh em Teerão.
Sobre o processo de criação desta obra – aclamada pelo diário The Washington Post, pelo semanário The Economist e pela própria CIA – e as suas conclusões, o autor deu-me uma entrevista por e-mail:
Por que decidiu escrever a história do golpe de 1953 que derrubou Mohammad Mossadegh?
Stephen Kinzer: Em 1997, quando eu era correspondente do New York Times em Istambul, fui enviado ao Irão para cobrir a eleição presidencial que Mohammad Khatami venceu. O tempo que lá permaneci levou-me a questionar por que motivo o Irão se tornara no tipo de país que é hoje.
Pressenti que a decisão americana de derrubar o Governo iraniano em 1953 teve um papel maior do que as pessoas pensavam, mas quando fui à procura de um livro sobre essa operação descobri que não havia nenhum. Decidi tentar perceber o que acontecera e explicar isso aos leitores ansiosos por melhor compreender por que é que o mundo hoje está como está.
Quanto tempo demorou a escrever e como foi esse processo?
Fechei-me num quarto durante um ano, com pouca companhia a não ser pilhas de livros e documentos.
Quando descobri que um retrato do primeiro-ministro Mossadegh aparecera na capa da revista TIME em 1951, fui à procura de um exemplar dessa edição e emoldurei a capa.
Então, enquanto escrevia o livro, Mossadegh olhava, figurativamente, sobre o meu ombro. Sentia-o a murmurar: “Conta a minha história. Faz-me regressar à vida para uma nova geração.”
É verdade que o seu livro foi traduzido para farsi sem a sua permissão mas que algumas partes foram censuradas devido às referências negativas ao Ayatollah Kashani, que de aliado de Mossadegh colaborou depois com a CIA para o derrubar?
Há três traduções diferentes em farsi do meu livro, todas elas sem minha autorização. O texto foi ajustado, em parte para eliminar sugestões de que o Ayatollah Kashani, cujo filho é hoje uma figura política activa no Irão, colaborou com os conspiradores americanos. Na versão traduzida, ele é apresentado como uma vítima do golpe e não como um participante.

Teerão, 30 de Setembro de 1951: uma foto gigante de Mohammad Mossadegh no tejadilho de um carro, durante uma manifestação junto ao Parlamento, contra a decisão de Londres de se queixar à ONU pela nacionalização da Anglo-Iranian Oil Company. Um ano depois o primeiro-ministro seria afastado num golpe planeado pela CIA.
© Associated Press
É muito difícil encontrar, no seu livro, uma crítica a Mossadegh, excepto que ele era muito obstinado e que poderia ter sido mais flexível para evitar o confronto. De resto, apresenta-o como um político que se sacrificou pelo seu país, que fez tudo para ajudar os “amigos” americanos mesmo quando eles já o traíam. Podemos ler esta obra como um tributo? Há algum líder depois dele a quem possamos comparar?
Mossadegh foi uma grande personalidade do seu tempo. Até ele ascender ao poder nunca ninguém de um país pobre ousara desafiar as potências governantes do mundo de uma maneira tão directa. E, no entanto, tem sido muito esquecido pela História.
Ele foi um nacionalista visionário com uma consciência profundamente democrática e um enorme respeito pelo estado de direito. De facto, talvez tenha sido isso que contribuiu para a sua queda.
Ele recusou recorrer a medidas repressivas que poderiam ter salvado o seu regime. No final, Mossadegh foi incapaz de se comprometer com forças que ele achava estavam a privar o Irão dos seus direitos de nascença.
Ele não era um pragmático mas um utópico. Suspeito que morreu sem ter sabido que o golpe contra ele foi orquestrado por um agente da CIA a operar da cave da Embaixada dos Estados Unidos em Teerão.
Se não fosse a nacionalização da Anglo-Iranian Oil Company e a teimosia de Churchill em vergar os “nativos”, este golpe teria acontecido? Ou outras circunstâncias como as ambições soviéticas na região acabariam por fazer avançar os acontecimentos nessa mesma direcção?
Não há dúvida que o golpe foi activado pela determinação de Mossadegh – apoiada pela votação unânime das duas câmaras do Parlamento iraniano – de nacionalizar a Anglo-Iranian Oil Company.
Se não tivesse feito isso, teria permanecido no poder. Mas ele foi elevado à liderança nacional precisamente porque os iranianos confiavam nele para levar a cabo a nacionalização.
Ele insistia em que o Irão deveria controlar os seus recursos naturais. Tal como aconteceu a outros líderes que fizeram o mesmo, em países como a Guatemala e o Chile, foi derrubado por um golpe americano porque não abdicou dessa exigência.
O argumento de que Mossadegh simpatizava com o comunismo é contrariado directamente pelos factos. Ele era um velho aristocrata que desprezava as ideias marxistas. Ninguém o acusou de tendências esquerdistas antes de ele agir contra a companhia petrolífera [inglesa].

Mohammad Reza Pahlavi e Winston Churchill, em Teerão, 30 de Novembro de 1943. O primeiro-ministro britânico nunca perdoou a Mossadegh a ousadia de ter nacionalizar a Anglo-Iranian Oil Company
O senhor enfatiza que a Operação Ajax deu aos povos do Médio Oriente a percepção de que um ditador (como Mohammad Reza Pahlavi), que serve os interesses do Ocidente é melhor do que um democrata que desafia as grandes potências. Até que ponto essa percepção influencia o modo como o Médio Oriente ainda hoje olha para os EUA?
Ao derrubarem Mossadegh em 1953, os Estados Unidos depuseram um líder que abraçava os valores fundamentais americanos e substituíram-no por outro que desprezava tudo aquilo que os EUA defendem. Como resultado deste golpe, o Xá pôde regressar ao seu Trono do Pavão. E governou com ainda maior repressão durante 25 anos.
A repressão produziu, no final dos anos 1970, a Revolução Islâmica. A revolução levou ao poder uma clique de líderes religiosos fanaticamente anti-ocidentais que há décadas trabalham intensamente, e por vezes violentamente, para prejudicar os interesses americanos por todo o mundo.
Este regime, provavelmente, nunca teria chegado a existir e a actual crise relativa ao programa nuclear iraniano nunca teria emergido, se os Estados Unidos tivessem permitido que a democracia ali tivesse florescido.
Os iranianos que vivem sob esta repressiva teocracia têm dolorosa consciência de que os Estados Unidos ajudaram a criá-la. Muitos acham bastante bizarro que os EUA se proponham agora “libertá-los” e levar-lhes a democracia.
Se não tivesse havido uma intervenção dos Estados Unidos em 1953, o Irão teria provavelmente seguido o caminho até à democracia plena.
Poderíamos ter tido uma democracia vibrante no Médio Oriente islâmico nos últimos 50 anos. Isso teria oferecido à região e ao resto do mundo uma História diferente.

“Ao derrubarem Mossadegh em 1953, os Estados Unidos depuseram um líder que abraçava os valores fundamentais americanos e substituíram-no por outro que desprezava tudo aquilo que os EUA defendem”, diz Stepgen Kinzer
A revolução de Khomeini não teria sido possível sem a Operação Ajax?
A Revolução Islâmica foi, acima de tudo, uma reacção ao poder do Xá. Durante o reinado do Xá era impossível aos iranianos desenvolverem uma sociedade civil. Sindicatos independentes, grupos de estudantes, jornais, universidades, editoras e partidos políticos não puderam emergir porque o Governo os proibia.
O único lugar onde a oposição tinha voz era nas mesquitas. E em resultado disso, a revolução, quando eclodiu, não foi liderada por democratas, incapazes de se organizarem, mas por figuras religiosas.
Assim, a repressão do Xá, posta em prática com o consentimento e, muitas vezes, com a ajuda de Washington, garantiu que o regime subsequente fosse religioso e não democrático.
De que modo é que a intervenção dos EUA em 1953 cimentou “as raízes do terrorismo no Médio Oriente, como sugere o título do seu livro?
O golpe de 1953 enviou uma mensagem clara a uma geração de líderes no Médio Oriente. A mensagem era: se querem estabelecer um regime que seja apoiado pelos Estados Unidos não o transformem numa democracia.
Mossadegh tentou isso no Irão e os americanos derrubaram-no. Eles preferem um regime autoritário que lhes dê acesso ao petróleo, e não criticarão a repressão doméstica desde que o petróleo corra.
Esta mensagem moldou a consciência dos povos e dos grupos que têm dominado o Médio Oriente no ultimo meio século. A Revolução Islâmica de 1979 enviou uma segunda mensagem: a de que os fundamentalistas não estão condenados a ficar nos púlpitos das mesquitas a propagar a sua mensagem opressiva e xenófoba.
Eles podem tornar-se poderosos e até vir a segurar as rédeas do poder. Esta mensagem é arrepiante, e empurrou os fundamentalistas para novos extremos de radicalismo e violência.

Khomeini, o grande inimigo da dinastia Pahlavi que, em 1979, derrubou a monarquia. A Operação Ajax, crê Stephen Kinzer, acelerou a ascensão de um regime de mullahs
O que pensa das actuais ameaças de intervenção militar, da parte dos Estados Unidos ou de Israel, para destruir o programa nuclear do Irão? Quais serão as consequências?
A intervenção de 1953 no Irão, tal como muitas outras intervenções americanas pelo mundo fora, produziram resultados directamente opostos aos que os EUA esperavam obter.
Inicialmente [a Operação Ajax] podia parecer um sucesso mas, na perspectiva da História, podemos ver que não só deu ao Irão meio século de repressão e tragédia mas também enfraqueceu muito a segurança nacional dos EUA. Outra intervenção fará o mesmo.
Não terá bons resultados para ninguém. Atacar o Irão transformaria os líderes deste país, que agora são internamente muito impopulares, em heróis da resistência islâmica; dar-lhes-ia um forte incentivo para lançar uma violenta campanha contra interesses americanos no mundo, desse modo atraindo inúmeros novos recrutas para a causa do terror.
Prejudicaria o movimento democrático no Irão e destruiria a perspectiva de mudança política por, no mínimo, mais uma geração.
Faria com que o povo do Irão, que está entre os mais pró-americanos no Médio Oriente, se tornasse inimigo dos Estados Unidos; exigiria que os EUA permanecessem indefinidamente envolvidos no Golfo Pérsico, forçando-os a tomar partido em todos os conflitos regionais e assim ganhando uma legião de novos inimigos.
Enfureceria o governo de maioria xiita do vizinho Iraque, de quem os EUA dependem para acalmar as chamas da violência; e, muito possivelmente, abalaria o fluxo de petróleo do Médio Oriente, de tal forma que poderia deixar as economias ocidentais num caos.
Pensar que um ataque ao Irão pode ajudar a estabilizar o Médio Oriente é uma fantasia tão perigosa quanto louca. Quem quer que estude a intervenção de 1953 reconhecerá isto.
A Administração Clinton, através da secretária de Estado Madeleine Albright, pediu desculpa pelo golpe que derrubou Mossadegh [e a CIA reconheceu depois o seu envolvimento]. Há alguma possibilidade de normalização dos laços entre Teerão e Washington?
O primeiro elemento de um novo relacionamento entre o Irão e os Estados Unidos deve ser o compromisso, por parte dos EUA, de dialogar directa e incondicionalmente, com o Governo iraniano.
A intimidação, a denúncia, a ameaça e exigências estridentes não podem ser a base de uma activa política externa.
Está longe de ser uma evidência que as negociações serão bem sucedidas, mas mostrariam que o Irão e os Estados Unidos partilham objectivos estratégicos importantes.
Ambos detestam os movimentos radicais sunitas, como al-Qaeda e Taliban. Ambos querem, desesperadamente, estabilizar o Iraque e o Afeganistão. Cada um com diferentes motivos, ambos querem assegurar um fornecimento regular de petróleo iraniano aos mercados ocidentais.
A indústria petrolífera iraniana encontra-se num estado perigoso e precisa de dezenas de milhões de dólares em investimentos; os Estados Unidos têm grandes recursos de capital e um apetite voraz por petróleo. Estes dois países não estão predestinados a ser inimigos para sempre. De facto, são potenciais aliados.
Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 2007| This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO on 2007