Constantinides não abdica de recuperar os seus bens confiscados depois que tropas de Ancara invadiram a ilha de Afrodite em 1974. Georgiou, pelo contrário, acha que é preciso “perder alguma coisa”, para que o Norte e o Sul se reunifiquem. (Ler mais | Read more…)

Sinal de “Paz” em Ledras Street, perto da “zona tampão” controlada por uma força das Nações Unidas, em Nicósia – a última cidade dividida da Europa
© Yannis Kourtoglu | Reuters
Ayios Dhometios ou Metehan é um posto de controlo por onde o Sul “libertado” entra de carro no Norte “ocupado” de Chipre. Aqui mostra o passaporte e o seguro do veículo, preenche um formulário e vê guardas em contentores a esboçarem um sorriso forçado.
O telemóvel recebe uma mensagem: “Bem-vindo à Turquia!” Uma enorme faixa anuncia em inglês: How happy to say I am a Turk! (Orgulho-me de dizer que sou um turco).
A esta frase de Mustafa Kemal Atatürk, o agente alfandegário cipriota grego Demetres Constantinides responderá: “Não sou racista, mas odeio os turcos, porque arruinaram a minha vida!”
Ele perdeu as propriedades da família, em Kyrenia, quando as tropas de Ancara lançaram a Operação Atilla, a invasão de Julho-Agosto de 1974. Agora considera-se um “refugiado”, em Limassol.
“Não tenciono voltar enquanto não me devolverem todos os meus bens”, sublinhou, em tom irritado, à chegada ao aeroporto de Larnaca, depois de uma viagem à EuroDisney, com a mulher e o filho mais velho.
Constantinides não suporta a ideia de os lugares da sua infância estarem “maculados” com a bandeira turca e os bustos/estátuas de Atatürk; com zonas militares fechadas; a presença de mais de 40 mil soldados e mais de cem mil colonos; a “venda ilegal” de extensos lotes de terreno; a “escandalosa construção” de centenas de moradias e condomínios nos areais das “melhores praias do país”.
Há um “crime”, em particular, que ele não perdoa: a transformação da imponente Catedral de São Nicolau em Mesquita do Paxá Lala Mustafa, em Famagusta, classificada como “cidade-fantasma”.
O templo foi erguido entre 1298 e 1312. Mustafa foi comandante do Império Otomano que invadiu Chipre em 1571.

Um bispo ortodoxo grego e um imã muçulmano participam numa cerimónia de Sexta-Feira Santa, na Igreja de S. Jorge Exorinos, erguida no século XIV na cidade de Famagusta, no Norte de Chipre, em Abril de 2014. Centenas de peregrinos – alguns regressando à pátria após 40 anos de exílio forçado assistiram a esta liturgia
© ecumenicalnews.com
Ainda mais amargurado está, naturalmente, o arcebispo ortodoxo cipriota Crisóstemos II. Num comunicado que nos fez chegar, alerta que “a situação das igrejas na área ocupada pelos turcos é dramática”.
E adianta: “Um censo demográfico calcula que existiam 520 edifícios sacros no Norte de Chipre, entre igrejas, capelas e mosteiros.
“Desses, alguns dos quais arménios e maronitas, 133 igrejas, capelas e mosteiros foram profanados – convertidos em depósitos militares, estábulos, discotecas e mesquitas.”
“Cerca de 15 mil ícones foram extraídos ilegalmente e encontra-se no mercado clandestino internacional de arte. O património destruído contempla frescos que remontam ao ano 500 d.C., a maior parte datam da época bizantina.”
O arcebispo – chefe da mais poderosa e rica instituição de Chipre – oferece fundos para restaurar os templos no Norte, mas também as mesquitas no Sul que tenham sido abandonadas, depois de a invasão turca ter provocado o que alguns, na comunidade helénica, designam de “transferência forçada de populações” ou “purificação étnica”, em ambos os campos.

Em 2016, cipriotas gregos e turcos saíram à rua, em Nicósia, para apoiar as conversações de paz promovidas pela ONU – o plano falhou porque o Sul não correspondeu ao que o Norte esperava
© Associated Press
A fractura nacional também angustia George Charalambous, que nasceu em Outubro de 1974, dois meses depois do início da ofensiva turca.
“Não tenciono ir ao Norte, porque não tenho lá nada e não conheço lá ninguém”, diz o jovem, um sorriso que mistura simpatia e desilusão, enquanto serve um café junto à Avenida Macários, uma das principais artérias comerciais da capital cipriota.
“Eu tive sorte, porque a minha casa, quando Nicósia foi dividida, ficou rigorosamente cem metros de fora da zona-tampão da ONU. Agora, os meus amigos pensam o mesmo, só de pensar em ter de atravessar os checkpoints, mais facilmente compro um bilhete para passar férias no Brasil do que vou ao outro lado.”
Da geração dos que só conheceram um país dividido, o jovem Charalambous confessa o seu maior receio: “Eu deveria concentrar-me no presente e não estar sempre a imaginar o que vai ser o futuro.”
“Não me interessa se o Norte e o Sul continuarão separados porque sempre vivi assim, mas apavora-me a ideia de, um dia, acordar e ter como vizinhos cinco milhões de turcos que ameacem a minha existência”.
A Charalambous preocupa igualmente o facto de os cipriotas turcos “não terem poder de decisão” para chegar a um compromisso que seja aceite pelas duas comunidades: “Eles estão totalmente dependentes de Ancara, ao contrário de nós, que podemos cometer erros mas não temos de obedecer cegamente à vontade de Atenas”, lastima-se.

Nicósia, Abril 2017: À espera da reunificação do Norte e do Sul de sempre adiada
© Petros Karadjias | AP
Mais velho, aos 44 anos, o empregado de escritório Nikolas Georgiou, também está inquieto com o futuro. No referendo de 2004 ao projecto de reunificação apresentado por Kofi Annan, o anterior secretário-geral da ONU, ele votou “sim”, ao contrário da maioria dos cipriotas gregos.
“Temos de aceitar perder alguma coisa para não perder tudo”, recomendou, com voz entristecida. “Quanto mais tempo passa, sem que nada avance, quem ganha é a Turquia – nem sequer serão os cipriotas turcos”.
Georgiou, sem militância partidária, lamenta que a classe política em Nicósia, incluindo os comunistas do AKEL “não tenha coragem de dizer a verdade às pessoas, com medo de perder votos”. E a verdade, na sua opinião, é que os cipriotas gregos “têm de estar preparados para fazer as concessões que até agora têm recusado”.
O plano da ONU e o referendo deixaram feridas abertas na própria comunidade helénica. Alguns editorialistas ainda hoje analisam as ideias de Annan, um deles usando termos médicos para caracterizar a situação: “o projecto está morto e enterrado” ou “espera uma autópsia para definir a causa do óbito” ou “está nos cuidados intensivos”.
Também foi comparado, em “termos psiquiátricos”, a um doente “num sanatório, “rodeado de maníaco-depressivos que não tomam os seus medicamentos e se sentem perdidos” (Jornal Sunday Mail, Nicósia).

República Turca do Norte de Chipre, um Estado de facto autoproclamado em 1983 por Rauf Denktash mas apenas reconhecido internacionalmente por Ancara
© monocole.com
“Um grande problema psicológico contribuiu para a rejeição do plano por parte dos cipriotas gregos”, justifica Erato Kozakou-Marcoullis, directora para a Questão de Chipre e Assuntos Turquia-União Europeia e, menos de uma semana depois, se tornou ministra dos Negócios Estrangeiros, no âmbito de uma remodelação governamental.
“Não estava previsto um mecanismo de implementação”, diz Marcoullis. “A República de Chipre deixaria de existir sem a salvaguarda de que os elementos contidos no plano seriam aplicados. Esta foi a razão principal.”
A carismática diplomata de carreira, muito popular no seu país, frisa que os cipriotas gregos “rejeitaram o plano mas não uma solução”.
E esta, em seu entender, passa por “uma federação viável que unifique o Estado, à semelhança do que acontece com a Bélgica ou a Alemanha.” Uma solução federal, acrescenta, “tem de ser compatível com os princípios europeus do estado de direito, da liberdade e dos direitos humanos”.
A chefe da diplomacia de Nicósia reafirma apoio à entrada da Turquia na União Europeia, mas exige que o poderoso vizinho “seja tratado do mesmo modo que os outros candidatos à adesão, sem excepções às regras”. E mostra-se indignada por Ancara ainda não reconhecer a República de Chipre, que é membro da UE desde 2005.
“Os turcos não podem continuam a comportar-se como um aluno universitário que rejeita fazer certas disciplinas, porque não gosta de alguns professores, mas ainda assim reclama o diploma de fim de curso.”
Apesar de Chipre querer abrir o clube europeu à Turquia, as queixas contra o modo como “administra” o Norte da ilha abundam nos documentos oficiais.
Uma das acusações tem a ver com as aldeias-enclave onde, de um total de 20 mil habitantes, restam “535 cipriotas gregos e maronitas, que continuam a viver sob pressão, privação e intimidação”.

Um homem usa o telemóvel para fotografar um ícone da Virgem Maria, ou Panayia, a Misericordiosa, do século XIV, um se 173 objectos religiosos, incluindo frescos e mosaicos, roubados há 40 anos de igrejas ortodoxas e maronitas no Norte de Chipre, e agora entregues ao Museu Bizantino em Nicósia
© Petros Karadijas | AP
Uma visita a Rizokarpaso, onde permanecem menos de 50 residentes cristãos, os colonos turcos deixaram bem claro quem manda ali. Panais Tandis, a pele enrugada pelos seus 70 anos, fixa os olhos verdes em Lefteris, de 22, e Georges, de 17, aconselhando-os a “terem cuidado com a língua”, porque “ele” está à escuta.
“Ele” é um corpulento curdo, emigrante da Anatólia, que se aproximou, sem ser convidado, para ouvir a conversa.
Lefteris diz apenas que, em Rizokarpaso, “não há cipriotas turcos, só colonos turcos”. Que a situação “já foi pior”, e por isso deixou-se ficar, ainda que seja diminuto o número de raparigas com quem casar, e o enclave tenha pouco mais que um café-cervejaria, uma mercearia-armazém, uma escola, uma igreja e uma mesquita. Aqui, todos vivem, de um modo geral, do trabalho do campo e da criação do gado.
Os que se reformaram têm uma pensão do Governo em Nicósia. É o caso de Savas Kolatzi, 83 anos, cabelo totalmente branco, as pernas inchadas assentes numa bengala.
“Nasci aqui e morrerei aqui”, enfatizou o camponês aposentado, sentado numa velha esplanada. Depois calou-se, quando dois adolescentes turcos apareceram, subitamente, e interromperam o diálogo, inquirindo sobre o que pretendiam os estranhos.
De regresso a Nicósia, perdidos num labirinto de ruas, sem ou com confusas placas de orientação, dois gentis cipriotas turcos ajudam a reencontrar o checkpoint de Agios Dhometios ou Metehan.
À entrada no Sul, são agora os guardas cipriotas gregos que dificultam a passagem aos carros alugados (identificam-se pela matrícula vermelha) e restringem a entrada de produtos adquiridos quase isentos de taxas.
Ainda nos limites geográficos do Norte, a mesma faixa do “orgulho em ser turco” despede-se do visitante com outra frase, em inglês: Peace at home and the world.
Titina “vs” Turquia

A invasão turca de 1974 “negou-me o acesso e o uso da minha propriedade, recusou-me o direito de usufruir da minha terra-natal e de viver em liberdade com a minha família e a população de Kyrenia”, diz Titina Loizidou
© Cyprus Mail
Num caso que fez jurisprudência, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos obrigou Ancara a indemnizar e a devolver a uma cidadã de Chipre os seus bens confiscados após a invasão e ocupação do Norte da ilha em 1974.
A história de Titina Loizidou correu mundo mas ainda não teve um desfecho feliz. Num processo que fez jurisprudência, a Turquia foi obrigada pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos a pagar-lhe uma indemnização equivalente a 1,2 milhões de euros, por a ter privado do acesso às suas terras, ou como ela diz ao “direito à convivência com os vizinhos”, em Kyrenia, no Norte de Chipre, após a invasão de 1974.
“Mais de 5000 cipriotas gregos que perderam bens no Norte e são hoje refugiados no Sul seguiram o meu exemplo”, orgulha-se Titina, abrandando o passo à saída de uma das muitas pitorescas aldeias que adornam as montanhas Troodos, onde falou connosco. “Fiquei espantada com as repercussões porque, até nos Balcãs, este precedente judicial está a ser usado por bósnios e sérvios”.
O processo começou em 1989 com uma queixa individual contra a Turquia, membro da Conselho Europeu dos Direitos Humanos, com sede em Estrasburgo.
“O Conselho tem uma forte componente política, e recusou a minha petição”, explicou Titina. “Foi então que recorri ao Tribunal, mas para isso foi preciso que o Estado cipriota intercedesse a meu favor.”
“A questão era tão politicamente explosiva que o Governo só deu uma resposta positiva quando faltavam quatro dias para expirar o prazo que tinha para dizer se aceitava ou não associar-se”, acrescentou.
Em 1996, no que Titina considera “o veredicto mais importante”, o Tribunal validou as licenças de propriedade, que ela apresentou e foram avaliadas por peritos em Londres, deliberando que a Turquia, por ter “um elevado número de tropas no Norte de Chipre” violou o direito da queixosa de regressar à sua propriedade.
Em 1998, o tribunal exigiu a Ancara o pagamento de danos pecuniários, danos morais e custos processuais.
Só em 2003, porém, depois de várias intervenções do Comité de Ministros do Conselho da Europa, que não reconheceram o argumento de que as terras em litígio “pertenciam à República Turca do Norte de Chipre”, sem reconhecimento internacional, é que Ancara finalmente pagou o que devia – uma quantia a que se somaram juros de 8 por cento anuais.
No entanto, ainda não devolveu as (dez) propriedades de Titina. Ela assevera: “Vou dar-lhes até Dezembro, e não vou desistir de recuperar o que é meu. Não posso aceitar que me roubem a minha identidade.”
- Em 2019, Titina recorreu à Comissão de Ministros do Conselho da Europa, para impedir que a Turquia encerre o processo sobre os seus bens, que ainda não recuperou.

Kyrenia [na foto, o porto da cidade, no Norte de Chipre] “é uma parte inseparável de mim própria, está no âmago do meu próprio ser”, afirmou Titina Loizidou. “É o lugar onde cada pedra tem memórias e significados pessoais”
© cyprustoptravel.com
Num site que criou na Internet, Titina explica que a sua aldeia, entre o monte Pendadaktylos e a costa norte de Chipre, “ficava perto de um bairro cipriota turco”, onde o seu pai e avô, ambos médicos, tinham pacientes das duas comunidades da ilha. “Deixei a escola depois de uma curta ausência para estudar no Reino Unido”, conta.
“Casei-me em 1972, e mudei-me com o meu marido para Nicósia, mas visitava frequentemente a minha família e tencionava dar uso à propriedade que herdei do meu pai em Kyrenia”.
Num dos lotes, ela já havia iniciado a construção de uma casa. “Estou determinada a instalar-me aqui quando me reformar”, garante-nos. “Kyrenia é mais do que um lugar onde sou dona de terras às quais quero regressar”, sublinha no site.
“É uma parte inseparável de mim própria, está no âmago do meu próprio ser. (…) É o lugar onde a minha família viveu durante várias gerações, onde eu cresci, onde cada pedra tem memórias e significados pessoais.”
A invasão turca de 1974 “negou-me o acesso e o uso da minha propriedade, recusou-me o direito de usufruir da minha terra-natal e de viver em liberdade com a minha família e a população de Kyrenia”.
Mais grave, adianta Titina, a ocupação do Norte “fez do meu avô, que era um médico muito respeitado, um refugiado aos 80 anos. Também os meus pais se tornaram refugiados.”
A obsessão em lutar pela reunificação da ilha e reconciliação das suas duas comunidades levou Titina a juntar-se ao movimento Women Walk Home (Mulheres que voltam a casa). “Tentei voltar a casa quatro vezes, participando em quatro marchas pacíficas. (…) Em todas as ocasiões, as tropas turcas impediram-.me.”
“(…) Fui detida e conduzida a Nicósia sob escolta. Fiquei desapontada e frustrada porque Kyrenia, tão perto em termos de distância física, estava tão longe, ocupada por militares e colonos estrangeiros. Pareceu-me triste e irónico que os turcos considerassem o meu acto pacífico ‘uma violação de fronteira’ – uma ‘violação de fronteira’ no meu próprio país!”
Hoje, Titina Loizidou assume-se como uma das mais ardentes defensoras da entrada da Turquia na União Europeia. “Se os turcos não fossem membros do Conselho da Europa eu nunca teria ganho o meu processo, porque eles jamais poderiam ser responsabilizados”, conclui.
E, se os 20 mil cipriotas gregos na situação de Titina enveredarem pelo seu longo e paciente caminho, estima-se que Ancara terá de pagar 16 mil milhões de dólares – ou seja, cerca de 70 por cento das suas actuais reservas e 15 por cento da sua dívida externa. A isto acresce, refere o site de Titina, que a ocupação militar do Norte de Chipre custa aos turcos 500 milhões de dólares/ano.

Em 1974, Titina ficou famosa quando o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos obrigou Ancara a indemnizá-la e a devolver-lhe os bens confiscados em 1974; em 2019, Ancara tentou encerrar o processo, mas ela recorreu ao Conselho da Europa
© cna.org.cy
A jornalista viajou a convite do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Repúbilca de Chipre
Estes dois artigos foram publicados originalmente no jornal PÚBLICO em 2007| These two articles were originally published in the newspaper PÚBLICO, in 2007