Os generais da Birmânia recusaram libertar a filha do “herói da independência” e líder da Liga Nacional para a Democracia. “Têm muito medo dela”, diz uma amiga. (Ler Mais | Read more...)

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Prestes a completar 62 anos, no dia 19 de Junho [de 2007], Aung San Suu Kyi já quase não [tinha] forças para cuidar do jardim da sua casa, em Rangun, onde segundo um relato da Vanity Fair brotavam lírios, gardénias, jasmim e até uma flor da América do Sul chamada “ontem, hoje e amanhã”.
No entanto, apesar do estado de saúde cada vez mais debilitado, a sua amiga Debbie Stothard diz que ela ainda “aterroriza a junta militar” birmanesa.
Foi por isso que, numa avaliação que faz(ia) em cada 12 meses, ao abrigo de um obscuro decreto de segurança, o regime que se auto-intitula Conselho para a Paz e Desenvolvimento do Estado decidiu que a líder da Liga Nacional para a Democracia (NLD, sigla em inglês) se mantém a “mais famosa prisioneira política do mundo”. *
Foram mais uma vez ignorados os apelos internacionais para a libertação da mulher a quem chamam “a Nelson Mandela da Ásia”, feitos pela ONU, EUA e UE. Nem uma carta de 60 antigos presidentes e primeiros-ministros sensibilizou o ditador Than Shwe.
O jardim de Suu Kyi [era] como uma metáfora da Birmânia: um terreno onde crescem as ervas daninhas e onde as cobras são dos raros seres vivos autorizados a entrar. Diz-nos, por e-mail, Debbie Stothard, coordenadora da ALTSEAN, rede de apoio à democracia birmanesa que integra activistas, ONG, académicos e políticos do Sueste asiático: “As condições de detenção de Aung San Suu Kyi na sua casa são piores do que numa prisão. Pelo menos na prisão, ela tinha direito a visitas e telefonemas, de amigos, familiares, médicos e advogados.”
Agora, o médico aparece cada vez menos, e “o contacto com o mundo exterior é tão restrito que é como se ela estivesse na solitária”, adianta Stothard. “O regime tenta quebrar-lhe o ânimo, afastando-a da família, mas, apesar da perseguição e do isolamento dos que mais ama, ela mantém o espírito forte.”
Há informações que circulam entre os apoiantes de Suu Kyi de que nem sequer os dois filhos, Alexander e Kim, a residirem em Londres, lhe podem telefonar.
O mesmo acontecera com o seu marido, Michael Aris, que morreu de cancro da próstata, em 1999. Na altura, o regime permitiu que ela fosse ao funeral, mas deixou claro que não a deixaria voltar. Ela preferiu não viajar, guardando para si a dor de uma ausência que já era prolongada.
A relativa tranquilidade da vida de Suu Kyi foi abalada quando, em 31 de Março de 1988, teve de apanhar um avião de urgência para Rangun, onde a sua mãe sofrera um ataque cardíaco.
A capital birmanesa vivia um período de convulsão. A 23 de Julho, o general Ne Win, autocrata xenófobo que tomara o poder pelas armas em 1962, demitira-se na sequência de protestos.
A 15 de Agosto, na sua primeira acção política, Suu Kyi enviou uma carta aberta ao Governo, pedindo eleições multipartidárias. A 24 de Setembro, fundou a NLD, seguindo a filosofia de não violência de Mahatma Gandhi – ironicamente a Índia é hoje um dos raros aliados da junta birmanesa, a par da Rússia (que fornece tecnologia nuclear) e da China, ansiosos por explorar recursos naturais, como petróleo, gás e urânio.
Em 27 de Dezembro, no enterro da mãe, Suu Kyi prometeu honrar a memória do pai, Aung San, herói da luta pela independência, assassinado em 1947, em plena reunião do governo, antes de cumprir o sonho de formar um Estado federal com as suas várias minorias étnicas.
Ser filha de um herói não tem sido fácil para Suu Kyi. A primeira detenção domiciliária começou em 20 de Julho de 1989. Em 27 de Maio de 1990, a sua NLD conquistou 81% dos 485 lugares da Assembleia Nacional, nas primeiras eleições em quase três décadas.
O Partido de Unidade Nacional, pró-governamental, ficou reduzido a 2%. [Em 1991, a activista da oposição viu a sua luta pela democracia ser premiada com o Nobel da Paz.]
O escrutínio foi anulado. E Suu Kyi, que deveria ter sido primeira-ministra, voltou a ficar sob detenção domiciliária. Foi libertada em Julho de 1995, mas, sempre vista como ameaça, voltou à residência vigiada em Setembro de 2000. Dois anos depois, a junta sentiu-se confiante para a pôr em liberdade, e até a autorizou a viajar pelo país.
Recorda Debbie Stothard: “Em 2002, [os militares] pensavam que, não a vendo há 13 anos, o povo a tinha esquecido, mas dezenas de milhares de pessoas assistiam aos seus comícios, não obstante as ameaças de violência do regime, e o regime ficou extremamente nervoso e perturbado.”
Em 30 de Maio de 2003, um bando de arruaceiros atacou a caravana de Suu Kyi, numa aldeia do Norte. Alguns militantes da NLD foram mortos e feridos. Suu Kyi fugiu do local com a ajuda do motorista, mas foi detida ao chegar à localidade de Ye-U. Mandaram-na para a penitenciária de Insein, em Rangun.
Em Setembro, depois de ela ter sido submetida a uma histerectomia (remoção do útero), o Governo colocou-a de novo sob detenção domiciliária. E assim tem passado 11 dos últimos 17 anos.

Com o marido, Michael Aris, no dia do casamento, a 1 de Janeiro de 1972, em Londres. Ele morreu de cancro, em Londres, em 1999. Ela não foi ao funeral – sabia que os militares não a deixariam regressar se saísse do país
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Suu Kyi com os seus dois filhos, Alexander (à esq.) e Kim, em Inglaterra, em 1988. Nem um nem outro têm nacionalidade birmanesa
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“A confiança que as pessoas depositam em Suu Kyi não diminuiu, apesar dos anos de detenção, e há cada vez mais activistas a fazer ouvir a sua voz”, assegura Stothard.
A extrema magreza de Suu Kyi impressionou um enviado da ONU que a visitou em 2006, mas é “o regime que está muito mais fraco”, garante a coordenadora da ALTSEAN. “Até os seus próprios oficiais e soldados se ressentem da liderança. Civis e militares fogem do país devido à opressão e ao caos económico.”
Para realçar como a junta “está em apuros”, e citando a Janes Defence Weekly, Debbie Stothard adianta que, entre Junho e Setembro de 2006, desertaram um total de “9497 soldados – mais 8% do que no mesmo período de 2005”.
A NLD ofereceu-se, o ano passado, para reconhecer a junta, se o Parlamento se pudesse reunir, abrindo caminho a uma “genuína transição”, recorda Stothart. “Infelizmente, o medo e a ganância do regime não os deixa ver a situação com racionalidade.”
Ou como diz Suu Kyi num dos seus mais eloquentes discursos: “Não é o poder que corrompe, é o medo. O medo de perder o poder corrompe os que se agarram a ele, e o medo do castigo do poder corrompe os que se submetem.”
- [Em 13 de Novembro de 2010, Suu Kyi foi finalmente libertada da condição de detenção domiciliária, autorizada a movimentar-se sem restrições. Num discurso que fez, perante milhares de seguidores e simpatizantes, a activista defendeu “democracia e reconciliação nacional”, assegurando: “Não guardo ressentimentos em relação a ninguém”.
- Em 1 de Abril de 2012, foi eleita para o Pyithu Hluttaw, câmara baixa do Parlamento birmanês.
- Em Outubro de 2013, Aung San Suu Kyi foi, finalmente, a Estrasburgo receber o Prémio Sakharov, que lhe havia sido atribuído pela União Europeia em 1990.
- Em 2015, o partido de Suu Kyi conquistou mais de 65% dos votos em eleições gerais. Proibida pela Constituição de ser Presidente, assumiu um cargo criado exclusivamente para si -Conselheira de Estado -, equivalente a primeira-ministra.
- Em 2018, a Amnistia Internacional retirou-lhe o Prémio de Embaixadora da Consciência, criticando a sua “vergonhosa” indiferença para com o drama dos mais de 6000 muçulmanos Rohingya expulsos da Birmânia, numa campanha de “limpeza étnica” que a ONU suspeita ter “intenções genocidas”. Antes, já havia perdido outros prémios que lhe foram conferidos pelo Holocaust Memorial Museum, nos Estados, pelas cidades de Dublin e Oxford e pelo Parlamento do Canadá (que retirou a cidadania honorária).]

Um muçulmano Rohingya, em fuga da violência na Birmânia, implora auxílio quando o barco que transporta a sua família é interceptado pelas autoridades fronteiriças, em Taknaf, no Bangladesh
© Anurup Titu | AP
Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO, em 27 de Maio de 2007 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO on May 27, 2007