– Viste a madrassa?
– Não
– E Dar Batha onde estão os tesouros de arte antiga?…
– Também não.
– E os túmulos dos sultões merínidas?…
– Ainda menos.
– Mas como foram os teus dias?…
– A passear… A sonhar… A perguntar-me se o que vi era real ou se estava a alucinar… A respirar os perfumes do Islão … a inebriar-me com o ritmo perpétuo do Magreb.
(E. Gomez Carrillo, Fès ou les nostalgies andalouses)

Concerto de Les Arts Florissants sob a direcção do maestro William Christie, em Bab Makina, Fès, 2 de Junho, 2006
© Enric Vives-Rubio
Quando a voz possante de Lofti Bouchnak se deixou de ouvir, devido a um corte de electricidade, em Bab Boujloud, nem um assobio de protesto entre os milhares de pessoas que enchiam a monumental praça encerrada por altas muralhas. Depois, a chuva caiu, e a multidão também não esmoreceu.
Provavelmente sensibilizado com o fervor quase religioso com que a cidade de Fès o acolheu, o artista continuou a cantar e a tocar alaúde, mesmo que imperceptível. E o povo aplaudiu.
A actuação deste intérprete e compositor tunisino, oriundo de uma família turca da Bósnia, reflecte o êxito do “festival na cidade”, concertos gratuitos para os que não podem pagar os bilhetes de ingresso nos grandes espectáculos em Bab Makina, palco central do “festival de músicas sagradas do mundo”.
Seja jornada de trabalho ou de descanso, Bab Boujloud, uma das portas fortificadas de entrada em Fez, construída em 1913 no estilo mourisco, enche-se de gente diversa.
Vêm de todo o lado. De Fès el-Bali (medina histórica), de Fès el-Jedid (antigo kasbah) ou da Ville Nouvelle (cidade nova).
Chegam a pé, em autocarros ou em “petit taxi”, cuja corrida não custará mais de 10 dirhams (1 euro). Saem em torrente dos labirínticos souks (bazares), de mãos vazias ou com sacos cheios.
Antes ou depois das preces nas madrassas (escolas religiosas) ou no mausoléu do Moulay Idriss, o fundador desta “capital espiritual”.

Ahwach Tissint, grupo de dança berbere, em Bab Boujloud, no festival de músicas sagradas de Fès, em 9 de Junho de 2006
© Enric Vives-Rubio
Um dia de compras pode incluir paragens no souk El-Attarine, que vende especiarias; no souk dos chinelos, que expõe calçado novo e usado; no souk das sedas, brocados, kafkans e joalharia; no chouara, bairro dos curtidores, onde as alcaçarias, vistas a partir de terraços, constituem lugar grotesco.
Não só devido ao odor insuportável das peles secas ao sol, mas também porque o trabalho dos homens, sob temperaturas escaldantes, mergulhados em tinas de tinta química até aos joelhos parece obra de escravos.
Em Bab Boujloud, em dia de concerto, há garotas descobrindo as pernas de mini-saia e mulheres que se tapam de negro da cabeça aos pés.
Há rapazes que se modernizam com falsos jeans Dolce & Gabana e homens que conservam túnica e barbas longas.
Há meninas escoltadas pelos pais e grupinhos de adolescentes em jogos de sedução. Há famílias inteiras, amigos em excursão e solitários.
Durante dez dias, em Junho, o “espírito de Fès” está presente de Bab em Bab (porta em porta). Nas músicas em Bab Makina e Bab Boujloud; no Museu Batha, onde decorre o Fórum Dar uma alma à globalização, nas actividades para jovens, nos cafés literários, nas exposições, nos filmes, nas noites sufis.
Trata-se de uma iniciativa do antropólogo Fauzi Skali, um filho da cidade, empenhado em mostrar que o inevitável é o diálogo e não o choque de civilizações.
O festival de músicas sagradas realiza-se desde 1994, tendo como principal patrono o Rei de Marrocos. Várias instituições e empresas associam-se como mecenas. O Fórum e os seus colóquios surgiram há cinco anos, com o apoio do Banco Mundial, que a partir de 2006 “encerra um capítulo” na sua colaboração.
“Lançámos a sementes, mas agora que o festival já fortificou raízes o nosso contributo, na forma de financiamento directo, vai mudar”, diz-me Katherine Marshall, conselheira do Banco Mundial [e agora ligada à Georgetown University]. “Ainda estamos num processo de avaliação. Não prevejo um corte definitivo”.
Com mais ou menos fundos, o diálogo está em marcha e o “espírito de Fès”, este ano sob o tema Harmonias, é perceptível nos mais pequenos gestos. Na emoção com que se confortam uma mãe israelita que perdeu a filha num atentado suicida palestiniano e uma mulher palestiniana que perdeu o pai e o irmão num ataque israelita.
Na generosidade dos coloridos membros do grupo de danças berberes de Cheikhi Ali, que nos convidam para suas casas na província de Tata, de modo a perceber a maravilhosa “dança da adaga” e os cânticos em língua tamazight que acabaram de executar em Bab Boujloud.
Georges Bruchez, arquitecto de Genebra que, todos os anos, vem ao festival “para ser uma pessoa melhor”, conta-nos como se apaixonou por Fès.
“Cheguei nem sei quando, depois de uma viagem pelas montanhas de Ifrane, olhei para a cidade e disse: ‘Isto é a Jerusalém do Magreb’. Pedi ao meu guia que me arranjasse uma casa e, na manhã seguinte, lá estava ele com uma proposta.”
“Ao meio-dia, eu assinava o contrato. Comprei um belo palácio andaluz, escondido numa ruela, com jardins e uma fonte. Aqui me inspiro e recebo os meus amigos.”
Quanto custou? “Isso não se pergunta a um suíço! Nunca ouviu falar do segredo bancário?”, brincou. O seu cartão de visita comprova o endereço: Al-Qarawiiyyne, Fès Medina.
Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em Junho de 2006 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO in June 2006