Este repórter foi ao dentista em Gaza e voltou 114 dias depois

No dia 17 de Maio de 2007, o correspondente da BBC Alan Johnston temia não completar 45 anos de vida. Palestinianos armados levaram-no do minúsculo território onde trabalhava e residia. A sua execução foi anunciada e desmentida. A campanha pela sua liberdade não teve precedentes (Ler mais | Read more…)

Refém- Photo 1

Após o rapto, todos perguntavam quem e porquê tem em seu poder Alan Johnston, um  experiente repórter que cobriu conflitos no Uzbequistão e no Afeganistão, e arriscou ficar na caótica Faixa Gaza quando todos os jornalistas estrangeiros partiram devido aos raptos cada vez mais frequentes?

A palestiniana Laila El-Haddad, jornalista freelance e blogger lembra-se dos tempos em que ela e Alan Johnston costumavam brincar com a possibilidade de o seu amigo ser “finalmente” raptado.

Já tinha havido uma vã tentativa de o sequestrarem, o que forçou a BBC a retirar o seu logótipo do escritório de múltiplas fechaduras onde, há três anos, trabalhava aquele que se tornou no único correspondente estrangeiro na Faixa de Gaza.

Na altura, Laila e Alan riram-se, perguntando-se sobre que tipo de bolinhos os captores ofereceriam e como é que ele iria beber o chá, tendo em conta dramáticas mas fugazes experiências de antigos reféns.

A brincadeira veio à memória dela uma semana depois de o amigo ter sido levado por homens armados, a 12 de Março, e ela ralatou-a no seu blogue Raising Yousuf. Foi uma brincadeira que deixou de ter graça. Há mais de um mês que ninguém sabe onde está o escocês nascido em Lindi, na Tanzânia, e que, no próximo dia 17 [de Maio de 2007], completará 45 anos – se estiver vivo.

Inicialmente, a situação de Johnston era descrita como a de “desaparecido” – ele havia combinado uma hora para telefonar e os colegas, na sede  em Londres estranharam a falta.

Uma semana depois, quando já se falava que havia negociações em curso, a BBC admitiu “ser quase certo” que o seu correspondente foi “raptado por um grupo desconhecido de activistas palestinianos”.

A Palestinian gunman kisses his rifle as he celebrates what he says is a victory over Israel after an eight-day conflict in Gaza City

Entre os primeiros suspeitos do rapto de Johnston estavam os Dogmosh, temível clã em Gaza, embora eles tenham negado  envolvimento

Johnston deixara o escritório e dirigia-se para o apartamento onde vivia, ambos na Cidade de Gaza, após uma consulta no dentista em Jerusalém.

A polícia palestiniana, com base em testemunhas, informou que o jornalista foi forçado a acompanhar quatro homens armados, não identificados. O seu carro foi encontrado abandonado numa rua.

Se, em Gaza, terra sem lei nem ordem, não há precedente de um estrangeiro estar há tempo detido (o mais longo cativeiro – duas semanas – foi o de dois repórteres da televisão norte-americana Fox, exceptuando o caso do soldado israelita Gilad Shalit, sequestrado no Verão de 2006), as manifestações de apoio a Johnston, por todo o mundo, também desafiam a memória.

Canais concorrentes de televisão, da Sky News à Al-Jazeera, juntaram-se numa emissão especial. Uma petição on-line, com nomes sonantes dos media como David Frost e Christiane Amanpour, ultrapassou [em pouco tempo] as 50 mil assinaturas. A blogosfera encheu-se de mensagens de solidariedade.

Colegas de profissão juntam-se em protestos e vigílias, de Ramallah a Trafalgar Square. Em igrejas, sinagogas e mesquitas, ou no Parlamento Europeu, fazem-se apelos solenes à libertação do jornalista. Crianças palestinianas juntam-se nos becos de Gaza erguendo cartazes onde se lê Free Alan.

Até Marwan Barghouti, o popular líder da Intifada e da milícia Brigadas dos Mártires de al-Aqsa, juntou a sua voz à de outros “10.000 prisioneiros da ocupação” nas cadeias israelitas, exigindo que “este amigo dos palestinianos” seja libertado, são e ileso.

O mais inesperado foi um encontro do cônsul britânico em Jerusalém, Richard Makepeace (curioso apelido), com o primeiro-ministro Ismail Haniyeh, violando o boicote europeu imposto ao Hamas, no esforço quase desesperado de empurrar a Autoridade Palestiniana a agir.

O veterano John Simpson, relator de várias guerras, confessou que nunca viu “tanto apoio a um jornalista detido” como no caso de Johnston, sinal de que “vamos sentir muito a sua perda”.

Depois de libertado, Alan Johnston revelou que os raptores, sentindo o cerco apertar-se por parte do Hamas, o obrigaram a gravar um vídeo, envergando um colete de bombista suicida, ao estilo dos jihadistas que estabelecem um preço de resgate e, com ou sem ele, acabam por executar o seus reféns @DR (Direitos Reservados | All Rights Reserved)

Alan Johnston revelou que os raptores, sentindo o cerco apertar-se por parte do Hamas, o obrigaram a gravar um vídeo (na foto), envergando um colete de bombista suicida

A pergunta que todos fazem é: quem e porquê tem em seu poder o repórter experiente (desde 1991) que cobriu conflitos no Uzbequistão e no Afeganistão, e arriscou ficar na caótica Faixa Gaza quando todos os jornalistas estrangeiros (não só ocidentais, mas também árabes) partiram devido aos raptos cada vez mais frequentes?

Quatro semanas depois do sequestro, o jornal de capitais sauditas Al-Hayat noticiava que “as autoridades palestinianas estavam a investigar a possibilidade de Johnston ter encenado o seu próprio desaparecimento porque a BBC se preparava para o despedir”, quando acabasse a actual missão, em Março.

A BBC primeiro ignorou esta alegação, mas depois viu-se obrigada a fazer um veemente desmentido, em sua defesa e do correspondente.

O governo palestiniano, [naquela altura] composto pelos movimentos rivais Fatah e o Hamas, condenou o rapto, prometeu “julgar os criminosos” e garantiu que Johnston “está bem”, sem mais pormenores públicos.

A 15 de Abril, um grupo desconhecido, autoproclamado discípulo da Al-Qaeda, assumiu responsabilidade pela “execução” do jornalista.

As autoridades exprimiram dúvidas, considerando a reivindicação “apenas uma forma de pressão”. A 17, outro diário árabe pan-árabe, Asharq Al-Awsat, dava conta de um pedido de resgate de cinco milhões, por parte dos sequestradores. Dois dias depois, o presidente palestiniano, Mahmoud Abbas, asseverou ter “provas firmes” (não especificadas) de que Johnston “está vivo”.

Laila El-Haddad enfureceu-se com a atitude do executivo e das forças de segurança da Palestina. Escreveu ela: “Eles devem saber a localização e a identidade dos captores mas, ao invés de os perseguirem, enrolam-se em questões de protocolo, feudos de clãs e ameaças de vingança e, no final, optam por negociar e ceder às exigências em troca de os reféns serem libertados bem.”

“Estas exigências surgem, geralmente, na forma de aumentos de salários, promoções laborais ou só mesmo empregos. (…) Estão a recompensar os sequestradores em vez de os punir, fornecendo incentivo a todos os que têm queixas, reais ou imaginárias, para no futuro continuarem os raptos”.

A blogger e jornalista, colaboradora de publicações como The New Statesman e The Washington Post, relembra que entre os primeiros suspeitos do rapto de Johnston estavam os Dogmosh, um temível clã de Gaza, embora eles tenham negado o seu envolvimento.

A Faixa de Gaza, de onde o repórter da BBC foi raptado, "tornarse-á inabitável até 2020", se nada for feito para aliviar as restrições impostas por Israel ao território governado pelo Hamas, segundo a ONU. Um relatório indica que o nível de vida dos habitantes palestinianos "é agora muito pior do que nos anos 1990 - devido a uma subida na taxa de natalidade, escassez de recursos e obstáculos impostos ao comércio e livre movimento de bens e pessoas". @DR (Direitos Reservados | All Rights Reserved)

A Faixa de Gaza, de onde o repórter da BBC foi raptado, “tornar-se-á inabitável até 2020”, se nada for feito para aliviar as restrições impostas por Israel ao território governado pelo Hamas, segundo um relatório da ONU

Trata-se de um gangue responsável por vários sequestros e outros actos criminosos, com o suposto objectivo de obter a libertação dos seus elementos capturados pelas autoridades palestinianas.

Laila El-Haddad anotou o timing do desaparecimento do correspondente da BBC: dois dias antes da formação do “governo de unidade nacional” palestiniano.

No meio disto, há teorias de conspiração, acrescenta, como a de que Mohammed Dahlan, comandante da Fatah, chefe da segurança e o verdadeiro “homem forte” de Gaza, nada faz para impedir os raptos “porque está empenhado no colapso” da aliança de poder, para embaraçar o Hamas.

Ben Wedeman, da CNN, outro amigo de Johnston e também ele protagonista de uma fracassada tentativa de rapto, lamenta o que aconteceu, tendo em conta a personalidade da vítima. “Nos últimos três anos, encontrei-me com Alan quase sempre que me deslocava a Gaza. Ele era cliente habitual do Hotel Dira.

Em muitas manhãs, sentava-me ao seu lado e falávamos da paisagem política sempre em mudança – que facção, que líder estava a subir ou a descer. E mais do que uma ocasião, evocámos o perigo de sermos raptados.”

“A atitude de Alan, e a minha, era de um modo geral tratar o fenómeno como uma infeliz inconveniência, um potencial perigo, mas algo que se estava a tornar ali um facto da vida diária”, adiantou Wedeman. “Ambos víamos Gaza como um lugar trágico, intrigante, onde deparávamos amiúde com a generosidade e a abertura das pessoas que, dadas as circunstâncias, poderiam ser hostis.”

Wedeman foi-se embora da Faixa de Gaza em 2004, depois de o tentarem raptar. Segundo o Palestinian Centre for Human Rights, pelo menos 55 estrangeiros foram sequestrados em Gaza nos últimos três anos, embora todos tenham sido libertados sem ser molestados.

O primeiro-ministro do Hamas, Ismail Haniyeh (foto de cima) e Alan Johnston, no dia em que este foi libertado

Alan Johnston ficou, talvez porque o seu assignment terminava em breve ou como disse outro amigo, Eóin Murray, no site, porque era esse o seu “testamento de profissionalismo”.

A BBC, contactada por nós, não quis dar mais informações, nem contactos de amigos e familiares, alegando que “receia pôr em perigo as diligências” para conseguir a liberdade do seu repórter.

Laila El-Haddad e Ben Wedeman estão conscientes de que acções desta natureza prejudicam os palestinianos. “Este é o sintoma de uma sociedade sem Estado nem futuro. (…) A última coisa que os habitantes de Gaza precisam é de afastar os poucos estrangeiros que restam na sua solitária prisão ao ar livre a que chamam pátria. Ou de manchar ainda mais a sua imagem no exterior”, sublinhou ela.

“Muitos (…) ficam destroçados e não desculpam os raptores, porque isto é completamente contrário aos valores tradicionais árabes de hospitalidade para com os estrangeiros”, salientou ele.

Alan Johnston “deixou de dar notícias para ser notícia”, constatou o amigo Eóin Murray, que não se admira com a gigantesca campanha de solidariedade em marcha. O refém “é uma dessas pessoas raras e extraordinárias que, inevitavelmente, acabam por tocar as nossas vidas, por muito pouco tempo que passemos com elas.”

[Alan Johnston foi libertado em 4 de Julho de 2007. Em Outubro, o jornalista descreveu, pela primeira vez, num programa da BBC 4, os detalhes de quatro meses ou 114 dias de cativeiro, numa cela “com um saco-cama estreito e duas cadeiras de plástico”.

O seu maior temor confessou, era que o decapitassem. Perdeu muitas vezes a esperança de vir a ser libertado e sentiu ter “descido ao ponto mais baixo da vida”. Nos primeiros dias após o rapto, adoeceu devido à má alimentação e à água imprópria para consumo – na Faixa de Gaza os esgotos corriam a céu aberto e os escassos recursos hídricos não eram habitualmente tratados.

Quando deram Johnston um aparelho de rádio, ele recuperou a confiança, ao tomar conhecimento de uma gigantesca campanha mundial para obter a sua liberdade.

“Foi um enorme  incentivo psicológico”, reconheceu. Enquanto esteve encarcerado, teve oportunidade de conversar com um dos captores, identificado como Khamees, “um jovem na casa dos 20 anos”, que também o deixou ver, pela televisão, o apelo que os seus pais fizeram para que o filho fosse libertado.

Às vezes, o mesmo guarda não fechava a porta da cela à chave, para permitir que  Johnston fosse à casa de banho ou à cozinha, para confeccionar “duas refeições por dia”.

À medida que o Hamas apertava o cerco aos raptores, este obrigaram-no a gravar um vídeo, envergando um colete de bombista suicida, ao estilo dos jihadistas que estabeleciam um preço de resgate e depois executam o seus reféns. 

O dia da libertação “foi o mais assustador”, salientou Johnston. Combatentes munidos de espingardas Kalashnikov “gritavam irados, provavelmente temerosos de que o Hamas os mataria fosse qual fosse o acordo que pudessem estabelecer”. Nessa altura, Khamees agrediu-o na cabeça e o jornalista disse ter sentido “o sangue na boca”.

Atravessarem um posto de controlo militar com ele encapuzado, mas ainda assim capaz de ouvir mais gritos de que lhe “colocariam uma bala nos miolos” se o Hamas não recusasse. Subitamente, Khamees abriu a porta do veículo e largou-o no meio da estrada. 

Johnston receou ser novamente raptado por outra milícia, mas foi salvo por militantes do Hamas, o movimento que agora governa Gaza depois de expulsar a Fatah. Só então se apercebeu de que estava livre. Teve pesadelos durante muito tempo, mas disciplinou-se para os vencer.]

Alan Johnston não esconde que, após a libertação, teve pesadelos durante muito tempo, mas garante que se disciplinou para os vencer. Hoje, continua a ser um dos correspondentes da BBC - mas em Roma. @DR (Direitos Reservados | All Rights Reserved)

Depois da libertação, a Amnistia Internacional premiou Alan Johnston pelas suas reportagens sobre direitos humanos na Faixa de Gaza

Este artigo, agora revisto e actualizado, e com um título diferente, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 2007 | This article, now revised and updated, and under a different headline, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO in 2007

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