Funciona desde 2001 e é uma história de sucesso. O Child Development Bank, ou Bal Vikas Bank, começou em Nova Deli e já tem sucursais no Afeganistão, Bangladesh, Paquistão e Sri Lanka. Vai chegar também ao Quirguistão e ao Malawi. Um pequeno depósito ajuda a mudar – e a salvar – milhões de vidas. (Ler mais | Read more…)
Ao fim de um dia a recolher lixo nas ruas ou a vender flores nos semáforos, os cerca de 120 milhões de meninos sem abrigo na Índia (cálculos da UNICEF) raramente ficavam com algum dinheiro ganho nessas e noutras tarefas.
Gastavam-no todo em comida e em filmes. Ou ficavam sem ele em confrontos com parentes e rufias mais velhos.
Para subsistirem, alguns confiavam os magros salários a donos ou empregados de lojas. Até que criaram um projecto único no mundo: o seu próprio banco.
Aqui, no Child Development Bank (CDB) ou Bal Vikas Bank, em Nova Deli, miúdos dos 8 aos 18 anos não se limitam a ser clientes. São os próprios administradores – treinados nos princípios e terminologia bancários por técnicos de grandes instituições financeiras internacionais, como o HSBC.
Foram eles que ditaram as taxas de juro e os seus prazos. Quando lhes propuseram depósitos remunerados a 11 meses, regatearam para três, até concordarem que fossem fixados a seis.
“Onze meses era um período demasiado longo e irrealista”, explica-me, apor e-mail, Suman Sachdeva, a coordenadora do projecto lançado pela organização não governamental Butterflies: “As crianças disseram-nos que não sabiam se ficariam na mesma cidade tanto tempo ou se chegariam sequer a viver 11 meses.”
Os activistas da Butterflies, que amparam meninos nas ruas desde 1989 (têm actualmente 11 “pontos de contacto” e três abrigos nocturnos na capital indiana), começaram a discutir a necessidade poupança depois de se aperceberem de situações dramáticas.
“Quando um rapaz precisava desesperadamente de dinheiro e pedia emprestado a um irmão ou irmã, há frequentemente lutas corporais na hora de cobrar o pagamento”, exemplifica Suman Sachdeva. “Também é um problema quando as crianças ficam doentes e não podem trabalhar para se sustentar.”

O CDK é gerido por Sonu, um menino de rua, de 13 anos. Está neste banco. aberto sete dias por semana, desde que fugiu de casa da família.
@Arkaprava Ghosh | Barcroft India
“Em Julho de 1995, convidámos um perito em bancos mutualistas para nos ajudar a compreender como é que este conceito poderia reforçar os garotos economicamente. Começámos a trabalhar e a ideia pegou”, regozija-se Suman. “No espaço de um mês, em Agosto de 1995, as crianças do ponto de contacto do Terminal de Autocarros Inter-Estadual decidiram abrir uma União de Crédito.”
“Cada membro contribuía com duas rupias [o,03421 euros] por dia para o seu capital accionista (dez rupias/o,17103 euros, o custo de uma acção). O objectivo era fornecer vários serviços, como educação, formação profissional, assistência médica e empréstimos para iniciar pequenos negócios.”
Foi a partir do esquema de poupança da União de Crédito que o CDB nasceu, em Abril de 2001, com impulso de “doadores privados do Reino Unido”.
O perfil dos membros do banco, precisa Suman, varia de cidade para cidade. “Em Deli [onde serão 400 mil os que vivem e trabalham na rua], a maior parte são crianças que fugiram de outros estados indianos. Vieram para a capital por duas razões: são vítimas de abusos físicos em casa e são pobres.”
No primeiro ano de existência, o CDB já tinha 800 “sócios”. Actualmente, estes já ultrapassam os 8000. O direito de admissão é reservado: não são permitidos os que roubam carteiras por esticão nem os toxicodependentes.
Os balcões do banco funcionam nos “pontos de contacto” e nos abrigos da Butterflies. Com o apoio de “mediadores adultos”, as crianças eleitas em assembleia-geral para um conselho designado Volunteer Managers (Gestores Voluntários) controlam tudo, desde a emissão de cheques até à aplicação dos fundos.

Alguns meninos chegam a depositar o equivalente a 60 ou mais de 70 euros no banco de Sonu
@Arkaprava Ghosh | Barcroft India
Para abrir uma conta basta preencher à mão um formulário, com a ajuda de um “educador de rua”, e investir uma rupia (0,01710 euros, à data da publicação deste artigo).
Há dois tipos de contas, correntes (jamma khaata) e a prazo (bachat khaat). Das contas correntes, é permitido levantar, se houver provisão, qualquer quantia pretendida; as contas a prazo só podem ser movimentadas após seis meses, ou “em caso de emergência e quando os depositantes tencionam regressar às suas casas”, especifica Suman.
O CDB oferece uma taxa de juro de 3,5% ao ano, calculada em cada três meses, e adicionada aos depósitos. Os empréstimos ganham aqui a forma de “adiantamentos” em duas formas.
A primeira é o development advance a todas as crianças que queiram “adquirir coisas para as suas necessidades básicas, ou comprar um bilhete de volta a casa, ou para estudar, ou para obter uma formação laboral específica”.
Deste modo, realça Suman, evita-se que sejam levantadas as poupanças. A segunda é o welfare advance, para iniciar um projecto económico. Destina-se só a quem tem mais de 15 anos.
Mohammed Akbar, que dormia em estações de comboios, tinha 13 anos quando pediu um welfare advance – 500 rupias ou 8,5 euros (cálculo de 2008) – para vender chá que ele próprio confeccionava, conta a revista Civil Society News, de Nova Deli.
Para ele, não havia izzat (honra) a remexer as lixeiras onde passava os dias. Comprou uma chaleira, um pequeno fogão a querosene, plantas para chá e copos de plástico para se lançar no negócio.
Akbar tentou vender cada copo de chá a duas rupias, mas os clientes achavam caro, e o chá esfriava e entornava-se em cada caminhada. Os colegas aconselharam-nos a adoçar mais a bebida e a montar uma barraquinha num passeio.
Assim fez, e o seu negócio continua, às escondidas da polícia (que cobra uma “comissão”), embora seja mais lucrativo no Inverno que no calor abrasador da grande metrópole.

Quatro clientes do banco mostram as cadernetas para efectuarem os depósitos
© Arkaprava Ghosh | Barcroft India

A ONG Butterflies também oferece às crianças educação, abrigos e alimentos.
© Arkaprava Ghosh | Barcroft India
Hoje, com membros como Akbar, o CDB é uma multinacional. Tem 24 filiais principais e 44 secundárias no Sul da Ásia – em Deli, Bihar, Kolkata, Chennai e Jammu e Caxemira, na Índia; em Chitwan e Pokhara, no Nepal; e também no Afeganistão, no Bangladesh e no Sri Lanka.
A professora Suman Sachdeva está confiante na expansão para outras regiões indianas (Odisha/Orissa, Jaipur e Uttar Pradesh) e ainda para o Quirguistão, antiga república soviética na Ásia Central, e para o Malawi, em África.
Inquirida sobre as críticas de a Butterflies estar a perpetuar o trabalho infantil, Suman responde: “Como organização, lutamos para garantir os direitos de todas as crianças, e acreditamos que nenhuma criança deve trabalhar.”
“Na realidade, muitas delas trabalham porque não têm outra opção”, acrescenta. “Se vemos crianças em ocupações perigosas, tentamos afastá-las e reabilitá-las. O problema do trabalho infantil é tão grave que não o podemos eliminar subitamente.”
“A Butterflies tem uma série de actividades com as crianças de rua e as crianças que trabalham, e estas actividades estão todas integradas”, adianta Suman.
“A mais importante consiste num centro de educação. Outras são uma cooperativa de saúde, uma linha telefónica para ajudar meninos e meninas em risco, um clube de direitos infantis, uma cozinha comunitária, programas de noites culturais e saídas nocturnas.”
De todas estas iniciativas, uma das que mais terá contribuído para o bem-estar das crianças de rua foi a criação dos abrigos.
São uma protecção contra assaltantes e um lugar de higiene pessoal, mas também um meio de elas aumentarem as suas poupanças para o CDB: a comida é mais barata, porque subsidiada, e já não precisam de gastar dinheiro com o seu passatempo favorito: o cinema. Há televisões e leitores de DVD colectivos e, por isso, os filmes de Bollywood são grátis.
[Para mais informações, ler aqui.]
As mulheres foram pioneiras
Em 1995, quando crianças sem abrigo lançaram as primeiras estruturas do seu próprio banco em Nova Deli, já 4000 mulheres trabalhadoras por conta própria haviam criado, em 1974, o Shri Mahila SEWA Sahakari Bank, a partir de um sindicato, na região indiana de Ahmedabad.
Esta instituição pioneira, dirigida por e para mulheres, tem sido financeiramente viável desde que abriu as portas, e funciona como lobby ou grupo de pressão junto do Governo para que os mais pobres possam ter acesso a crédito barato nos bancos estatais.
A partir de 1976, o SEWA começou a conceder os seus próprios empréstimos às depositantes, para serem aplicados em negócios, aquisição de materiais de trabalho ou compra de casa e terras.
O SEWA, registado como uma cooperativa bancária urbana, conseguiu também a proeza de alargar a sua acção a zonas rurais, ajudando muitas mulheres nas actividades agrícolas. Mais importante, possibilitando que os seus nomes fossem inscritos em títulos de propriedade.
Com a ajuda do SEWA, milhares de mulheres assumiram o controlo sobre os seus rendimentos e aumentaram o poder de compra, elevando ao mesmo tempo o nível das condições de trabalho.
Por exemplo, vendedoras ambulantes, que transportavam os seus produtos em cestos à cabeça, têm agora quiosques, com licença municipal, muito graças ao microcrédito.
Este tipo de financiamento é atribuído por outros bancos indianos entretanto criados e também vocacionados para mulheres, alguns dos quais chegam a oferecer empréstimos ao dia, para que elas possam comprar bens essenciais, como fruta e vegetais.
Se, para os detractores, o microcrédito “é um mito neo-liberal” (Alexander Cockburn, The Nation), para os defensores, é um método eficaz de combater a pobreza extrema. Que o diga Muhammad Yunus, o economista do Bangladesh que, com o seu Banco Grameen, venceram em 2006 o Prémio Nobel da Paz.
Em várias entrevistas, Yunus tem garantido que é seguro emprestar dinheiro aos mais desfavorecidos, sobretudo às mulheres (94% dos seus clientes), a uma simbólica taxa de juro, porque esse dinheiro será reembolsado sem qualquer risco.
Os pobres são bons pagadores.

Ela Bhatt Sewa, a fundadora do Mahila SEWA Sahakari Bank
© thebetterindia.com
Estes dois artigos, agora revistos e actualizados, foram publicados originalmente no jornal PÚBLICO em 2006 | These two articles, now revised and updated, were originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO in 2006