Kevian Chemirani, filho de iranianos, já nasceu no exílio, em Paris. Yungchen Lllamo, do Tibete, fugiu à perseguição chinesa e agora vive em Nova Iorque. Enrico Macias, judeu argelino, procurou asilo em França. Salif Keita, do Mali, ostracizado por ser albino, deambulou pela Europa e América. Os Za Ondekoza, do Japão calculam ter dado a volta ao mundo três vezes, para escapar ao “vazio urbano”. No festival de músicas sagradas na mais antiga cidade de Marrocos, mostraram como se transforma maldição em bênção. (Ler mais | Read more…)
O Museu Batha, em Fès, estava já apinhado de gente numa tarde de sábado aquecida por mais de 40 graus, quando Farah Diba, a antiga imperatriz da Pérsia chegou, discreta e imponente.
Vestes longas e sóbrias, colar e brincos tradicionais iranianos, rugas ocultas por uma espessa maquilhagem, cabelo alourado preso com um laço, a viúva do Xá Reza Mohammad Phalavi procurou um lugar, e no meio da multidão se sentou.
A sua presença ilustra bem como o festival de músicas sagradas do mundo, na mais antiga cidade e “capital espiritual” de Marrocos, vai conseguindo o propósito de “dar uma alma à globalização”.
Antes de a Revolução Islâmica do Ayatollah Khomeini ter derrubado a monarquia em 1979, nunca Farah Diba-Pahlavi compreendera a essência do povo.
Em 1971, por exemplo, as celebrações dos 2500 anos de Persépolis, nas quais gastou cerca de 300 milhões de dólares, só acolheram ilustres convidados estrangeiros e um número reduzido da elite iraniana.
Em 1978, o ultraje foi ainda maior para uma nação profundamente religiosa: no Festival Shiraz Arts, de que Farah Diba-Pahlavi era mecenas, um grupo brasileiro de dança fez uma “performance” de sexo explícito em palco.
Em Fès, porém, no antigo palácio mourisco de Dar el-Batha, construído entre 1873 e 1897, ali estava a mulher que acumulou quase tanto poder como o “o rei dos reis”, vinda dos Estados Unidos onde procurou refúgio, para ouvir dois grupos oriundos de um país que se tornou num dos principais aliados do regime dos mullahs: a Síria.
De frente para uma frondosa árvore com uma “orquestra residente” de pássaros irrequietos, Farah Diba aplaudiu sem complexos o filho de um xeque, Omar Sermini, e um muezzin (o que chama os fiéis à oração nos minaretes das mesquitas), Hassan Haffar.
Ambos de Alepo, a cidade onde o talento dos cantores árabes é posto à prova, Sermini e Haffar conseguiram com as suas poderosas vozes eliminar, mesmo que momentaneamente, as diferenças de todos – pobres e ricos, religiosos e agnósticos, brancos e pretos, nacionais e estrangeiros –, que enchiam um belíssimo pátio de azulejos coloridos e jardins andaluzes.
Também a antiga imperatriz se deixou, aparentemente, extasiar quando um dervixe desceu do palco e começou a rodopiar em dois andamentos, primeiro lento e depois veloz, com um volumoso vestido branco.
O coro de Sermini exaltava Allah, Allah e o místico sufi ora cruzava os braços sobre o peito ora os abria em leque, uma mão que toca o coração ou se ergue ao céu., lábios apertados e olhos fechados, num exercício de “purificação do ego”.
No Museu Batha, tão discreta quanto entrou, assim saiu Farah Diba. À noite, estaria em Bab Makina, palco principal, nas filas da frente, ainda mais elegante num traje festivo. Foi aclamar três dos mais queridos artistas iranianos. Como ela, vivem longe da pátria.
Kevyan Chemirani : Irão
A nossa filosofia é escutar os outros e construir pontes. Tentamos respeitar cada uma das identidades, mostrando as nossas diferenças.
Sábado à noite. A estrela do espectáculo é Kevyan Chemirani, nascido em Paris, em 1968, que se fez acompanhar pelo pai, Djamchid, e pelo irmão, Bijan, num projecto que funde a música persa com a tâmil, do Sul da Índia, e a bambara, do Mali.
Horas antes, em conversa num hotel, o jovem de sorriso tímido contou-nos como, há três anos, decidiu juntar três grandes cantores para acompanhar o zarb, que ele toca magistralmente desde a adolescência, e outros instrumentos de percussão (udu, bendir e riqq).
Quem primeiro o inspirou, diz com orgulho, é “o grande mestre Djamchid”, que em 1961 deixou o Irão da dinastia Pahlavi para se instalar em França.
Os olhos melancólicos por detrás dos óculos ganham brilho especial quando Kevyan fala do seu mais recente trabalho, Le rythme de la parole, que mais tarde faria vibrar uma plateia de milhares de pessoas em Bab Makina.
“É um disco que vai buscar a poesia mística do século XVII, mas onde a ligação entre a métrica dos versos e o ritmo deixa uma grande liberdade de improvisação”, observou.
– “É importante partilhar a filosofia de Fès, que é a de escutar os outros, o de construir pontes. Neste disco tentamos respeitar cada uma das identidades, mostrando as nossas diferenças, e isso é muito importante”.
Em palco, sentados sobre almofadas, todos os 12 elementos do grupo de Kevyan exibem os seus dotes, com realce para as vozes extraordinárias de Ali Reza Ghorbani (Irão), de Sudha Ragunathan (Karnataka, Sul da Índia) e de Nahawa Doumbia (Wassonlon, Mali).
A fusão entre os ritmos vocais e instrumentais, tradicionais e modernos, cada um representando uma estética que não se sobrepõe, é tão perfeita que combina bem com o tema deste ano do festival das músicas sagradas de Fès: Harmonias.
Antes de terminar a actuação, Kevyan daria mais um exemplo da multiplicidade de sons que tem influenciado o seu território musical desde que, aos 13 anos, aprendeu a técnica paterna de dominar o zarb. Com Esperanza Hernandez, uma cigana de Sevilha que maravilhara a audiência na primeira parte, deixou evidente como a buleria do flamenco é compatível com o kereshmeh iraniano.
Em todo o caso, se grande parte do mundo já reconhece a arte de Chemirani, em Teerão, o regime teocrático não lhe dá, ao que parece, liberdade de voltar.
Aos 38 anos, só foi uma vez à terra dos antepassados. “Gostaria de voltar, mas infelizmente é muito, muito complicado”, diz-nos sem esconder a tristeza, mas ocultando pormenores.
Yungchen Llamo : Tibete
Às vezes perguntam-me se odeio os chineses. Eu respondo: ‘há dois tipos de chineses, os do passado e os do presente’. Não os odeio’ Somos todos parte da humanidade.
Quem jamais voltou foi Yungchen Llamo, que deixou o Tibete aos 25 anos, em 1989, numa perigosa fuga pelos Himalaias até chegar à Índia, onde se encontrou com o seu líder espiritual, Dalai Lama.
Cabelos negros que deslizam até aos joelhos, tiara de brilhantes a combinar com os brincos, e um singelo vestido de seda branco, Yungchen significa “Divindade do Canto”. O nome foi-lhe dado por um monge de Lhasa, a capital do território ocupado pela China desde 1959, por achar que a sua “inimitável voz” era “instrumento de cura como a medicina tradicional ou a filosofia antiga”.
Aos 5 anos, Yungchen tecia tapetes num campo de trabalhos forçados nos arredores de Llasa. A revolução cultural de Mao Zedong interditava a música tibetana, mas a avó ensinou-lhe cânticos religiosos que ela hoje partilha com o mundo.
“Quando deixei o Tibete, perdi tudo, excepto a minha voz”, afirmou no palco do Museu Batha, perante uma audiência totalmente rendida.
Numa conversa posterior, quando a inquirimos sobre a situação da sua família, se é perseguida agora que ela se tornou activista pelos direitos dos tibetanos (criou a sua própria fundação e apoia muitas outras), diz-nos:
-“Quero deixar o sofrimento para trás e olhar para o futuro. Às vezes perguntam-me se odeio os chineses. Eu respondo: ‘há dois tipos de chineses, os do passado e os do presente’. Não os odeio. Somos todos parte da humanidade’”.
Yungchen, que habitualmente canta a cappella, trouxe a Fès três músicos que imprimiram uma nova e retumbante sonoridade às suas baladas. Para ela, “os sons podem ser diferentes mas a mensagem é sempre a mesma: os seres humanos são únicos”.
Antes de cada canto, Yungchen olha para o céu, e os lábios mexem-se em surdina, como se murmurasse uma oração. “Não nos tornamos mágicos por meditarmos. Nascemos com inveja e ódio, mas há maneiras de controlar a nossa mente e os nossos impulsos.”
“Não quero converter ninguém ao budismo, porque cada um tem a sua espiritualidade. O problema não está na religião. A religião ordena: ‘Não matem’, e nós fazemos o contrário!”
Um dos acontecimentos que mais marcou Yungchen, e que é evocado no seu repertório, foi o 11 de Setembro de 2001. Ela, que vive actualmente em Nova Iorque, estava em digressão por Espanha quando os ataques terroristas foram cometidos. “ Naquele dia, todos nós nos tornámos números”, proclama.
Depois dos campos de refugiados na Índia, sua primeira paragem quando fugiu do Tibete, Yungchen chegou à Austrália, onde aprendeu o seu inglês, ainda não fluente. “Fiquei espantada; nunca tinha visto um país tão livre e tolerante. Depois, fui percebendo que, felizmente, havia mais”.
O primeiro CD de Yungchen, Tibetan Prayer, é uma recolha de orações durante sessões de meditação no Centro Dharma em Sydney. Em 1995 ganhou o prémio da indústria discográfica australiana para o melhor álbum de música do mundo.
Em 1996, Peter Gabriel descobriu-a e ela gravou, para a editora Real World, Tibet Tibet, talvez o seu maior êxito. Já cantou com Philip Glass, Annie Lennox, Michael Stipe e Sheryl Crow. Trechos seus fazem parte da banda sonora do filme Sete anos no Tibete, protagonizado por Brad Pitt.
As biografias de Yungchen referem que ela prefere actuar em templos e igrejas, “onde a atmosfera é mais intensa”, mas já cantou em pubs e num concerto de rock. Que importa o lugar se as suas canções, de amor incondicional, são uma constante peregrinação?
Za Ondekoza : Japão
Viajamos em busca do conhecimento dos outros. Queremos ter a certeza que o lugar onde tocamos não é um campo de batalha. (Seizan Matsuda, director artístico)
Ao contrário da “deusa” do Tibete, os “demónios” do Japão Za Ondekoza não precisaram de ser perseguidos para pôr em prática a sua filosofia: “Correr, tocar e dançar na terra”. O princípio é o do Sagokuron, ou seja, “a crença de que a corrida e a música são unas e que ambas são uma reflexão do drama e da energia da vida”.
O grupo foi formado em 1969 na Ilha de Sado, por Tagayasu Den, mas mudou-se entretanto para o Monte Fuji. Os seus nove membros, exímios tocadores de taiko, tambores tradicionais japoneses, querem escapar ao “vazio urbano” e para tal sujeitam-se a uma rígida mas espontânea disciplina, física e alimentar.
Diariamente correm cerca de 15 quilómetros. Três meses por ano viajam pelo mundo; durante quatro vivem juntos, 24 horas por dia, e o resto do tempo é passado em digressão pelo Japão.
“É difícil”, reconhece Seizan Matsuda, o actual director artístico, quando lhe perguntamos sobre esta vivência comunitária.
“Alguns membros ficam só um ano; outros permanecem desde há 20. Enfrentamos muitos problemas, mas pelo diálogo tudo de resolve”. E a primeira condição para não haver conflitos? Matsuda ironiza: “É preciso cozinhar bem, mais até do que tocar bem”.
Aos 49 anos de idade, flautista de formação clássica desde 1969, Matsuda juntou-se aos Za Ondekoza em 1992. “Adoro esta vida. Corro por gosto”.
A sua alimentação privilegia os vegetais e o sushi, mas a carne não é proibida, esclarece. Sobre o facto de haver apenas uma mulher no grupo, o chefe, fato escuro, cabelo comprido atado com elástico e óculos desportivos de aros vermelhos, esboça um sorriso matreiro e assegura: “Não há nenhuma razão especial, as que quiserem fazer parte serão bem-vindas”.
Para o concerto dominical em Bab Makina, os Za Ondekoza tinham corrido de manhã “apenas cinco quilómetros”. No entanto, desde que entraram em Marrocos, já haviam percorrido uma grande parte do deserto e dunas do Sara. Foi assim que eles se tornaram famosos.
Em 1975, depois de participarem na Maratona de Boston, saíram directamente do estádio para o palco, deixando abismados os espectadores.
Em 1993, numa evocação daquela proeza, actuaram em Carnegie Hall (Nova Iorque) depois de terem dado 355 concertos em várias cidades dos Estados Unidos, durante 71 dias e percorrendo um total de 14.910 quilómetros.
Começaram nova tour nos Paralímpicos de Nagano, em 1998, que deverá terminar nas Olimpíadas de Pequim, em 2008, após 12.500 quilómetros de corrida.
“Já devemos ter dado três vezes a volta ao mundo”, disse-nos Matsuda, especificando que a música dos Za Ondekoza é profundamente marcada “pelos sons da natureza”. Os próprios instrumentos são feitos a partir de materiais naturais. “A nossa filosofia é estarmos em harmonia com o planeta.”
“Viajamos em busca do conhecimento dos outros, porque é muito importante obter a paz. Queremos ter a certeza que o lugar onde tocamos não é um campo de batalha.” Porque, diz o ditado, “o verdadeiro guerreiro é aquele que não combate”.
E, contudo, o taiko, que existirá no Japão desde há 2000 anos, começou por ser um instrumento de guerra antes de se associar quase exclusivamente aos templos budistas e shintoístas.
Segundo a tradição, as fronteiras do Estado terão sido delimitadas pelo taiko: a linha divisória de cada localidade seria traçada quando o rufar do tambor já não se ouvia.
Em combate, o taiko servia para intimidar o inimigo. Escrituras e elementos pictóricos antigos mostram soldados transportando o taiko às costas, cada um dos lados tocado por outros dois militares.
Embora, actualmente, várias crenças no Japão se tenham apropriado do taiko, os Za Ondekoza recusam a definição de grupo religioso. “Cada um dos membros tem a sua fé”, sublinha o director Seizan Matsuda na nossa breve entrevista. “O que conta é a espiritualidade e não a religião”.
No palco, de kimonos ou com tangas (só os homens) que exibem corpos musculados, os membros do grupo e a artista convidada, Mieko Miyazaki, exprimem toda a sua vitalidade.
Entre números de humor e circo, sons imitando cascatas de água ou o piar das aves, os tambores ribombavam, sem abalar a serenidade soprada pela flauta de Matsuda.
Enrico Macías : França-Argélia
Marrocos tornou-se “a nova Andaluzia”, lugar onde judeus e muçulmanos “podem coexistir desde que foram expulsos por Isabel, a Católica, de Espanha.
A harmonia entre culturas é também o que Enrico Macías diz procurar. Quando entrou em cena no gigantesco auditório de Bab Makina, dois casais, um de marroquinos e outro de israelitas, lado a lado, levantaram-se, bateram palmas, repetiram a lírica e dançaram freneticamente como velhos conhecidos.
A música tem este poder: ali estava um judeu fugido da Argélia, cujos álbuns são comprados no mercado negro nos países onde a sua música é interdita, unindo dois mundos que a política geralmente divide.
Milhares de pessoas sabiam de cor todos os êxitos do artista que nasceu Gaston Ghrenassia, em 11 de Dezembro de 1939, na cidade argelina de Constantine.
Com Adieu mon pays, o hino dos Pied-noirs, franceses que deixaram a Argélia depois da guerra da independência, o sentimento transbordou: Já’ai quité mon pays, j’ai quité ma maison, j’ai quité ma famille (….) sans vraie raison.
Protegido por numerosos guarda-costas, cabelo grisalho e um sorriso radiante, a vedeta da noite homenageou repetidamente o Xxeque Raymond Leyris, o professor de Maalouf, música árabe-andaluz, em cuja orquestra aprendeu aos 15 anos a dedilhar agilmente a guitarra. Em 1961, o xeque foi assassinado, e o jovem Gaston empreendeu o caminho do exílio com a sua mulher, Suzy, filha do seu mentor.
Para sobreviver, cantou em cafés e cabarets de Paris. Rapidamente Adieu mon pays, composto na viagem de barco até França, se tornou um sucesso em disco. Seguiu-se outro, Enfants de tous pays, em 1963, ano em que adoptou o nome artístico de Enrico Macías.
Em 1964, começou uma grande carreira francesa e internacional, que levou Enrico Macías do Líbano ao Japão, da Turquia aos Estados Unidos. Temas como Melissa ou Zingarella, com ritmos de salsa, flamenco ou raï, foram entoados em uníssono por fiéis e infiéis em Bab Makina.
Conhecedor deste magnetismo, Anwar el-Sadat convidou o pied-noir para um concerto junto às Pirâmides do Cairo em 1978. Em 1981, quando o Presidente egípcio foi assassinado por integristas islâmicos depois de um tratado de amizade com Israel, Macías prestou-lhe tributo com Un berger vient de tomber.
Em 1980, a ONU, promoveu-o a “cantor da paz” e, em 1997, designou-o “embaixador para a fraternidade e ajuda às crianças de todo o mundo”.
Em 2000, Macías alimentou a esperança de poder voltar à Argélia mas o seu projecto gerou controvérsia num país que ainda não cicatrizou as feridas de uma mortífera guerra entre o exército e milícias islamistas.
Por “motivos de segurança” os concertos planeados foram anulados. O cantor desabafou as mágoas num livro editado em 2001, Mon Algérie.
“Tenho uma frustração enorme de não poder regressar ao meu pais”, admite Enrico Macías, para quem Marrocos se tornou “a nova Andaluzia, lugar onde judeus e muçulmanos podem coexistir” desde que foram expulsos de Espanha em 1492.
A tolerância tem, no entanto, limites. Numa conferência de imprensa, um jornalista tentou perguntar ao cançonetista o que sentia com a gradual diminuição do número de judeus no reino de Mohammed VI, mas ele não o deixou sequer completar a frase.
“Isso é uma não verdade histórica!”, gritou, indiferente ao facto de terem sido os próprios dirigentes da comunidade existente desde a Antiguidade que, no dia anterior, lamentaram ter passado de “milhares para uns 200”.
Não porque o Governo de Rabat os hostilize, mas porque muitos vão estudar e trabalhar em Israel e noutros países e já não voltam.
Macías também se irritou quando o inquiriram sobre declarações contraditórias conforme o público a que se dirige. Em Jerusalém, diz que quer viver em Israel e elogia o Tsahal (Exército) como “o escudo da estrela de David”. Em Paris, diz que quer terminar os seus dias em Marrocos. Em Fès, denuncia a “ditadura americana” no Iraque.
Justificando o polémico convite a um cantor mais pop do que de música sacra para participar no festival, o director do evento, Mohamed Kabbaj, esclareceu: “Mesmo que não cante o sagrado Enrico Macías canta a paz. Ele é rejeitado num país muçulmano e nós quisemos acolhê-lo aqui”.
Salif Keita : Mali
Deixemos de ter pena de nós próprios. África simboliza a alegria de viver, o optimismo, a beleza, a graça, a poesia, a gentileza, o sol e a natureza.
A rejeição também acompanhou Salif Keita desde a nascença, em 25 de Agosto de 1949 em Djoliba, no Mali. Ele veio ao mundo, segundo a biografia oficial, simultaneamente “maldito e abençoado”. O pai deserdou-o por ser albino, negro de pele branca, o que em África é sinónimo de azar.
Nobre mandinga, descendente directo de Sundiata Keita, rei guerreiro que fundou o império maliano no século XIII, a música é também domínio proibido à sua casta.
Solitário na infância, Salif refugiou-se nos estudos e aprendeu a cantar com os Griots, feiticeiros e poetas que recitam epopeias familiares de geração em geração. Filho de agricultores, foi nos campos que apurou a voz singular, a gritar com os pássaros que destruíam as colheitas.
Em 1968, Salif abandonou a casa em Djoliba e partiu para Bamako, capital do Mali, para actuar em cafés e mercados. Um saxofonista, Tidiane Koné, reparou nele e convidou-o a integrar a Rail Band, que animava um hotel-restaurante da cidade.
Rapidamente se tornou numa estrela. Em 1973, juntou-se a outra orquestra, os Ambassadeurs, dirigida pelo guitarrista Kanté Manlifa. A música combina sons africanos, anglo-saxónicos, franceses e cubanos.
O agravamento da situação política no Mali, em meados dos anos 1970, levou Salif Keita e Kanté Manulife a refugiarem-se em Abidjan, Costa do Marfim.
Em 1978, com a designação de Ambassadeurs Internationaux, gravaram o disco Mandjou, enorme sucesso que, em 1980, lhes abriu as portas dos Estados Unidos onde produziram mais dois álbuns.
O sonho de Salif Keita era trabalhar em França e foi aqui, em 1981, que obteve o primeiro êxito internacional, com Soro, um blues-rock cantando em Malinké. Em 1987, enveredando por outros cominhos como o jazz, já era um pilar da World Music.
Com a fama consolidada, Salif Keita mudou-se de Montreuil, onde vivem os seus 11 filhos, para Bamako onde abriu o seu próprio estúdio. Admirador de Nelson Mandela, tem encorajado jovens artistas locais e incentivado os emigrantes a voltar, para “fazerem renascer o continente africano”.
Em 1999, quatro anos depois da morte do progenitor, Salif reconciliou-se com a família, com o álbum Papa. Em 2001, abriu na capital maliana o clube Moffou, nome de uma espécie de flauta que usava quando criança, e que será também o nome de um álbum gravado, no ano seguinte, na qual participa a cabo-verdiana Cesária Évora.
Em 2004, Salif Keita é já um activista convicto, na luta contra a pobreza, a sida e o racismo. Fundou também uma associação de assistência aos albinos.
“Não nos deixemos esmagar pela violência, egoísmo e desespero. Não nos deixemos sacrificar no altar do pessimismo. (…) Deixemos de ter pena de nós próprios. África simboliza a alegria de viver, o optimismo, a beleza, a graça, a poesia, a gentileza, o sol e a natureza”. As Nações Unidas designaram-no embaixador para o Deporto e para a Música.
Em 2005, Salif Keita prestou homenagem ao Mali e às suas origens com o mais recente disco, M’Bemba. Foi com ele que encerrou o festival de Fès.
Numa actuação electrizante, sobretudo graças aos percussionistas e às vozes femininas do coro, Bab Makina levantou-se em peso para dançar obedecendo ao apelo do homem que, de joelhos, mandou beijos à multidão.
Como um rei que submete os súbditos, um passivo Salif Keita vagueou pelo palco, sorrindo aos músicos suados, mas pouco cantou.
Quase no final, desapareceu subitamente. Voltou, a pedido insistente do público, apenas para um minuto a solo.
Horas antes, no seu camarim, explodira de fúria quando nos recebeu: “Se eu soubesse que eram portugueses não estariam aqui. Portugal é o país mais racista da Europa. Não dá valor à música africana”. Tentamos saber o que conhece da música de origem africana em Portugal, só se lembra de Bonga.
A sua ira vira-se para a editora Universal, porque “não apoia os artistas africanos, não promove os [seus] discos, não envia representantes aos concertos”. Ficou desiludido com a recepção no seu espectáculo em Lisboa, no casino do Auditório dos Oceanos: “Foi decepcionante!”
Paulo Ochoa, da Universal em Lisboa, explicou que não esteve presente no concerto de Salif Keita, devido a outros compromissos profissionais (“não posso estar em toda a parte”).
Garante que avisou os delegados da editora em França que se fizeram representar, e referiu que enviou ao cantor discos de música portuguesa em sinal de boas-vindas.
“É bizarro, no mínimo, que não conhecendo Portugal nem os portugueses tenha feito a acusação de racismo”, lamentou Ochoa.
“A Universal tem artistas americanos, asiáticos, europeus e africanos. O único critério que nos interessa é a música”. M’Bemba, o último disco do maliano, vendeu em Portugal cerca de 1000 exemplares. “Não é mau!”, comentou.
Em Fès, perguntámos a Salif Keita se não era uma contradição o seu ataque pessoal, insensível a qualquer argumento que o fizesse mudar de opinião, num festival dedicado à tolerância. “Eu digo a verdade! Vocês são racistas!”

Um sufi da Ordem dos Dervixes Rodopiantes, fundada por Rumi, no concerto de Omar Sermini (3 de Junho de 2006)
© Enric Vives-Rubio
Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO, em 2006 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, in 2006