Um é “pobre” e está disposto a morrer no estreito de Gibraltar para trabalhar em Espanha. Outro é “rico” e aspira a ser estrela rap no seu país. Retratos de jovens num reino onde, desde 1999, Mohammed VI vem devolvendo ao povo a palavra silenciada pelo regime paterno de Hassan II. (Ler mais | Read more…)
Kamal el-Hamidi tem 20 anos e um sonho: estudar e trabalhar em Espanha, país com “uma língua muito bonita, que quase parece cantada”.
Órfão de pai, é o único sustento da mãe, analfabeta e doméstica, e de duas irmãs, mais novas. Aluno universitário, só tem arranjado empregos temporários, e o máximo que leva para casa, ao fim de um dia de 13 horas de trabalho, é o equivalente a dez euros.
“Prefiro ser um empregado de mesa em Madrid do que ministro em Marrocos”, assegura um ressentido Kamal, estudante de 1º ano de Literatura Espanhola. “Aqui, se nascemos pobres, morremos pobres. Os ricos são racistas. Não há classe média. Não há oportunidades”.
Um estudo do jornal marroquino L’Economist indica que 95% dos jovens (num país de mais de 30 milhões de habitantes, 52% têm menos de 25 anos e 31% menos de 15) não acredita na política, fragmentada por uns 20 partidos.
Kamal diz não ter medo de criticar o governo, e essa liberdade de expressão, reconhece, é “das poucas coisas boas que têm acontecido” desde que Mohammed VI subiu ao trono, em 1999. “Marrocos já não esconde a face”, admite a Afrique Magazine num dossier dedicado aos 50 anos de independência do país.
“Durante a maior parte do reinado de Hassan II, as elites praticaram a política da avestruz. Não, não há problemas de prisioneiros políticos, nem [o centro de tortura] de Tazmamart. (…) Não, não há uma classe feudal que despreza os aroubis, campónios das zonas rurais e das cidades. (…) Esse olhar aristocrático que se desvia começa a mudar.”
Kamal também elogia “a coragem” de Mohammed VI de “dar voz às vítimas” do pai, ao criar a Instância de Equidade e Reconciliação [deixou de existir em 2005], dirigida por “uma boa pessoa” como Driss Benzekri [que morreru de cancro, em 2007], antigo marxista que passou 17 anos na prisão [entrou tinha 24 de idade e foi condenado a 30 de pena].
Destaca ainda “a ousadia” de mudar o Código de Família, para que as mulheres, que hoje já exercem muitos cargos de chefia, “tenham mais direitos”. As críticas são dirigidas sobretudo ao Executivo, que “estagnou a política social e económica”.
“Sabe, quantos arriscam a vida para fugir do país, através do estreito [de Gibraltar]?”, pergunta Kamal. “Por enquanto”, ele não pensa na fuga. Concentra-se nos exames que estão para breve. Mas avisa: “Se tiver oportunidade, vou-me embora, nem que isso signifique morrer no mar”.
Levando à letra a definição de que “pobre é o que não tem o supérfluo e miserável o que não tem o essencial”, Kamal encaixa na primeira categoria. A sua casa, na medina (centro histórico) de Fès, foi comprada com o contributo financeiro de familiares após a morte do pai. São eles que continuam a ajudar. Dez euros por dia, quando os há, dá para (sobre)viver.
Apesar das agruras, Kamal não se refugia na religião: “Acredito em Deus mas raramente faço as orações”. Nunca, assevera, se deixaria recrutar pelos jihadistas que incentivaram os atentados de Casablanca, em 2003. “Aquilo foi terrível, tanta gente inocente que morreu!”.
A realidade, constatada pelos media marroquinos e franceses, é que a rápida islamização dos mais carenciados limita a vontade de mudança do novo rei. Mohammed VI estará a encorajar o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (PJD) a concorrer às legislativas de 2007 em todas as circunscrições, aumentando a sua possibilidade de vitória.
O objectivo é apoiar um “Islão moderado” para cortar caminho aos integristas. Os EUA abençoam esta estratégia. As elites temem uma repetição do que se passou na vizinha Argélia.
Indiferente a estas manobras, no Complexo juvenil al-Qods de Fès, Otman (que não deu o apelido), 15 anos, estudante de liceu, faz sensação numa exibição de rap. O seu grupo chama-se Vampirs (Vampiros) e existe há três anos.
De boné, jardineiras de ganga e T-shirt larguíssimas, o vivaço Otman faz questão de vincar, num francês quase fluente, que frequenta o ensino privado, o pai é dono de um restaurante e pode comprar o que quiser.
Isso faz dele “um rico”, concorda. No entanto, o seu hip-hop gingão evoca pobreza, miséria e desemprego. “Não é uma contradição”, ri-se. “Também cantamos amor e amizade”.
As letras são denúncia da “horrível situação nos bairros de lata”, acrescenta, mas não é a política que move Otman e os seus amigos. Eles apenas imitam ídolos: Eminem, 50 Cent ou Assassin.
“O que nós queremos é ser stars’”, proclama o pequeno rapper. “Há uma centena de grupos como nós. Como amadores já somos bem conhecidos, mas queremos ser ainda mais famosos. Aqui em Marrocos. Não nos interessa sair do país”.
As aulas encaram-nas apenas com “uma obrigação” imposta pelos pais. A única “profissão” a que aspiram, insistem, é a de “estrelas”.
A mesquita que foi centro do mundo

Karaouine, a primera universidade do mundo, agora mesquita (Fès, 7 de Junho de 2006)
© Enric Vives-Rubio
Na Medina (centro histórico) de Fès existe uma mesquita-universidade, al-Qarawiyyin ou Karaouin, que desde há 1200 anos tem sido um dos principais centros espirituais e educacionais do mundo muçulmano.
Fechada para obras de restauro, só por uma fresta das suas 14 portas se [podia] contemplar a beleza interior. Permanece símbolo de convivência entre Ocidente e Oriente. [Em 2016, foi reaberta ao público, graças ao trabalho de ume equipa liderada pela arquitecta canadiana-marroquina Aziza Chaouni.]
A história de al-Qarawiyyin começa com uma mulher, Fatima al-Fihri, que emigrou de Kairouan, na Tunísia, para Fès com o pai, Mohammed, e a irmã Mariam. A família juntou-se a uma comunidade de outros imigrantes, os Qairawaniyyns.
Muito cultas e religiosas, as duas irmãs herdaram uma grande parte da fortuna do pai, abastado comerciante. Com o dinheiro, cada uma construiu o seu templo: em 859, Fátima fundou a Mesquita de al-Qarawiyyin; e Mariam mandou erguer a Mesquita Andaluza.
Originalmente, com cerca de 30 metros de comprimento e quatro naves transversais, al-Qarawiyyin tinha fins religiosos mas servia também para o ensino das ciências islâmicas tradicionais – hadith (palavras e actos do profeta Maomé) ou fiqh (jurisrudência).
O aspecto actual evoluiu em várias fases consoante as necessidades de acomodar os fiéis. Foi aumentada pela primeira vez em 956, graças à generosidade do califa omíada Abdul-Rahman III, de Córdova.
O muezzin de Al-Qarawiyyin terá sido o primeiro, em Fès, a subir ao cimo do minarete, semelhante a uma torre de vigia, para chamar os crentes à oração. Tornou-se tradição outras mesquitas da cidade só fazarem o apelo à prece depois do de Al-Qarawiyyin.
As obras prosseguiram com os Almorávidas. Em 1135, o Emir Ali ibn Yusuf ordenou a extensão da mesquita de 18 para 21 naves, aumentando a área para mais de 3500 metros quadrados – tornou-se na maior do Norte de África (até Hassan II construir a de Casablanca).
A decoração, com arcos em ferradura e um sistema ornamental de padrões geométricos, caligrafia típica de Kufa (Iraque), motivos florais e azulejos vidrados (zellij), serviam de ponte entre a Andaluzia e o Magreb.
Outra prova de intercâmbio é o minbar (púlpito do pregador), trazido de Córdova em 1144. Andaluz é também o candelabro feito a partir do bronze de um sino que os Almoádas conquistaram numa batalha em Gibraltar e que doaram à mesquita em 1203.
No século XVI, os governantes Sádidas restauraram al-Qarawiyyin e acrescentaram dois pátios nos extremos norte e sul, aumentando a capacidade para 20 mil fiéis. O telhado ficou sustentado por 270 pilares. Foram erguidas também três fontes de mármore , evocando Alhambra (Granada).
Se era imponente como mesquita, al-Qarawiyyin também se tornou num famoso centro de instrução religiosa e debate político. Havia cursos de gramática, retórica, lógica, medicina, matemática, astronomia, química, história, geografia e música.
A variedade e a qualidade do ensino atraíram estudantes e académicos de todo o mundo. O sociólogo Ibn Khaldoun foi apenas uma das ilustres personalidades que passaram por al-Qarawiyyin. Outros foram o místico e metafísico Ibn Arabi, o médico, teólogo e filósofo judeu Maimónides, e Gerbert d’Aurillac, Papa (Silvestre II) de 999 a 1003, cujos estudos em Fès lhe terão permitido introduzir na Europa a numeração árabe.
Estes dois artigos, agora revistos e actualizados, foram publicados originalmente no jornal PÚBLICO em Junho de 2006 | These two articles, now revised and updated, were originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO in June 2006