Serão mais de cem tribos e terão exércitos privados de milhares de homens armados. Famílias palestinianas misturam as técnicas da Mafia com a ideologia da al-Qaeda. São ricas, poderosas e influentes. Nem a Fatah nem o Hamas conseguiam dominá-las. Quando matam um dos seus, o lema é: “Sangue por sangue”. (Ler mais | Read more…)
Abu Ashur é um dos chefes do clã Dogmush (também conhecido como Daghmash, Doqmosh ou Durmush). Quando ele entra, acompanhado de estrangeiros, no bairro de Sabra, na Faixa de Gaza, o seu telefone toca e alguém pergunta se corre perigo.
É que alguns minutos seriam suficientes para os seus “cerca de 8000” familiares desencadearem uma guerra para o libertar.
Entre os estrangeiros que acompanharam Ashur, como “convidados”, estava um repórter do jornal francês Le Figaro que pôde confirmar como os Dogmush se transformaram num dos mais poderosos e temíveis hamulla, ou tribos, do território que o World Peace Herald descreveu, por seu turno, como “uma espécie de Sopranolândia palestiniana”.
Gaza não se tornou apenas num campo de batalha entre laicos e islamistas, ou num bastião exclusivo do Hamas.
Foi sobretudo desde a morte de Yasser Arafat, em 2004 – o velho do kaffiyeh restaurou o poder das famílias mas não hesitava em destruir-lhes as casas com morteiros quando o desafiavam –, que a pequena faixa enclausurada entre Israel e o Egipto se tornou um centro de implacáveis mafiosos.
Os negócios são vários: contrabando de armas e droga, furto organizado de viaturas, raptos como forma de pressão ou para extorsão de dinheiro.
Suspeita-se que seja o clã Dogmush, sob a capa de Exército do Islão, que mantém sequestrado desde há três meses o correspondente da BBC Alan Johnston. [O jornalista seria libertado em Julho de 2007 após 114 dias de cativeiro].
A combinação de Máfia com al-Qaeda faz com que os clãs de Gaza não só se dediquem à acumular riqueza e influência mas também a abomináveis práticas sociais e religiosas. Entre os seus alvos preferenciais estão os cibercafés, frequentemente assaltados e incendiados por serem “impurezas do Ocidente”.
Mais cruéis ainda são os chamados “crimes de sangue”. Avi Issacharoff alertou, no diário hebraico Há’aretz, que várias mulheres têm sido executadas, os seus cadáveres despejados nas ruas ou enterradas em segredo, para “lavar a honra da família”.
É que em Gaza a honra só se lava com sangue. Kevin Peraino, da revista americana Newsweek, que também entrou na fortaleza de Sabra, alegadamente vigiada em permanência por três equipas de 170 homens cada, foi testemunha da revolta de Taman, inconformada por ainda não ter conseguido vingar-se dos que, o ano passado, mataram Mahmoud, um dos seus filhos.
“Sessenta e três balas!”, vincou a mãe, culpando 18 membros do Hamas pelo tiroteio. “Primeiro mataremos o líder e depois mataremos os outros 17”, asseverou.
A morte de Mahmoud e de Ashraf Dogmush, em Dezembro de 2006, não abalou apenas a família. Abalou também as lealdades partidárias do clã. Ricos comerciantes de Gaza, os Dogmush começaram por ser aliados da Fatah, na primeira Intifada de 1987, pondo ao serviço dos nacionalistas de Yasser Arafat o seu arsenal de armas traficadas.
Após o processo de Oslo de 1993, vários elementos da tribo integraram as forças de segurança da Autoridade Palestiniana, mas com a segunda Intifada, a partir de 2001, outros aderiram às Brigadas Ezzedin al-Qassam, “braço armado” do Hamas.
Mumtaz Dogmush fazia parte desta milícia quando numa noite eclodiu um violento confronto entre o Hamas e a Fatah, à entrada de Sabra. Avisado, deixou claro que os primos Mahmoud e Ashraf , embora do grupo rival, estavam sob a sua protecção.
A advertência foi vã. “Dispararam balas sobre as cabeças deles já depois de mortos”, contou Abu Ashur ao Figaro. “A família Dogmush foi humilhada e não temos escolha a não ser lavar a nossa honra.”
Os mais altos dirigentes do Hamas assumiram responsabilidade e propuseram “pagar o preço do sangue”, seis quilos de ouro por cada vítima de uma morte premeditada.
O clã, que não tem falta de verbas, interpretou a proposta como mais uma ofensa e exigiu, segundo o jornal francês, a aplicação do princípio “olho por olho, dente por dente”.
As Brigadas Qassam propuseram posteriormente executar três envolvidos na matança, mas a direcção política do Hamas vetou essa sugestão.
Os Dogmush têm vindo gradualmente a eliminar alguns dos nomes que incluíram numa “lista negra”. “Às vezes matamos inocentes”, reconhece Abu Ashur. “Mas avisámos todos para se distanciarem dos criminosos que nós perseguimos.”
Um dos “inocentes” terá sido Hassan Abu-Sharah, raptado e executado, “por engano”, pelos homems de Mumtaz Dogmush, o actual comandante do Exército do Islão. O clã Sharah também não desiste de “lavar o sangue com sangue”. O mesmo se passa com a tribo dos al-Dire.
Em Janeiro, três familiares morreram numa batalha de rua com os Dogmush. “Sabemos os nomes deles”, disse Munther al-Dire à Newsweek. Se os encontrarmos na rua, matamo-los. (…) Depois de nos vingarmos podemos voltar a ser amigos.”
Com nomes como Dogmush, al-Dire, al-Masri, Kafameh ou Abu Karash, serão mais de cem os clãs “justiceiros” que preenchem o vazio político e de segurança em Gaza agravado pela destruição das forças de segurança dominadas pela Fatah em 2002 e pela retirada unilateral do exército israelita em 2005.
Ali al-Sartawi, responsável do Hamas e antigo ministro palestiniano da Justiça, admitia em declarações ao Daily Telegraph, em Abril, a impotência do governo. “Devido ao poder dessas famílias, e sobretudo devido à força e elevado número da família Dogmush, agir contra eles deixaria o ministro do Interior numa situação muito difícil. (…) O resultado seria catastrófico.”
“O lado positivo é que estas estruturas garantem um mínimo de bem-estar e de segurança aos seus próprios membros. O lado negativo é que há uma resistência a qualquer tentativa da autoridade formal de impor a sua lei.”
Inquirido sobre se o Hamas, agora que escorraçou a Fatah do poder, vai ousar enfrentar os clãs, Rabbani responde: “Por um lado, terá de mobilizar estas estruturas para conseguir apoio, por outro tentará limitar a sua influência, já que essas estruturas acabam por ser uma alternativa. Era assim que a Fatah lidava com os clãs e creio que vai ser assim que o Hamas vai agir.”
Rabbani não acredita que as famílias tenham grandes exércitos. “Essa impressão é errada”, sublinha. “Trata-se de famílias com armas mas não com exércitos. Algumas dessas redes familiares são muito numerosas e a sua lealdade principal é a própria rede familiar e não a qualquer facção.”
O barbudo Abu Mansur, outra figura dos Dogmush a quem chamam “Tora Bora” pelas semelhanças físicas com os Taliban afegãos, garantiu ao Figaro: “Vamos prosseguir a nossa vendetta mesmo que isso provoque uma guerra civil”. E ela aconteceu.

© UPI Photo | Ismael Mohamad
Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 2007 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO