Uma maioria de muçulmanos quer deixar de estar na defensiva para tomar a iniciativa. Pretende “recuperar a modernidade” mas recusa a “ocidentalização”. Aspira a ser “protagonista da História” e não apenas “objecto”. Contributos para um debate, que juntou vários oradores na cidade marroquina onde o judeu Maimónides procurou refúgio e o Papa Silvestre II aprendeu a numeração árabe. (Ler mais | Read more…)
Londres é o exemplo de que a religião do profeta Maomé não é monolítica, diz Kristiane Backer, jornalista muçulmana, a abrir o debate sobre “Islão e mundialização” em Fès, a mais antiga das capitais imperiais de Marrocos, durante o Festival das Músicas Sagradas. “Há mesquitas turcas, paquistanesas, do Golfo Pérsico e do Magreb.
Há uma primeira geração de imigrantes que não fala inglês e uma segunda, os que já nasceram no Reino Unido, completamente integrada. Há wahabitas e sufis. Há pobres e banqueiros.”
Há também um problema de imagem, reconhece Backer, salientando que, frequentemente, os media “preferem gastar tempo de antena com o capitão gancho de Finsbury”, referência ao imã extremista Abu Hamza al-Masri, expulso pelas autoridades britânicas, do que “dar a palavra a intelectuais moderados”.
A marroquina Assia Alaoui Bensalah, [embaixadora do Rei Mohammed VI], professora de Direito Económico Internacional e co-presidente do Grupo de Sábios da Comissão Europeia para o Diálogo dos Povos e das Culturas, é mais contundente na sua intervenção, num colóquio matinal no Museu Batha:
– “É verdade que o Islão tem sido instrumentalizado por extremistas mas a estratégia do Ocidente – de combater a jihad com a Cruzada –, permite a esses extremistas alargar a sua base de recrutamento”.
O Islão “tornou-se quase inaudível” e interrogamo-nos como é que “um homem numa gruta [Osama bin Laden, o chefe da al-Qaeda, que seria assassinado, no Paquistão, em Maio de 2011] pode chegar a Nova Iorque”.
Abdou Ansar Filali, de Marrocos, [um ismaili] considerado um dos maiores pensadores humanistas do mundo islâmico, reformador conceituado do Cairo a Teerão, tentou desfazer o erro que é confundir religião com história. “Atribuímos ao Islão o que pertence ao domínio da história dos muçulmanos. Os massacres são parte da história e não da religião”.
É um disparate, adianta Filali, que no Museu Britânico a arte esteja catalogada como sendo da “China, da África e do Islão”, como se este fosse uma região.
A embaixadora Assia Bensalah recomenda que os muçulmanos, para se adaptarem à mundialização, “deixem de estar na defensiva para tomar a iniciativa”. O mundo islâmico, sublinhou, precisa de ser “protagonista da História” e não apenas “objecto”.
E se é verdade que todos concordam com a necessidade de reforma, acrescentou, “ainda ninguém conseguiu chegar a uma fórmula, se à americana, se à europeia”.
Como “separar o religioso do político?”, pergunta. “Que aliança estabelecer para definir a multiculturalidade? É necessário um forte consenso político. Não se pode fazer reformas sem reformistas e não se pode fazer democracia sem democratas. Precisamos de um quadro em que a expressão seja livre e se possa desenvolver.”
A jornalista Kristiane Backer defende que os muçulmanos “têm de recuperar a modernidade, porque foram pioneiros da Renascença, mas sem cederem à ocidentalização”.
Zeyba Rahman, presidente do World Music Institute e directora do festival de Fès nos EUA, deixou à reflexão os casos de dois irmãos alunos na mesma escola. Um foi influenciado por um professor integrista e acabou morto em combate num campo de mujahedin no Afeganistão. Outro tornou-se corretor de sucesso na bolsa de Nova Iorque. Os pais criaram uma fundação para servir de ponte “entre estes dois mundos”.
Como perdoar o inimigo?
Vítimas e carrascos deveriam enfrentar-se numa comissão de verdade de reconciliação. Para isso é preciso que o conflito chegue ao fim. “Não se esquece, mas escreve-se a memória”.

Nurit Peled-Elhanan (à esq.), a quem um suicida palestiniano matou a filha, e Aisheh Aqtam (a quem o Exército israelita matou o pai e o irmão), explicando a capacidade de perdoar, durante um dos debates no Festival de Músicas Sagradas, edição de 2006, em Fès, Marrocos
© Enric Vives-Rubio
Nurit Peled-Elhanan perdeu a filha Smadar, de 14 anos, quando um kamikaze palestiniano se fez explodir em Jerusalém Ocidental. A palestiniana Aisheh Hashem Nimer Aqtam perdeu o pai e o irmão num ataque israelita na Cisjordânia. Quando o inimigo mata há lugar para o perdão?
Na cidade marroquina de Fès, no imponente pátio do Museu Batha, ornamentado por azulejos coloridos e jardins, evocando a convivência andaluz entre judeus e muçulmanos, as duas mulheres sentaram-se lado, unindo as mãos. Ambas fazem parte do Fórum das Famílias Enlutadas [Family Circle – Parents Forum (FCPF)].
“O perdão, para mim, é uma noção muito estranha e revoltante”, diz Nurit, professora de Literatura Comparada na Universidade Hebraica de Jerusalém. “No meu país, as pessoas aprendem que há judeus e não judeus, que os palestinianos são uma ameaça e devem ser eliminados. Os políticos tentam fazer de nós inimigos, usando o nacionalismo, a religião e a raça.”
Por esta “liberdade de pensamento”, Nurit ganhou, em 2001, o Prémio Sakharov do Parlamento Europeu. No discurso em que recebeu o galardão, declarou: “A luta não é entre palestinianos e israelitas, nem entre judeus e árabes. A luta é entre os que procuram a paz e os que querem a guerra. O meu povo é o que quer a paz”.
Nurit é filha do general pacifista Mattityahu (Matti) Peled (1933-1995). Os seus dois filhos são objectores de consciência, membros do movimento “Coragem de recusar” o serviço militar nos territórios ocupados. [Um deles seria co-fundador, em 2005, do movimento Combatants for Peace].
É em silêncio, de olhos baixos e cabeça ligeiramente coberta por um lenço, que a palestiniana Aisheh Aqtam ouve a israelita de rosto crispado denunciar a situação na Cisjordânia e Faixa de Gaza: “Somos iguais apenas numa coisa – no cemitério das crianças mortas. Todas são iguais. Não interessa como morreram. Não vale a pena falarmos de vingança”.
A intervenção de Aisheh Aqtam, professora de Psicologia, foi como uma súplica: “Não consigo impedir que as nossas crianças cometam atentados suicidas. Ajudem-nos a encontrar uma estratégia política para que os dois povos sigam um caminho que rejeite a perda de vidas de ambos os lados.”
“Podem imaginar o que é perder uma filha, um pai, um irmão? As feridas são indescritíveis. Não desaparecem. Morrer de doença é destino, mas morrer numa guerra é muito doloroso”.
Presente no Museu Batha, no âmbito do Fórum Dar uma alma à globalização, Driss El Yazami, ex-membro da Instância Equidade e Reconciliação [actual presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos], criada pelo actual Rei de Marrocos para dar voz às vítimas do regime do seu pai, Hassan II, tentou ser mais racional que emotivo.
Para haver perdão, disse Yazami, “é preciso primeiro que as vítimas falem, porque perdoar não é esquecer, é escrever a memória”. Em segundo lugar, “é preciso reconhecer que foram cometidos crimes, abusos, torturas, que se diga o que foi feito e quem fez, que se determine a responsabilidade institucional”.
Em terceiro lugar, acrescentou, é necessário que “a vítima seja reabilitada e não apenas indemnizada, que recupere a sua dignidade”. Finalmente, é preciso obter “a garantia de que, depois do perdão, os crimes não serão repetidos, empreendendo reformas na justiça e na educação”.
Jean-Pierre Chevènement, antigo ministro socialista francês, lembrou como, há 60 anos, a França e a Alemanha eram inimigos e agora são aliados, e como, há 60 anos, quem ousasse falar em perdão seria tratado como “colaboracionista”.
John Marks, fundador da organização não governamental norte-americana Search for Common Ground, enalteceu o exemplo da Comissão da Verdade e Reconciliação na África do Sul que colocou frente a frente vítimas e carrascos do apartheid e o do Burundi, onde depois de um genocídio, hutus e tutsis procuram cicatrizar feridas. No entanto, todos os participantes no debate concordaram que “só há lugar para o perdão quando termina o conflito”.
Depois de uma manhã amarga, a atmosfera distendeu-se à tarde, quando o padre maronita libanês Elias Kesrouani, o rabi norte-americano Bradley Hirschfield e o xeque palestiniano Abdul Aziz Bukhari se juntaram (e beijaram e abraçaram) a uma mesa para partilharem as suas experiências de comunhão inter-religiosa.
Bukhari, um sufi de origem uzbeque, com o seu turbante verde em forma de cone, o excêntrico Hirschfield de kippah (solidéu) sobre cabelos compridos e uma túnica árabe, e o mais discreto Kesrouani, de cruz ao peito, fizeram um apelo colectivo à tolerância, lembrando a palavra de ordem de Gandhi: “Olho por olho deixará o mundo cego”.
Para saber mais sobre coexistência, consultar: www.jerusalempeacemakers.org

O padre maronita libanês Elias Kesrouani (à dir.), o rabi americano Brad Hirschfield (à esq.) e o xeque palestiniano Abdul Aziz Bukhari (ao centro) juntaram-se, abraçaram-se e beijaram-se, enquanto partilhavam as suas experiências de comunhão inter-religiosa
© Enric Vives-Rubio
Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 8 de Junho de 2006 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO on June 8, 2006