Os artistas unidos da ilha dividida

Ruzen, Andreas e Lia são pintores da “linha verde” que, em Nicósia, separa as comunidades grega e cipriota. Com os seu projecto Estúdios Abertos empenham-se em derrubar o último muro da Europa. (Ler mais | Read more…)

Foto 1

“A nossa fronteira não é aqui!, lê-se num graffito pintado na “linha verde” que separa a última cidade dividida da Europa. É esta também a palavra de ordem dos artistas dos Estúdios Abertos, um projecto para restaurar a confiança mútua. 
© Andreas Charalambous

É a poucos metros de um checkpoint com o nome de Ledra Palace, outrora um luxuoso hotel e agora quartel-general da força de paz da ONU, no centro de Nicósia, que Ruzen Atakan faz a primeira paragem.

Cipriota turca, ela vem do “outro lado” para uma entrevista colectiva com o amigo cipriota grego Andreas Charalambous, ambos prestigiados pintores das duas comunidades da ilha. São artistas da “linha verde”, unidos contra o muro que os separa há mais de três décadas. O último muro da Europa. A última capital dividida do mundo.

Sim, o muro erguido após a invasão turca, em Julho-Agosto de 1974, não deixou de existir, ainda que, em 9 de Março deste ano [2008], tenha sido “simbolicamente” derrubada uma parte dos tijolos e cimento na zona-tampão controlada pelas Nações Unidas, ao fundo de Ledra Street (não confundir com o posto de controlo de Ledra Palace).

No interior das muralhas venezianas da cidade velha, na pedonal e vibrante Ledra Street, onde surgiram as primeiras barreiras quando irrompeu a violência intercomunitária em 1963, ergue-se agora um tapume de metal e plástico.

Rolos de arame farpado, bidões e sacos de areia continuam a obstruir a passagem, vigiada por um soldado numa guarita. No chão, um graffito: “A nossa fronteira não é aqui!”

A palavra de ordem é subscrita pelos artistas dos Estúdios Abertos, projecto para restaurar a confiança mútua, com exposições a solo ou em grupo. Entre eles está Ruzen, elegante num mini-vestido branco, sandálias de plataforma a elevar a pequena estatura e duas tranças que em muito rejuvenescem os seus 41 anos.

Quando reencontra o sexagenário Andreas, conhecido na aldeia (que permanece mista) de Pyla, os dois prendem-se num longo e apertado abraço.

Ele espera-a no seu novo “abrigo”, fusão de uma antiga confeitaria grega com uma velha padaria turca (ainda lá está o forno de lenha), emprestado pela Câmara Municipal, depois de um incêndio ter destruído, em Junho de 2006, a sua Escola de Belas-Artes.

Mais que um estúdio, o fogo devastou um património nacional. Perderam-se “40 anos de trabalho”, designadamente, 1700 quadros, cerca de dez mil livros – “mais do que tem a Biblioteca de Chipre” – sublinha Andreas, e uma incalculável colecção de antiguidades africanas.

Ele não tinha seguro, mas nenhum dinheiro chegaria para compensar os danos causados por um vizinho, na cave do edifício, onde passava os dias “a queimar, estupidamente, fios eléctricos para vender o cobre” que continham.

Só 26 obras foram recuperadas, as que Andreas expunha na cidade alemã de Colónia. Foi aqui que o informaram, por telefone, do seu infortúnio.

Ruzen tenta que o mestre lhe devolva o sorriso, mas ele explica, as palavras pronunciadas com dor, que se o corpo sobreviveu às chamas a alma ficou queimada. “Eu tinha duas opções: matar-me e, se não fosse a minha filha, tê-lo-ia feito; a outra era criar tudo de novo. É o que estou a fazer.”

Admirado dentro e fora do seu país, o cipriota grego Andreas Charalambous formou-se em 1969-1975 no Instituto Sourikov de Belas Artes de Moscovo. A ligação à Rússia contribuiu para as convicções políticas. “Serei sempre um comunista ainda que tenha deixado a militância partidária, porque limitava a minha criação.”
© Andreas Charalambous

Assim, o novo espaço de Andreas voltou a encher-se de telas, pincéis, tintas, livros, revistas, retratos, objectos antigos, conchas, corais, pedras preciosas. Ele continua a dar aulas e palestras na sua Fine Arts School, a pintar e a expor quadros, a ilustrar cartazes ou cenários para teatro.

“O momento mais reconfortante chegou há poucos dias, quando me nomearam membro honorário da Academia de Artes da Rússia”, diz, os olhos a brilhar por detrás dos óculos redondos, os dedos amarelados pelo tabaco a compor o cabelo amarrado, a outra mão acariciando a barba grisalha.

Andreas, admirado dentro e fora de Chipre, formou-se em 1969-1975 no Instituto Sourikov de Belas Artes de Moscovo. A ligação à Rússia contribuiu para as convicções políticas.

“Serei sempre um comunista ainda que tenha deixado a militância partidária, porque limitava a minha criação”, esclarece. No referendo de 2004 sobre o plano de Kofi Annan para a reunificação da ilha, Andreas votou “sim”, e não aceita que o considerem uma minoria.

“Fomos 25% , ou seja, um quarto da população”, enfatiza. “Se o AKEL [Partido Comunista] tivesse sido mais activo na campanha, tentando alterar os três ou quatro pontos de que discordava, não estaríamos neste impasse. Tudo o que aconteceu desde então só beneficia a Turquia”, que mantém 40 mil soldados e 160 mil colonos no Norte de Chipre.

O olhar fixo em Andreas, a pequena Ruzen expira o fumo de um cigarro oferecido pelo anfitrião e acena a cabeça em sinal de concordância. Também ela votou “sim” (como a esmagadora maioria dos cipriotas turcos), e sente que se perdeu uma oportunidade.

“A situação no Norte [onde foi proclamada uma república, sem reconhecimento internacional] não nos é favorável, ao contrário do que possam pensar”, declara.

“Eu não gosto que Ancara esteja a importar colonos e a dificultar-me a vida. Quando os turcos vendem ilegalmente propriedades dos cipriotas gregos envolvendo no conflito companhias estrangeiras, terceiras partes, estão a inviabilizar uma solução.”

Um dos quadros de Ruzen Atakan, cipriota turca, representa três figuras – à direita, dois amantes; à esquerda, um intruso, que usa uma máscara e rouba uma fatia de bolo. “A ideia foi mostrar como a união [entre o Norte e o Sul] está a ser violada por estranhos [tropas e colonos de Ancara]”.
© Ruzen Atakan

Para vincar o que a distingue dos turcos, Ruzen mostra um pequeno catálogo que trouxe, com as suas pinturas “neo-figurativas”, às quais recusa dar nomes.

São imagens de romance e erotismo, que poderiam escandalizar a sociedade conservadora de Ancara, em cuja Universidade de Gazi se licenciou. Os cipriotas turcos, cultos, cosmopolitas e laicos, “são totalmente abertos a qualquer forma de arte”, assegura.

Com assumida carga política, um dos quadros de Ruzen representa três figuras – à direita, dois amantes; à esquerda, um intruso, que usa uma máscara e rouba uma fatia de bolo. “A ideia foi mostrar como a união entre cipriotas turcos e cipriotas gregos está a ser violada por estranhos”.

Noutro quadro, uma mulher nua está encostada a uma tela quase tocando a mão de quem está do outro lado, sem nunca o(a) ver. “Podemos dizer que simboliza o muro que nos separa.”

Também Andreas reconhece que a divisão tem influenciado, “directa e indirectamente”, a sua obra. Numa das paredes do seu estúdio há um tríptico onde ele põe em evidência banais rivalidades. Três chávenas do mesmo café, “que turcos, gregos e cipriotas reclamam como seu, embora tenham sido peregrinos da Abissínia (Etiópia) que o levaram até Meca, através do Império Otomano”, ironiza Andreas.

A primeira chávena tem o Parthénon de Atenas e a bandeira grega; na terceira desenhou o museu de Hagia Sofia em Istambul e a bandeira turca; a do meio, ilustrada com um burro, está partida, e o café derramado sobre uma toalha vermelha e azul, simbolizando as cores da Turquia e da Grécia.

Numa parede oposta, Andreas pintou um conjunto de pedras, a maior delas com uma forma ostensivamente fálica, a que chamou “Chipre puxa-e-empurra”. Ou seja, “se uma ponta se mexer a outra terá necessariamente de ir atrás”, descodifica.

Lia Voyatzi, no seu estúdio, em Nicósia
© Lia Voyatzi

Andreas e Ruzen são parceiros de Lia Voyatzi, 37 anos, no projecto Estúdios Abertos. Depois de vários anos a alugar casas em Nicósia, Lia decidiu comprar a degradada moradia dos avós junto à “linha verde”. Mudou-se com cães e gatos para a Rua Péricles, onde “a arquitectura é bonita e os vizinhos se conhecem uns aos outros”.

No restaurado imóvel, onde gastou “uma fortuna”, o rés-do-chão serve de montra a dois dos seus trabalhos, enquanto o primeiro andar, com uma varanda por onde trepam e caem buganvílias, é a sala de pintura e visitas. O último piso, onde vive, tem terraço onde vai contemplar as montanhas do “outro lado”.

Lia, como Andreas (seu mentor) e Ruzen, também deixa as cores do conflito, sobretudo o negro do carvão, impregnar as suas telas brancas, que ela define como “realistas”. Para uma das suas mais importantes colecções, a óleo, dedicada a uma amiga morta a tiro pelo namorado, Lia perguntou a várias pessoas conhecidas o que fariam com uma arma.

A resposta está na pose que assumiram para os retratos que ela pintou. No primeiro quadro a ser vendido, um homem aponta um revólver à cabeça, numa tentativa de suicídio. Interpelada, a cliente justificou a compra: “É assim que me sinto todos os dias de manhã”.

A “questão de Chipre” gera um clima depressivo, concorda Lia, que estudou em Florença e em Roma. Ela votou “sim” no referendo, porque está “cansada de não ser livre”. Para alguém que “adora andar de bicicleta, é muito triste precisar de um passaporte para atravessar uma rua”.

Cinco checkpoints funcionam em Nicósia, sendo que os mais movimentados – desde a sua abertura, em 2003, um número superior a 10 milhões de pessoas “quebrou a barreira psicológica” para os atravessar – são os de Ledra Palace (por onde só passam peões, bicicletas e veículos diplomáticos) e o de Agios Dhometios ou Metehan (por onde podem circular todos as viaturas).

A pouca distância da casa de Lia, quando Ledra Street se encontra com o Café Berlim nº 2, um casal de turistas da antiga Alemanha de Leste (RDA) aproxima-se da interdita zona de demarcação da ONU.

Aqui, onde a rua não tem saída, é deprimente a paisagem de belíssimas mansões abandonadas e em ruínas. A mulher deixa cair uma lágrima, e desabafa: “Sei bem o que é não poder atravessar o muro”.

Para uma das suas mais importantes colecções, a óleo, Lia Voyatzi perguntou a várias pessoas conhecidas o que fariam com uma arma. A resposta está na pose que assumiram para os retratos que ela pintou. No primeiro quadro a ser vendido, um homem aponta um revólver à cabeça (na foto, a pintora e a pintura), numa tentativa de suicídio. Interpelada, a cliente justificou-se: “É assim que me sinto todos os dias de manhã”.

Estes são alguns dos retratos:

@Lia

© Lia Voyatzi

@Lia Voyatzi

© Lia Voyatzi

@Lia Voyatzi

© Lia Voyatzi

@Lia Voyatzi

©Lia Voyatzi

A jornalista viajou a convite do Ministério dos Negócios Estrangeiros da República de Chipre 

Este artigo foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 2008 | This article was originally published in the newspaper PÚBLICO, in 2008

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